HuffPost
01/01/2020
Estatísticas oficiais de assassinatos de mulheres na América Latina não acompanham os levantamentos de grupos de defesa da mulher.
A família de Perez não aceita o veredicto. “Foi como se ela tivesse sido assassinada de novo”, disse ao HuffPost sua mãe, Marta Montero. “Ela não só foi assassinada como também culpada pela própria morte.”
O crime intensificou o debate sobre feminicídio não somente na Argentina, mas também em toda a América Latina. Depois dele, mulheres de diversos países, como México, Uruguai e Guatemala, saíram às ruas com o movimento “Ni Una Menos” (Nem Uma A Menos, em tradução livre). A campanha resultou em manifestações em toda a Argentina. Em Mar de Plata, a marcha foi liderada por Montero.
Ela não só foi assassinada como também culpada pela própria morte.Marta Montero, mãe de Lucia Perez, vítima de feminicídio na Argentina
Segundo a ONU, o feminicídio é entendido como o assassinato intencional de mulheres somente pelo fato de serem mulheres. Pelo menos 15 países da América Latina, incluindo a Argentina, classificam como feminicídio os assassinatos motivados pelo gênero da vítima.
Estima-se que 12 mulheres sejam assassinadas todos os dias na região por causa de seu sexo. Segundo a ONU, 14 dos 25 países com as maiores taxas de feminicídio no mundo ficam na América Latina. E 98% desses crimes contra mulheres não são tratados como feminicídio, levando a muitos casos de impunidade.
Ao tratar o feminicídio como um crime específico, os países podem coletar mais facilmente dados sobre a violência fatal contra as mulheres. Mas, de acordo com especialistas entrevistados pelo HuffPost, muitos países latino-americanos ainda não contabilizam os feminicídios com precisão. Existem grandes diferenças entre as estatísticas oficiais e os números apurados pelas organizações de defesa dos direitos das mulheres. O caso de Perez é um deles.
Seis anos antes da morte de Perez, países latinos já vinham adotando políticas para proteger as mulheres. Em 2010, o Chile tipificou o feminicídio em seu código penal, seguido por Guatemala (2010), Costa Rica (2012), Bolívia (2013), El Salvador (2013), Nicarágua (2013), Argentina (2014). Em 2014, o Equador se tornou o oitavo país da região a fazê-lo, com a aprovação do Artigo 141, que define feminicídio como o exercício de relações de poder que resultam na morte de uma mulher por “ser mulher”. O crime prevê penas de prisão que variam de 22 a 26 anos. Em 2015, o Brasil juntou-se a eles.
Desde então, organizações da sociedade civil equatoriana contabilizaram 711 feminicídios no país. Mas os dados governo dão conta de apenas 348 casos no mesmo período.
Em 2019, um homem colocou fogo em sua própria casa. A esposa, a sogra e a cunhada morreram no incêndio. O governo equatoriano documentou somente um caso de feminicídio, porque concluiu não haver uma relação de poder entre o agressor e duas das vítimas. As organizações da sociedade civil consideram as três mortes como feminicídio.
“O [código criminal] estabelece que deve existir uma relação de poder entre a vítima e o culpado”, disse Diego Tipan, subsecretário de Segurança Pública do Equador. “Nesse caso em particular, não havia relação de poder entre mãe e irmã da vítima e o agressor; somente entre ele e a sua esposa.” Mas os grupos de defesa dos direitos femininos argumentam que todas as mulheres mortas no incidente devem ser incluídas para que os dados de feminicídio sejam precisos.
Especialistas disseram ao HuffPost que a falta de consenso sobre o que configura feminicídio é uma das principais causas dos problemas nos dados oficiais sobre esse tipo de crime.
Todos os dias mulheres, são mortas na América do Sul e Central vítimas de violência “machista”, diz Esther Pineda, socióloga venezuelana e autora de Cultura Feminicida: O Risco de Ser Mulher na América Latina. Ela diz que esses assassinatos são um massacre silencioso.
“Dar visibilidade às estatísticas de feminicídio é essencial para mostrar a real magnitude do problema para a sociedade, os políticos e a mídia”, afirma Pineda ao HuffPost. Em alguns países latino-americanos, acrescenta ela, dados sobre feminicídio são manipulados e informações são ocultadas para acobertar falhas da polícia e dos tribunais.
Dar visibilidade às estatísticas de feminicídio é essencial para mostrar a real magnitude do problema para a sociedadeEsther Pineda, socióloga venezuelana e autora de Cultura Feminicida: O Risco de Ser Mulher na América Latina.
Em 2012, a Nicarágua aprovou a Lei Integral contra a Violência contra a Mulher, que reconhece o feminicídio como um conceito legal. Mas, dois anos depois, a legislação foi reformada, e a definição de feminicídio mudou de homicídios decorrentes de relações desiguais de poder entre homens e mulheres para apenas relacionamentos românticos entre casais. O resultado disso foi uma diminuição nos dados oficiais de feminicídio.
Entre janeiro e outubro deste ano, as organizações de defesa dos direitos das mulheres da região registraram 53 feminicídios na Nicarágua; o governo contabilizou somente 18 casos.
Montero acredita que o assassinato de sua filha causou tamanha comoção porque expôs um problema endêmico da região. “É óbvio que essa luta é por Lucia, mas ela é a bandeira do movimento. Eu, como mãe, luto por ela e por todas as mulheres.”
As autoridades argentinas afirmam que Perez não foi vítima de feminicídio porque a adolescente já havia mantido relações sexuais com um dos homens que a agrediram e porque tinha consumido drogas.
“Nunca penso nas coisas terríveis que ela sofreu. Eu a vejo de maneira diferente, eu a vejo bonita, com seu lindo sorriso. [Ela era] uma boa filha, companheira, porque Lucia era nobre de coração”, afirma Montero.
Estado de emergência
Muitos grupos feministas pediram a declaração de estado de emergência em seus países para combater a violência contra as mulheres, como aconteceu em Porto Rico em setembro passado.
Pineda explica que essa é uma maneira de reconhecer a gravidade dessas ofensas. Um estado de emergência nessa questão deve garantir: prevenção da violência contra as mulheres, atenção e proteção às vítimas, investigação de casos de feminicídio e julgamento dos autores.
“Na América Latina, essa emergência deve ser declarada imediatamente nos países com as maiores taxas de feminicídios, incluindo México, El Salvador, Guatemala, República Dominicana, Colômbia, Peru e Argentina”, diz Pineda.
No Equador, movimentos feministas pediram várias vezes a declaração de estado de emergência. Os protestos mais recentes contra o feminicídio aconteceram em junho de 2019, depois do assassinato de Evelyn Caroline Bravo Bodero, voluntária do Cepam, uma organização que combate a violência contra as mulheres. Mas, com base nas estatísticas oficiais, o governo diz que os números não justificam a adoção da medida.
Em Porto Rico, a governadora Wanda Vasquez declarou estado de alerta nacional depois que pesquisadores que investigavam o furacão Maria descobriram irregularidades nos dados oficiais sobre a violência contra as mulheres. Como ex-chefe da secretaria de Direitos da Mulher de Porto Rico, Vasquez tem um longo histórico de defesa das sobreviventes de abuso doméstico. Mas ela também foi acusada de cortar fundos para organizações de direitos das mulheres quando ocupou o cargo.
Se os autores de feminicídio não são punidos, têm “licença para matar”, diz Pineda. Montero, mãe de Lucia, concorda. “Temos de insistir: o feminicídio é crime contra a humanidade”, afirma ela.
Reportagem produzida em parceria com o Centro Internacional de Jornalistas.
*Este texto foi originalmente publicado no HuffPost US e traduzido do inglês.
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