Revista Consultor Jurídico, 8 de abril de 2020
1. A erupção do vírus: do medo pandêmico à pandemia do medo
A erupção do vírus surge, no século 21, como a explosão de um vulcão. A princípio, a expansão da contaminação na China. Depois, na Itália. Em seguida, Espanha, França, etc. e Brasil. De forma cataclísmica, o vírus se espalha, gerando contaminação, e, espantosamente, faz o mundo parar.
Em seguida, começam as fortes oscilações nas bolsas de todo o mundo, a depressão dos mercados e a desaceleração econômica. Afinal, começam as medidas de quarentena compulsória, de fechamento de fronteiras, de impedimento internacional de circulação de pessoas, até chegarmos às políticas setoriais compensatórias propostas pelos governos, como forma de lidar com os efeitos econômicos imediatos da disseminação do vírus, com riscos à saúde e à vida para milhões de pessoas, em todo o mundo.
Em seguida, começam as fortes oscilações nas bolsas de todo o mundo, a depressão dos mercados e a desaceleração econômica. Afinal, começam as medidas de quarentena compulsória, de fechamento de fronteiras, de impedimento internacional de circulação de pessoas, até chegarmos às políticas setoriais compensatórias propostas pelos governos, como forma de lidar com os efeitos econômicos imediatos da disseminação do vírus, com riscos à saúde e à vida para milhões de pessoas, em todo o mundo.
Os efeitos sobre o mundo do trabalho e da economia são altamente comprometedores, e ameaçam toda uma forma de constituição da vida social, tal como a conhecemos. Assim, a pandemia da Covid-19 acentua o medo pandêmico já instalado nas sociedades contemporâneas (Bauman, 2008),[1] um tipo de medo indeterminado e líquido, que agora encontra a sua razão de ser.
Do medo ao pânico, a sensação de perigo indefinido e incerto, agora, encontra lugar certo e determinado a que se destinar. Por isso, lhe declaramos: guerra! Este nome, que estava latente, mas apenas não encontrava um inimigo que justificasse a sua perseguição, enfim, se manifestou.
2. A caixa de pandora: o vírus como codificação
Tudo começa, quando Epimeteu, irmão de Prometeu, aceita Pandora como esposa, abrindo campo para a vingança de Zeus. Na mitologia grega antiga, o Mito de Pandora aponta para esta caixa misteriosa, capaz de esconder aquilo que não pode ser visto, e que tem o poder de acometer toda a humanidade.
Pela interrupção que provoca, a Covid-19 pode ser visto, agora, como um elemento desta caixa-surpresa, um verdadeiro box, contendo uma mensagem encriptada, e que não é apenas um tema de estudo e interesse de geneticistas, mas também de filósofos, teóricos políticos e cientistas sociais.
Para os geneticistas, o vírus é codificação genética, mas, para filósofos, teóricos políticos e cientistas sociais, e também para ambientalistas, ele mais se assimila a um pacote de informações. A tarefa comum a todos, agora, é a de ler as mensagens que estão codificadas em seu interior, destrinchando possibilidades de sentido. Umas, levam à cura da doença, se forem decodificadas. Outras, devem levar a uma melhoria das condições de socialização, se forem bem compreendidas.
3. O cotidiano e as patologias sociais
Mas, então, nos perguntamos: o que há de errado com o cotidiano? Qual a importância de detectar a patologia social para a vida em sociedade?[2] Aparentemente, não há nada de errado com o cotidiano. E, talvez, numa sociedade pós-pandemia, devêssemos continuar agindo e pensamento da mesma forma como temos feito, dando com isso continuidade intocada à anquilosada forma de socialização que nos organiza e aos interesses prioritários que nos guiam.
Mas, então, onde está a patologia? Ela já está aqui, nas ações e nas mentalidades, e sequer nos apercebemos de quão tóxicos se tornaram os ambientes tocados (controlados, manipulados) pela humanidade — da intoxicação do solo, da água, do ar à toxicidade da política, das redes sociais e do convívio cotidiano – constituídos na base do orgulho, do egoísmo, da posse e da competição individualista. Em nosso cotidiano, normalizamos o absurdo, e nos habituamos com as patologias sociais, sem nos darmos conta de sua periculosidade, apenas nos importando com o surgimento das repentinas patologias sanitárias.
4. As patologias do ontem e do hoje: a locomotiva desgovernada
O século 20 se encerrou com uma franca sensação de exaustão do projeto da modernidade. É a isto que chamamos, na vida intelectual, de contexto pós-moderno. E, assim, adentramos ao século 21. Em 2001, quando do atentado às torres gêmeas de Nova York, o filósofo alemão Jürgen Habermas (Borradori, 2004)[3] enxergou o primeiro evento do século 21 para a formação de uma esfera pública mundial.
Agora, duas décadas corridas, vimos convivendo com as coisas de tal forma que vamos da política como guerra às intolerâncias do cotidiano, e, destas, à proliferação da pobreza e das desigualdades globais. O que começa a se mostrar, aos nossos olhos, por agora, é uma parte da mensagem encriptada, que a caixa de Pandora traz à tona: ao modo de uma locomotiva desgovernada, próxima a descarrilhar, a parada forçada apenas previne uma catástrofe ainda maior de nossa marcha em direção ao futuro.
5. Ordem, desordem e re-ordenação: a natureza como agente da desordem
A Covid-19 implica numa nova desordem imposta à ordem das coisas. O cotidiano, nisto, sofre seus abalos. E isso porque saímos de uma ordem conhecida, mergulhando numa des-ordem, à qual todos(as) custam a se adaptar. Mas, após uma re-ordenação, tudo poderá se re-instaurar.
O que há que se perceber, por agora, é que, diferentemente do século 19, ou mesmo, do século 20, em que os momentos de revolução eram da ordem da luta social, agora, a des-ordem é instaurada pela natureza. E, de fato, a Covid-19 é uma mutação viral.
Mas, ainda assim, uma expressão da microbiológica vida natural. Então, a des-ordem que nos é imposta, é um ato da natureza. Neste ponto, o filósofo esloveno Slavoj Žižek aponta para a necessidade de percebermos algo que parece de todo significativo para a decodificação desta mensagem encriptada (Žižek, 2020).[4]
6. Presença predatória e meio ambiente: entre subordinar e subordinar-se
Enquanto ato da natureza, a mensagem que se abre aos nossos olhos para ser lida, abre também, um pouco mais a nossa mente. Ela diz, em voz tonitruante: “o modelo civilizatório está equivocado”! Essa constatação já havíamos evidenciado, há alguns anos através, no último capítulo do livro O direito na pós-modernidade (Bittar, 2009).[5]
O que este ato da natureza nos traz à consciência é a necessidade da reversão da lógica que se estabeleceu entre nós, segundo a qual o homem moderno se tornara senhor da natureza, numa relação tal que S-n. Isso impõe uma revisão. A des-ordem que nos acometeu, uma vez imposta pela natureza, interrompe a velocidade, o excesso, a poluição. Talvez, sua primeira lição seja a de que toda tentativa de seguirmos no mesmo compasso desritmado de hiperaceleração seja desintalado para ser colocado em suspensão, num ato de privação: a nova desordem faz tudo parar, produção, trabalho, cidade, comércio, relações. Em seu minúsculo tamanho, e dotado de coroa, o vírus tem a potência de dizer, por suas informações codificadas, que o homem moderno foi destronado de sua posição senhorial de mundo.
7. Tempo, lucro e trabalho: individualismo e consumismo
O modelo civilizatório, a velocidade absurda (Rosa, 2015),[6] o tempo tresloucado, e a desapropriação da vida. E, com ela, o sentido da experiência da vida. De repente, paramos de nos deparar com aquela frase ressoada todos os dias: “Olá, quer comprar?”. Efeito único do isolamento e da privação do espaço público! Mas, deve-se verificar que esta frase é reveladora de nosso cotidiano. Ela diz da prontidão para reificar as relações sociais (Honneth, 2007).[7]
Talvez, ela seja ‘todo-significante’ de nossos processos de socialização, capazes de desertificar o convívio social inundando-o de mercadorias. À volúpia produtiva, se segue o esgotamento da vida em trabalho. À histeria rítmica produtiva, se segue a idolatria das coisas. Ao consumo desenfreado, se segue (curiosamente) a privação das coisas, em tempos de crise. Talvez, seja esta a oportunidade para reformular o modo como nos reportamos à esfera do Outro, e aí, quem sabe, aquela ‘frase reveladora’ possa se modificar para algo como: “Olá! Você está bem?”.
8. Consolidando muros: trocas sociais, isolamento e confinamento
A Covid-19 leva ao afastamento social, à redução do convívio e das práticas do comum. As palavras isolamento, confinamento, privação e restrição, de repente, assumiram as narrativas do hoje. A conclusão tem sido a de que a Covid-19 ergueu muros entre as pessoas. Mas, deve-se contestar: isto não é verdade! A Covid-19 não ergueu muros entre as pessoas e não estilhaçou o convívio social; ele apenas colocou o último tijolo ali onde já havíamos colocado dezenas de tijolos.
Galopavam, entre nós, as formas de intolerâncias, e as rupturas dos vínculos sociais já se faziam evidentes. Rotos, os laços sociais já minguavam há pelo menos alguns anos, e, agora, têm toda a força para se mostrar apenas completos. Talvez, aqui esteja uma outra mensagem encriptada na caixa de Pandora, algo que aponta para o fato de que a troca social é maior do que a troca de mercadorias. E, talvez, nos apercebamos de que não há isso: a sociedade como o mero trasfundo para o egoísmo dos indivíduos. Nós somos a sociedade, e a sociedade está em nós. Por isso, talvez agora, consigamos ouvir e entender o que afirmava o sociólogo Zygmunt Bauman: “As raízes de nossa vulnerabilidade são de natureza política e ética” (Bauman, 2008).[8]
9. Coronavírus, legislação e democracia: entre a fragilidade social e a potência dos governos
O contexto é, atualmente, o de crescimento das práticas e formas de exercício do poder fundadas na restrição às liberdades e no cultivo da concentração do poder de excepcionar as regras que circundam as enormes conquistas de liberdades e direitos fundamentais. E é, neste tempo, que as autoridades legislam na exceção. Esta se tornou uma oportunidade para que se instaure a normalização do Estado de Exceção, em detrimento do Estado Democrático de Direito, como nos alerta o filósofo italiano Giorgio Agamben.[9]
Soam quase que proféticas as suas reflexões, a este respeito: “O estado de exceção, hoje, atingiu exatamente seu máximo desdobramento planetário” (Agamben, 2004).[10] Mas, isto foi escrito há quase duas décadas atrás.
A Covid-19 atualiza à máxima potência o debate em torno do pensamento das categorias desenvolvidas no interior do pensamento filosófico de Giorgio Agamben. E, mais recentemente, em Contagio (Agamben, 2020),[11] o filósofo italiano poderá afirmar que fomos convertidos em cidadãos-bomba, ou seja, portadores infecciosos em potencial da Covid-19, e, por isso, nos tornamos ameaças biológicas ambulantes, que devem ser afastadas, medicadas e isoladas. Por sua vez, o também teórico italiano Roberto Esposito nos adverte para o fato de que este contexto é favorável a medidas que colocam os governos autoritários na frente dos governos democráticos (Esposito, 2020),[12] colaborando-se com isto com mais uma tendência de nossos tempos, ou seja, a tendência de fortalecer o desprestígio, o desprezo, a fragilidade da aposta na democracia.
10. Epílogo: uma sociedade pós-pandemia
A sociedade pós-pandemia não deve nada ao presente; deve apenas seguir o rumo incorrigível no qual se colocava? Deve ignorar todas as mensagens e deixar de lado a tarefa de decodificá-las? Talvez, sim. Ou, ao contrário, deve ser capaz de se re-criar, considerando a oportunidade da parada. Nesta última perspectiva, ainda que tímida, encontramos a possibilidade da fagulha de impulso para novos tempos. Muitas pessoas estão dizendo: ‘Quando voltar, quero voltar diferente!’. Enquanto oportunidade de re-sincronização da vida, o nosso cotidiano pode ser escrito de outra forma.
De que forma? De uma forma mais biófila, enquanto re-conexão da relação sociedade-natureza, enquanto re-fazimento da relação corpo-mente, enquanto re-ligação da relação eu-outro-eu, quando temos a inédita chance presente de fazer da des-ordem apenas uma nova ordem. As pontes para um outro amanhã ainda podem ser refeitas, com outras palavras e em outros termos (Schilling, 2002),[13] caso venhamos a dedicar mais esforços por um mundo menos marcado pelo ódio e pela diferença, pela miséria e pela fome, pelo abandono e pela violência, pelas armas e pelos territórios, pela guerra e pela produção de refugiados, e, então, mais marcado por justiça e solidariedade, por igualdade e diversidade, por reconhecimento e cidadania, por paz e cosmopolitismo.
1]“Os medos são muitos e variados” (Bauman, Medo líquido, 2008, p. 31).
[2]Cf. Honneth, Crítica del agravio moral: patologías de la sociedad contemporânea, 2009, p. 101.
[3]Cf. Borradori, Filosofia em tempo de terror: diálogos com Habermas e Derrida, 2004, p. 40.
[4]“The message is: what you did to me, I am now doing to you” (Žižek, Monitor and punish. Yes, please!, in The Philosophical Salon, Los Angeles Review of Books, Disponível em http://staging.lareviewofbooks.org/channels/the-philosophical-salon, Acesso em 02/04/2020).
[5]“Como não se poderá esperar ser possível deter o ritmo da aceleração produtivista, burocrática ou capitalista, mesmo do capitalismo de Estado chinês, e como o mero reformismo pontual não trará soluções, uma vez que as consequências já são evidentes, o século XXI será redimido pelas respostas e reações às violências impingidas à natureza. Carestia, fome, sede doenças, epidemias, mortandade generalizada, reproduções virais, catástrofes naturais, descontrole ambiental são experiências reflexas que estão previstas no itinerário do continuísmo ininterrupto do mundo do ter, desde a Revolução Industrial até os dias atuais” (Bittar, O direito na pós-modernidade, 2.ed., 2009, ps. 498-499).
[6]Cf. Rosa, Social acceleration: a new theory of modernity, 2015, p. 21.
[7]A este respeito, consulte-se o estudo Honneth, Reificación: un studio en la teoría del reconocimiento, 2007, p. 83.
[8]Cf. Bauman, Medo líquido, 2008, p. 130.
[9]“Innanzitutto si manifesta ancora una volta la tendenza crescente a usare lo stato di eccezione come paradigma normale di governo” (Agamben, L´invenzione di una epidemia, in Quodlibet, 26/02/2020, Disponível em https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-riflessioni-sulla-peste. Acesso em 02/04/2020).
[10]Agamben, Estado de exceção, 2004, p. 131.
[11]Cf. Agamben, Contagio, in Quodlibet, 11/03/2020, Disponível em https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-riflessioni-sulla-peste. Acesso em 02/04/2020.
[12]“On this political terrain, however, authoritarian regimes, due to the very nature of their power, will always be ahead of democratic governments” (Esposito, Biopolitics and coronavirus: a view from Italy, The Philosophical Salon, Los Angeles Review of Books, Disponível em http://staging.lareviewofbooks.org/channels/the-philosophical-salon, Acesso em 02/02/2020).
[13]Cf. Schilling, Falando sobre a ética e os direitos humanos em tempos de epidemia, in Anais do IV Colóquio do LEPSI, IP-FE-USP, 2002, Disponível em http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000032002000400027&script=sci_arttext&tlng=pt. Acesso em 02/04/2020).
Eduardo C. B. Bittar é advogdo. Professor associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. É Membro Titular do Grupo de Pesquisas Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/ USP).
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