CAMILA TUCHLINSKI - O ESTADO DE S.PAULO
31/08/2018
Relacionamento abusivo e ciúme excessivo podem ser gatilho para assassinatos contra mulheres
"Estamos imersos em uma cultura em que a mulher é considerada quase que um objeto que precisa seguir o padrão de comportamento que o homem espera". A avaliação é da juíza Tatiane Moreira Lima, que atuou durante anos na Vara de Violência Doméstica Contra a Mulher. Atuando nos casos em que a população feminina é vítima, a magistrada foi atacada, em 2016, por Alfredo José dos Santos, que invadiu o Fórum Regional do Butantã, na zona oeste de São Paulo, e ameaçou incendiar a magistrada.
Vídeo feito por policiais militares que negociavam rendição. Foto: Reprodução |
Ele foi condenado a 20 anos de prisão por tentativa de assassinato qualificada e cárcere privado. Tatiane era a juíza responsável pelo julgamento de um processo em que Santos era acusado de agredir a ex-mulher com quem disputava a guarda de um filho de 5 anos.
O feminicídio é o ápice de uma violência e poderia ser evitado. Em muitos casos, o crime é considerado fruto de um relacionamento abusivo vivido por mulheres dentro de casa. A juíza afirma: "Quando a relação está dentro de um ciclo de violência, em regra, há uma evolução desse controle (roupas, amizades, atividades) e também há uma evolução da violência (verbal-psicológica, corporal-física ou sexual) da menos grave até a mais grave, terminando no feminicídio".
A juíza Tatiane Moreira Lima. Foto: GABRIELA BILO/ESTADAO
Tatiane acrescenta que, além do crime dentro de uma relação amorosa, o feminicídio pode ocorrer em situação de menosprezo à condição de mulher: "No México, houve uma onda de crimes em que mulheres eram mortas e tinham rosto ou seios mutilados. Nesses casos, era evidente que havia ódio ou menosprezo em razão da vítima ser mulher. Daí a mutilação de partes que identificam as mulheres e estão associadas ao feminino", afirma. Um levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostrou que existem 10.786 casos de feminicídio pendentes em todos os tribunais de justiça do País - casos que entraram no Judiciário, mas ainda não foram julgados. Em 2016, o número de casos era de 5.173.
Nas últimas semanas, casos de assassinatos envolvendo mulheres e seus ex-maridos ou ex-namorados ganharam destaque no noticiário. Na segunda-feira, 20, o vocalista da banda Brilhantes do Forró, Francisco Luciano dos Santos, foi denunciado à Polícia Civil pela ex-mulher por ter sido agredida na frente do filho de seis anos em Natal, no Rio Grande do Norte.
No último dia 16, a corretora de imóveis Karina Garofalo foi atingida por quatro tiros, no rosto e no braço, enquanto caminhava com o filho de 13 anos. Pedro Paulo Barros Pereira, ex-marido da vítima, teve a prisão temporária decretada. Ele é suspeito por encomendar o crime. Em julho, um homem foi preso após matar a mulher a facadas dentro de casa em Osasco, na região metropolitana de São Paulo. O crime foi descoberto pela polícia depois que o autor, Sílvio Augusto da Costa, de 39 anos, enviou fotos da vítima para a filha dela pelo WhatsApp. O corpo da enfermeira Rosemiriam Adriana de Azevedo da Silva Leandro, de 47 anos, estava caído na cozinha. Segundo a polícia, o homem confessou o crime e disse aos policiais que durante uma discussão a mulher teria ferido sua honra.
Como o feminicídio afeta as crianças?
Crianças e adolescentes que presenciam o assassinato da mãe são consideradas vítimas indiretas do feminicídio. A psicóloga infantil Tauane Gehn avalia que, quando isso acontece, o filho precisa lidar não apenas com a perda de uma figura importante (materna), mas com a vivência de um episódio de violência. "É frequente que, nesses casos, ela tenha sintomas como flashbacks do evento traumático, pesadelos, estado constante de alerta, sentimentos de raiva e impotência. Em algumas situações, o evento pode desencadear alguma psicopatologia, como transtorno de estresse pós-traumático", enfatiza Tauane. Segundo ela, o apoio social adequado é ainda mais importante nesse caso.
O desenvolvimento da identidade da criança pode ficar comprometido após o episódio de violência. Além disso, de acordo com a psicóloga Tauane Gehn, os pequenos podem se esquivar de determinados vínculos afetivos. "Por exemplo, a escola pode tratar a criança de forma diferente, justificando qualquer dificuldade com base na experiência traumática. Os colegas também podem tratá-la assim. Isso pode fazer com que a autoimagem da criança como aluno seja excessivamente marcada por essa experiência, com faltas ou isolamento social", conclui.
Crianças que presenciam morte da mãe podem ter problemas psíquicos. Foto: counselling/pixabay
Fazendo uma análise mais profunda da conduta masculina em crimes de feminicídio, encontramos uma repetição de comportamentos históricos na sociedade brasileira. Segundo o psicólogo Gilson Castro Maia, apesar de algumas mudanças, pais e mães ainda educam os filhos dentro de 'caixas sociais'. "São rótulos como: homem não pode chorar, homem não brinca com coisas de meninas. Brinquedo para criança não tem gênero, a conotação vem ou está no adulto", exemplifica o psicólogo. Para Maia, a raiz do feminicídio vem desta construção social: "Uma construção do homem forte, austero, controlador, e de uma mulher dona de casa, frágil, submissa. E em todos os contextos sociais".
O ciúme excessivo é um dos gatilhos para o feminicídio. Por não ter aprendido a expor seus sentimentos, o homem, por vezes, não consegue controlar seus impulsos agressivos. "O término de um relacionamento pode ser o estopim para que ocorra a ação de matar a mulher "amada". O ciúme indica sentimento de posse, controle, insegurança, desconsiderar os sentimentos e as vontades do outro e impor a sua vontade. O ciumento não sabe controlar suas emoções, lidar com frustrações" conclui Maia. Do ponto de vista psíquico, o ego deste agressor é pobre, primitivo.
Como as empresas podem acolher e apoiar suas funcionárias?
Além do próprio esforço dos homens para lidar com as emoções ao longo da vida, outras instituições podem ajudar no processo. Algumas empresas ampliaram os canais de denúncia de agressões contra mulheres. Heloísa Macari, sócia-diretora da área de compliance na consultoria global Protiviti, afirma que, de 2009 a 2017, o número de relatos de assédio sexual nas empresas aumentou 16%. "Por exemplo, 'você só vai ser promovida se sair comigo para tomar um vinho', isso pode ser entre homem e mulher, entre mulheres, etc. A condição de benefício em troca de alguma promoção. Em 2017, quando começaram os escândalos na indústria do entretenimento, tivemos o pico em termos de denúncias recebidas relacionadas a assédio sexual nas empresas", relata. Heloísa elenca algumas diretrizes que podem ser seguidas pelas empresas:
- Demonstrar que é intolerante ao assédio sexual, destacando o tema no código de ética;
- Levar o assunto para treinamentos de conduta dentro da organização, independente da hierarquia;
- Explicar quais são as consequências cabíveis em caso de crime, dentro e fora da instituição;
- Oferecer canais de aconselhamento, identificar e acolher as vítimas;
- Ter um protocolo para atuar com a denúncia, apuração e investigação
Fora das empresas, qualquer denúncia de violência contra mulher pode ser feita através do telefone 180.
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