Cantoras do “feminejo” ocupam o palco central da Festa do Peão de Barretos, mas ainda enfrentam machismo e preconceito em universo dominado por homens
“Tenho que agradecer muito a Deus e aproveitar cada segundo que eu tô nesse palco, sabe por quê? Não foi fácil, Brasil, não foi fácil estar nesse palco. A gente já ouviu demais que mulher não ia estar aqui em cima desse palco. Que os homens de chapéu que estão aí não iam abaixar para ouvir música de mulher nenhuma nesse Brasil. Que a mulherada não ia fazer a diferença no sertanejo. A gente quebrou obstáculos, quebramos regras, sabe por quê? Porque a gente acredita que o mundo, que o Brasil é para todos, o Brasil é justo. Barretos é justo! E não é à toa que nós estamos vivendo um momento histórico, Maraísa. A Festa das Patroas no palco principal do Barretão! É, mulherada, nós estamos podendo!”
Foi assim que a cantora sertaneja Maiara deu boas-vindas ao público de Barretos, no interior de São Paulo, no último dia 19 de agosto. Ao lado da irmã gêmea Maraísa, com quem compõe a dupla, a artista de 29 anos já havia cantado quatro músicas – entre elas seu maior hit, “10%” – quando parou pela primeira vez desde o começo do show, na principal arena da maior festa do peão da América Latina. Em êxtase, pulava e corria pelo palco, gesticulava e cumprimentava a companheira, com quem havia se apresentado horas antes no Criança Esperança, promovido pela Rede Globo no Rio de Janeiro.
“Que seja a primeira de muitas noites da mulherada aqui comandando essa festa”, continuou. “Embaixadora, embaixatriz, como é que fala esse trem aí? Vocês não acham que é a hora de uma mulher ser, não? Tem que ser a mulherada, não tem?”, perguntou à plateia, que respondeu com gritos de apoio. Todos os anos, a Festa do Peão de Barretos convida um cantor ou dupla de sucesso para ser seu representante oficial – desde 2010, quando a prática teve início, foram escolhidos apenas homens.
Antes de Maiara e Maraísa subirem ao palco, ele foi ocupado, durante uma hora e meia, por Marília Mendonça, de 22 anos, considerada outra representante da geração “feminejo”, o sertanejo protagonizado por mulheres. As três são responsáveis pelo projeto “Festa das Patroas”, que já levaram a várias cidades do Brasil. As irmãs baianas Simone e Simaria, autoras de sucessos como “Regime fechado” e “Quando o mel é bom”, completam o time de cantoras e duplas femininas no palco principal da festa.
A conquista de espaço privilegiado em um evento tão importante para o mundo sertanejo é reflexo da estrondosa visibilidade que o trabalho dessas artistas tem atingido nos últimos anos. Entre os cinco álbuns mais reproduzidos no Brasil em 2016 na plataforma de streaming Spotify, estão os CDs de Maiara e Maraísa e Marília Mendonça em terceiro e quarto lugares, respectivamente. O clipe do hit “50 reais”, da paranaense Naiara Azevedo, foi o terceiro vídeo musical mais visto no país no YouTube em 2016. No rádio, o sucesso se repete: no top 10 das músicas mais tocadas em estações AM e FM em 2016, segundo o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), quatro são delas.
“Hoje em dia, a mulher gosta mais de escutar mulher do que homem. A gente se identifica muito com as letras e pelo fato de ser uma mulher cantando”, diz a analista de controle de qualidade Karla Girardi, de 27 anos, que estava na arena principal do rodeio na noite de 19 de agosto. “[Me identifico] com a parte da independência, porque hoje toda mulher tem a sua”, explica. Ela e mais três amigas saíram de Colina, cidade vizinha, para assistir à Festa das Patroas naquela noite de sábado.
As cantoras que estavam no palco em Barretos não são as primeiras mulheres a fazer sucesso no mundo sertanejo. Inezita Barroso e as Irmãs Galvão, dupla famosa ainda hoje como As Galvão, estão entre as mais conhecidas. A novidade está na postura assumida pela nova geração do feminejo, sublinhada até mesmo por cantoras jovens, como Paula Fernandes. Em entrevista recente, a mineira demarcou a distância entre o seu estilo e o das colegas que hoje dominam a cena. “Minha música é uma música de paixão, de sonho. Então não é sofrência, é pureza. Eu tenho esse perfil de pureza”, afirmou.
Thiago Soares, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador do Grupo de Pesquisa em Mídia, Entretenimento e Cultura Pop (Grupop), também vê essa diferença. “O que acontece com as cantoras de agora é que colocam um tipo de discurso musical que parte para o enfrentamento”, diz. E explica: “Por que, por exemplo, uma música como ‘Alô porteiro‘, de Marília Mendonça, ou as de Maiara e Maraísa falando de suas noitadas de amor causam estranhamento? Porque, se a gente pega Roberta Miranda ou Paula Fernandes, ainda havia ali um discurso muito colado no ideal patriarcal, que colocava o homem, de alguma forma, num lugar de poder”, analisa.
Feminejo, que trem é esse?O feminejo entra no contexto do chamado “sertanejo universitário”, o estilo musical mais consumido pelos brasileiros atualmente além do funk. O historiador Gustavo Alonso, professor da UFPE e autor do livro Cowboys do asfalto – Música sertaneja e modernização brasileira, estabelece o ano de 2005 como marco inicial do gênero, que teve como precursores duplas como César Menotti e Fabiano e João Bosco e Vinícius e cujo epicentro é Goiânia.Há uma mudança de tema em relação à geração anterior do sertanejo, que cantava, como descreve Alonso, “músicas de corno” – letras de lamento e tristeza por frustrações amorosas que falavam da “mulher distante”. O “sertanejo universitário” veio com canções dirigidas aos jovens, com letras sobre “pegação”, baladas e bebedeira, e em tom otimista. “Quando as relações não duram, a música sempre faz apologia a uma renovação: ‘bola para frente, é vida que segue’”, destaca o professor. De acordo com ele, esse deslocamento de eixo temático tem a ver com a aproximação entre o universo sertanejo, de origem rural, e o contexto urbano, com a incorporação de valores oriundos desse cenário.O feminejo se apropriou desse discurso, antes permitido apenas aos homens. Desde 2015, quando as primeiras cantoras e duplas femininas dessa era começaram a ascender, mulheres cantam que se apaixonam e, quando o amor não é correspondido ou o relacionamento dá errado, afogam as mágoas na mesa do bar. E os relatos de “porre” não param por aí: elas contam também que saem para beber e se divertir com as amigas nas noites, ao melhor estilo “é meu defeito, eu bebo mesmo”, hit de Fernando e Sorocaba. Narram ainda intensamente a dor de uma desilusão amorosa – a famosa “sofrência” – e descrevem episódios de traição, colocando-se em todos os lugares possíveis, de traída a amante. O que essas situações têm em comum? Em todas, elas são protagonistas.A atitude afirmativa do feminejo se contrapõe não apenas à escassez de mulheres que predominou no meio durante anos, mas também à posição que a figura feminina costumava ocupar no imaginário sertanejo. “A música sertaneja, como música que nasce no cenário rural, tem as origens do cenário rural, que é, muitas vezes, machista. Não tem muito espaço para a mulher, ela é uma figura idealizada”, analisa Alonso. “As origens rurais são, em grande parte, valorizadoras desses estamentos, desses lugares tradicionais que ocupa a mulher.”
Dos bastidores para o centro do palco
Algumas das mulheres que hoje fazem sucesso com o microfone nas mãos já são velhas conhecidas do mercado sertanejo. Atuavam nos bastidores, escrevendo as letras interpretadas por nomes masculinos consagrados no meio. Composições de Marília Mendonça e Maraísa já ganharam vida nas vozes de Henrique e Juliano – “Até você voltar” e “A flor e o beija-flor”, na qual a primeira faz participação especial; e “Cuida bem dela”, de autoria da segunda – e Jorge e Mateus (a dupla sertaneja mais importante da atualidade no Brasil) – “Calma”, de Marília, e “Prisão sem grade”, de Maraísa.
Simone e Simaria, conhecidas pelos fãs como “Coleguinhas”, também trabalharam à sombra de homens antes de assumirem o comando do show: até 2007, foram backing vocals do cantor de forró Frank Aguiar. O protagonismo veio depois do retorno ao Nordeste natal, quando se tornaram vocalistas da banda Forró do Muído. Só em 2012, já adotando o sertanejo como estilo principal, viraram a atração principal.
Com Naiara Azevedo, tudo aconteceu um pouco diferente. Ela canta desde criança, mas era desconhecida do público até 2011. O hit daquele ano era a música “Sou Foda”, originalmente um funk transformado em sertanejo pela dupla Carlos e Jader, com versos de exaltação à masculinidade – “Sou foda/ Na cama eu te esculacho/ Na sala ou no quarto/ No beco ou no carro”. Em um vídeo amador divulgado no YouTube, ela respondeu com a paródia: “Coitado, se acha muito macho/ Sou eu quem te esculacho/ Te faço de capacho”. A versão feminina de “Sou foda” fez tanto sucesso que Naiara repetiu a dose com a música “Não tô valendo nada”, de Henrique e Juliano. A essa altura, ela já utilizava o slogan “Naiara Azevedo: defendendo a mulherada”.
Além de retratar em suas letras figuras femininas que desempenham papéis socialmente ligados à masculinidade, o feminejo desafia os ideais masculinos de beleza feminina. Essa nova geração de cantoras e duplas não faz questão de exibir corpos magros ou sarados – o que pode até causar estranhamento em um mercado dominado por jovens magras, mas gera um sentimento de empatia em outras mulheres.
“A Marília Mendonça é meu espelho. Sou gordinha e ela trouxe uma coisa que ninguém tinha trazido antes: se assume e não está nem aí. Geralmente, elas [artistas] entram para o mundo da música e emagrecem”, diz a professora Tamiris de Freitas, de 27 anos, sobre gostar de Marília Mendonça. Ela foi com seus amigos à Festa do Peão para curtir o show da cantora. “É com isso que me identifico, sou assim, sou de bem com a vida e pronto, acabou.”
Esse conjunto de elementos acabou funcionando como estratégia para ampliar o público do sertanejo, tornando esse universo, tão marcadamente masculino, mais atraente para grupos dele antes distantes. O professor Thiago Soares conta que vê isso acontecer em sala de aula: “Dou aula [de jornalismo] na Universidade Federal de Pernambuco. Tradicionalmente, meus alunos gostam de um bom indie rock e normalmente negam um pouco essa coisa da cultura popular. Vejo minhas alunas, muitas delas feministas, parte de coletivos, que adoram Marília Mendonça e cantam suas músicas. Através de seu discurso, acho que ela conseguiu tirar o sertanejo um pouco dos nichos no qual sempre foi consumido.”
Em São Paulo, isso também é visível. Desde junho, o coletivo “Meu cupido é gari“, cujo nome é inspirado na canção homônima de Marília Mendonça, já realizou duas festas com repertório focado no feminejo e planeja uma terceira para setembro. O grupo é formado por quatro sócios, três deles responsáveis por blocos de carnaval e outras festas da noite paulistana, algumas ligadas ao público LGBT, que definitivamente não é consumidor habitual de música sertaneja. A DJ Renata Corr, uma das organizadoras, conta que começou a sentir a demanda por um evento desse gênero quando os frequentadores de sua festa passaram a pedir músicas das cantoras e duplas femininas. “Acho que esse movimento se deve a um conjunto de coisas: por serem mulheres e terem tomado um espaço antes dominado por homens, serem cativantes e cantarem bem. Tudo isso aproximou o público LGBT [do sertanejo]”, avalia.
É feminista ou feminejo?
A aproximação de públicos antes distantes do sertanejo também levanta a pergunta que não quer calar: o feminejo é feminista?
As “musas” do feminejo não respondem taxativamente à pergunta.
“Eu falo que eu não sou feminista de conceitos, sou adepta do feminismo na minha vida. As minhas atitudes mostram que eu sou adepta disso, porque conquistei tudo na minha vida praticamente sozinha, com muita garra, muita persistência, sem pedir que as pessoas sentissem pena de mim ou me achassem diferente porque eu era uma mulher”, declarou Marília Mendonça ao G1 poucos dias antes de se apresentar na Festa do Peão. Em abril, Maraísa foi mais ou menos pela mesma linha: “Sinceramente, cantamos o que sentimos e mostramos que temos direitos iguais aos dos homens. Se agradamos às meninas do movimento feminista, ficamos felizes”. Já Naiara Azevedo afasta de vez o título: “Não [me vejo como feminista], me considero uma mulher justa”, disse em conversa transmitida ao vivo pelo Facebook do jornal Extra. “Eu sou muito religiosa e acredito que isso seja bíblico: o homem é a cabeça, é o chefe da casa, mas a mulher é o pescoço.”
Para Gustavo Alonso, o mais relevante é o próprio debate. “Se isso chegou na música sertaneja, talvez tenha atingido uma camada da população a que ainda não havia chegado”, ressalta. “O interessante é isso: a chegada de um discurso de gênero na música sertaneja, massiva, mainstream. Isso havia acontecido nos anos 1970, com Caetano Veloso, porém com outras cores, tonalidades e propósitos; enfim, na MPB acontecia. Mas no sertanejo é a primeira vez. Esse discurso de gênero chegar a esses setores é algo bastante significativo.”
Em um meio no qual a masculinidade reinava absoluta, é evidente a importância dessas mulheres cantando letras escritas por elas mesmas e rejeitando, ainda que não propositadamente, padrões que sempre interferiram na maneira feminina de existir e agir. Mas é preciso ter calma ao vislumbrar as transformações que essa nova cena pode suscitar. “Obviamente, o volume de artistas e a reencenação do discurso agem no social. Mas não é porque há artistas no sertanejo falando disso que o público vá questionar o machismo agora. Há uma dinâmica de espetáculo, de distanciamento, e a ingerência pelo social não é imediata, é a longo prazo”, frisa Thiago Santos. “Acho muito apressado adotar um discurso de que essas figuras estão mudando a cara [do machismo]. Esse discurso não é estanque. Essas pessoas [artistas] não são militantes, estão numa dinâmica de mercado e podem recuar, inclusive.”
Passado, presente, futuro
“Eu ladrilhei as ruas para que elas hoje pudessem passar. São meu legado, minhas meninas, minhas sementinhas”, diz Roberta Miranda com os olhos cheios de lágrimas. Em 2017, a “rainha do sertanejo” completou 30 anos de carreira e, em entrevista recente, falou sobre as dificuldades que enfrentou para construir um trabalho sólido num universo dominado por homens.
No DVD Os tempos mudaram, lançado em julho, Roberta comemora as três décadas de estrada. O auge do show, gravado em 8 de março deste ano, Dia Internacional da Mulher, é a música “Majestade, o sabiá”, em que divide o palco com as principais expoentes do feminejo (veja no vídeo abaixo). Em 2015, quando essa geração começava a estourar, ela gravou vídeo em homenagem às novas cantoras que despontavam.
Roberta não é a única a falar com entusiasmo das mulheres que vêm conquistando seu espaço no sertanejo. As irmãs Mary e Marilene Galvão, da dupla As Galvão, garantem acompanhar de perto o trabalho das novas colegas de profissão. “Nós as aplaudimos, porque isso demonstra que não fizemos as coisas em vão. Valeu, né, mana?”, afirma Mary, de 77 anos, segurando a mão esquerda da irmã, de 75, sentada ao seu lado. “Porque agora se consegue ligar a televisão na Globo e ver as mulheres fazendo sucesso.”
Com 70 anos de carreira, As Galvão são a dupla sertaneja em atividade há mais tempo no Brasil. Estrearam como Irmãs Galvão em 1947, numa rádio de Paraguaçu Paulista, no interior de São Paulo – em 2002, o nome do duo mudaria. Gravaram juntas mais de 300 músicas, entre as quais os sucessos “Beijinho doce” e “No calor dos teus abraços”, e são consideradas referências no sertanejo nacional.
O caminho não foi nada fácil. “A menina que resolvia ser artista – não só cantora, atriz, qualquer coisa que resolvesse fazer –, a família já não gostava, porque passava a ser prostituta”, explica Mary. Ela destaca um episódio específico, durante a infância, revelador de todas as dificuldades que enfrentariam dali em diante. “Nosso pai recebeu carta de uma de suas irmãs dizendo ‘lamento que você esteja colocando suas filhas na vida’”, rememora. “Ele disse para todos nós: ‘Isso não vai acontecer com elas’. E não é que ele tenha sido carrasco, foi vigilante. Como crescemos nesse ambiente, e éramos ‘as meninas’ – tanto que até hoje somos ‘as meninas’ –, foi difícil cortar essa pecha de ‘mulher artista é vagabunda’.”
Mary recorda que, quando eram contratadas para se apresentar em alguma cidade, o prefeito normalmente as convidava para conhecer sua casa e família. O roteiro pouco variava: “Sempre a esposa nos recebia mal, de cara fechada, e não se manifestava com alegria diante da nossa presença”, relata. Por isso, desenvolveram uma estratégia para driblar essa desconfiança. “Quando ele [prefeito] pedia para que sua mulher fosse fazer um cafezinho, nós, com aquela psicologia natural de sobrevivência, já nos colocávamos à disposição para ajudar. ‘Não, não precisa’; ‘Ah, mas deixa a gente ajudar’. ‘Nossa, sua casa é maravilhosa’, e já levantávamos e a acompanhávamos até a cozinha, para mostrar que não estávamos interessadas no marido dela. Aí mudava o tratamento.” “E o pai junto, sempre”, complementa Marilene.
Ao longo dessas sete décadas, As Galvão vivenciaram o machismo em suas diversas formas. Em certo momento de sua trajetória, sentiram-no limitando suas possibilidades de crescimento na carreira. “Depois de adultas, quando começamos a gravar, as gravadoras faziam tudo pelas duplas masculinas e pelas femininas não. Não fomos só nós. A dupla masculina fazia sucesso, tinha todo respaldo – divulgador, pagavam avião, hotel. A mulher, por mais que tivesse um trabalho bem-feito, era posta na gaveta. Aí nós conseguimos provar que a mulher podia fazer”, conta Mary.
“Agora, todas elas [cantoras e duplas femininas] têm respaldo de empresários, patrocinadores”, ela diz. “No nosso tempo não tinha nada disso, era circo, e o pai que vigiava tudo e cortava todas – flerte, imagina, nem pensar”, afirma. O que não quer dizer que o preconceito acabou, destaca Mary. “Quantas mulheres estão fazendo sucesso? Duas duplas e duas mulheres entre um mundo de homens que estão aí. E com um número imenso de mulheres e meninas lindas tocando viola, cantando maravilhosamente bem. Todos eles sabem disso, mas ninguém dá a mão.”
Para quem ainda está no caminho, nada vem fácil, como contam Bruna Souza Gusmão, de 27 anos, e Fabiana Rosa Damasceno, de 35, que há três anos formam a dupla Bruna e Faby. Naturais de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, começaram a cantar juntas por intermédio de uma amiga em comum. No início, o repertório era voltado à MPB, só que, durante os shows em bares, o público teimava em pedir músicas sertanejas. Como ambas gostavam do estilo, decidiram mudar – hoje, Bruna faz o vocal e toca violão, enquanto Faby é responsável pela segunda voz e cajón. Embora ainda não tenham banda, empresário ou um canal no YouTube – o meio mais utilizado pelos sertanejos para divulgar seu trabalho, além das redes sociais –, elas agora já conseguem viver exclusivamente da renda gerada pela dupla, que tem apresentações contratadas para as noites de quase todos os dias da semana, de quarta a domingo.
“Já teve dono de lugar que nos chamou para tocar e depois disse: ‘Estava com medo de contratar vocês, fiquei meio assim, mas vocês são muito boas’. Mesmo [as artistas do feminejo] tendo estourado, com as que não estouraram ainda tem essa coisa de ‘ih, é mulher, não sei’’, diz Faby.
Já foi pior. ‘Certa vez, chegamos em um bar para entregar nosso cartão e o cara nos tratou supermal. Mal olhou na nossa cara e disse: ‘Aqui não tem sertanejo, não, é só no bar do lado’. Não deu nem boa-noite, nada. Fomos ao bar ao lado, deixamos nosso cartão e o cara que nos recebeu lá agiu da forma oposta. Tocamos nesse bar desde que começamos. No ano passado, o rapaz do primeiro bar, que discriminou a gente, me chamou e perguntou se nossa agenda estava disponível às quartas-feiras. Respondi que não porque já tocávamos em outro lugar. Isso porque o bar ao lado estava bombando”, lembra Faby. “Ele não nos deu crédito. Ficamos bem chateadas. São coisas que acontecem bastante no início, mas esse foi [o episódio] que mais nos marcou. Sempre nos lembramos disso.”
Bruna se sente motivada pelo sucesso dessa nova geração: “Elas nos deram coragem. Vimos que, se com elas deu certo, com a gente também pode dar. Olhamos para elas e temos mais coragem, mais força [para correr atrás] daquilo que a gente quer”.
A cantora paulistana Thainá Cardoso, de 22 anos, também já sentiu na pele as dificuldades enfrentadas pelas colegas com mais tempo de estrada. “Sofri muito preconceito de contratante não querer me contratar porque a maioria do público da casa de show era feminino e elas teriam ciúme. Aí eu falava: ‘Então me deixa fazer um show aí de graça, mostrar meu trabalho’ – porque, por mais que a gente venda a imagem, não é só isso, tem a qualidade do trabalho que fazemos”, conta.
Como Bruna e Faby, Thainá – que começou a cantar aos 17 anos – hoje consegue viver da música. Artista independente, ela conta com uma equipe de dez pessoas – formada pelos músicos de sua banda, profissionais da área comercial, de produção e assessoria – e realiza shows em grandes casas de São Paulo e interior. Em julho, lançou “Bem que podia“, seu primeiro single a entrar em todas as plataformas digitais, cujo videoclipe, divulgado no YouTube, tem mais de 100 mil visualizações.
Thainá acredita que a ascensão do feminejo tem beneficiado cantoras e duplas femininas que ainda não atingiram o auge da carreira. “O público sertanejo ainda é feminino, e hoje as mulheres ouvem outras mulheres cantando. Quem frequenta as casas de show são essas mulheres, então, os contratantes querem cada vez mais mulheres cantando para esse público. A procura hoje é muito maior, com certeza ajudou muito”, destaca.
Para ela, a quebra de estereótipo provocada pelo feminejo abalou o conservadorismo em relação às composições femininas. “O que ajudou muito foi a liberdade de expressão, o fato da gente poder cantar o que quiser. Se eu quiser fazer uma música aqui para te contar um episódio da minha vida – ‘saí com um cara ontem, mas estou com outro hoje’ – se eu quiser colocar isso na música, não tem mais preconceito. A liberdade de expressão é outra coisa”, ressalta.
Mas que ninguém se iluda. Além da dificuldade para sobressair no mercado, ainda dominado por homens, o machismo também mostra as caras nos bastidores do sucesso. O assédio, por exemplo, é comum. “Esses caras [donos de casas de show, empresários], como têm poder, tentam na cara dura”, conta Thainá.
Por essas e por outras, a experiente Mary Galvão é cautelosa ao falar do sucesso da mulherada. “Só vou te falar que acabou o preconceito, com a graça de Deus, o dia em que virmos 200 mulheres estourando, como os homens – e cada um que entra estoura. A mulher ainda tem que ralar, não é fácil”, diz.
Festa de machoA reportagem da Pública esteve em Barretos durante o primeiro final de semana do rodeio, nos dias 19 e 20 de agosto. Dormiu no camping instalado na fazenda que abriga as instalações do Parque do Peão e visitou outros locais da cidades em que pessoas se reúnem paralelamente à festa. A conclusão é evidente: mesmo com as mulheres dominando o palco central, o evento continua sendo dos homens.Tradicional, a Festa do Peão de Boiadeiro ocorre em Barretos desde 1947. Em 1956, passou a ser organizada pela associação Os Independentes, fundada um ano antes por 20 amigos em uma mesa de bar. Para se tornar parte do grupo, foram estabelecidos pré-requisitos básicos que valem até hoje, como, por exemplo, ser homem maior de 22 anos, solteiro e financeiramente autossuficiente. Mulheres nunca foram permitidas por uma questão de “manutenção das tradições”, conforme afirmou José Tupynambá, um dos primeiros membros, em entrevista recente à Folha de S.Paulo.Mas é verdade que também as barretenses, em sua maioria, apreciam a festa. “Gostamos primeiro porque é a única atração que temos no ano para nos divertirmos. Segundo, por causa do emprego: as pessoas alugam suas casas, o comércio vende mais, hotéis e restaurantes recebem pessoas. E muita gente trabalha no Parque – na limpeza, nos mercados, como vendedores”, explica a advogada Fernanda Morato, presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB de Barretos. Os Independentes garantem que cerca de 10 mil empregos são gerados de forma direta e indireta na cidade durante a festividade.O rodeio, em si, é uma prática masculina. Em Barretos, mulheres podem competir em apenas duas modalidades: a dos três tambores (em que a amazona tem de contornar três tambores dispostos em forma de retângulo) e a do team penning (na qual um trio deve levar até o curral bezerros em meio à boiada). As demais provas são restritas aos homens. “[No rodeio] tudo gira em torno do homem. Já viu alguma mulher como narradora? Não tem”, aponta a historiadora barretense Paula de Medeiros. “O único destaque que tem a figura da mulher nesse espaço é como rainha da festa [todos os anos, Os Independentes escolhem uma mulher para ocupar esse posto]. E isso leva em conta seu corpo, não se avalia outros tipos de habilidade como se faz em relação ao peão que monta um touro.”Em 2016, Paula de Medeiros aplicou um questionário online sobre violência contra a mulher e assédio na Festa do Peão. Segundo a historiadora, ao longo de sete meses, 300 mulheres com idade entre 19 e 27 anos responderam à pesquisa informal, que se referia a fatos ocorridos nos rodeios a partir de 2000. Como resultado, obteve números alarmantes: 65,9% admitiram ter sido beijadas à força, 60% declararam ter sido agredidas verbalmente ao negar contato ou abordagem masculina, e 59,3% disseram que tiveram suas partes íntimas tocadas sem consentimento. Houve relatos de estupro por parte de 2,7% das entrevistadas. A ideia é que os dados baseiem um futuro projeto de lei municipal que determine a veiculação de campanhas de combate à violência de gênero antes e durante a Festa do Peão, algo hoje inexistente.Mas o machismo extrapola os limites do Parque do Peão. Na avenida 43, no centro da cidade, o ponto de encontro de quem quer fazer um “esquenta” para os shows à noite, tornou-se comum a prática de literalmente laçar mulheres com corda. A estudante Betânia Barbosa, de 20 anos, que estava na avenida com uma amiga no domingo, dia 20, conta já ter passado por essa situação: “Eles jogam a corda em você e puxam. Aí você tem que ficar [beijar], se não ficar, eles não te soltam”. Outra estudante, Caroline Oliveira, de 21, que também estava com as amigas na 43 naquela tarde, conta ter sido laçada em outra festa. “É constrangedor, não tem como”, afirma. “Pra eles, é normal, para mim não.” “Era por ‘zoeira’, mas às vezes chegava a ser agressivo, se a pessoa não quisesse’, ressalta a estagiária em engenharia de produção Paola Lázaro, 21 anos, entrevistada pela Pública no mesmo local.“No rodeio há uma cultura machista de que o homem tem essa característica de ser bruto, rústico e sistemático – é a expressão que eles usam [em referência à música da dupla João Carreiro e Capataz]”, analisa Paula de Medeiros. “Por isso, o assédio é naturalizado. Há a mentalidade de que o peão tem pegada, é mais rústico, e por isso ele nunca chegará com delicadeza numa mulher.”O “laço de mulheres” acontecia com tanta frequência que, em 2010, a Polícia Militar de Barretos chegou a divulgar uma espécie de cartilha sobre como agir nas festas da avenida 43. “Pode ‘laçar’ as pernas da mulher? Não. Constitui crime e pode dar cadeia. Melhor paquerá-la de outras formas!’, informava o texto. À época, era levar para a delegacia quem fosse pego desobedecendo à orientação. Quando estivemos no local este ano, o policiamento era tão intenso a ponto de não haver um carro sequer com som ligado – aliás, a missão dos PMs, segundo um dos agentes ouvidos pela reportagem, era justamente evitar que a ‘bagunça” acontecesse.O fato não impede a postura predatória dos homens em relação às mulheres da avenida 43 ao Parque do Peão. No complexo onde é realizado o rodeio, existem duas áreas de camping destinadas ao público geral: a “dos casados” e a “dos solteiros”. “O setor ‘Casados’ é o preferido de grupos e famílias que desejam maior sossego, com horários definidos para o toque de silêncio e festas restritas ao período diurno. “No setor ‘Solteiros’ há um ambiente de confraternização entre os usuários, com festas – permitidas – que invadem noites e madrugadas”, define o site dos Independentes.O público do “camping dos solteiros” é composto majoritariamente por homens. Alguns estavam ali apenas para passar o final de semana e dormiam nos próprios carros. Outros, pretendendo permanecer mais tempo acampados, montavam barracas e tendas que abrigavam churrasqueiras, mesas, cadeiras e até geladeiras. Havia ainda grupos alojados em ônibus. Vindos de diversos lugares do Brasil – do interior de São Paulo à região Sul – e de idades variadas, procuravam a “farra” pela qual o local é conhecido. Não se paga barato para estar lá: a estada por um final de semana custa R$ 500 por pessoa e é cobrada uma taxa adicional de R$ 200 por automóvel.A diversão consiste, basicamente, em uma mistura de trilhas musicais tocando alto e quase ininterruptamente e na bebedeira que rola solta pelos vários dias de festa. O chamariz principal, porém, é a presença das prostitutas que viajam até lá com a garantia da abundância de clientela. Paula (cujo nome real foi preservado), de 27 anos, estava no camping pelo quarto ano, dessa vez acompanhada por mais três amigas. De Santa Catarina, ela chegou no dia 18 e foi embora apenas na semana seguinte, no domingo que marcou o fim do rodeio. “Venho para curtir a festa e pelo financeiro também, vale a pena, compensa”, relata. Ela cobra R$ 150 pelo programa e R$ 100 pelo show de strip-tease, que normalmente acontece em cima da parte traseira de alguma caminhonete estacionada no acampamento.Fixadas em postes espalhados pelo terreno, há placas que comunicam ser “proibidos atos obscenos”, sob pena de expulsão, mas os seguranças do camping assistem a tudo com a postura de quem já viu aquele filme passar algumas vezes. É comum cruzar com mulheres tirando a roupa enquanto dançam. Quando isso acontece, os hóspedes do camping sacam seus aparelhos celulares do bolso, filmam as cenas e distribuem o vídeo para seus grupos de WhatsApp.Se você for homem e morador de Barretos, muito provavelmente receberá ao menos um desses registros por dia. Os donos da festa são os mesmos de sempre.
*Imagens cedidas pela assessoria de imprensa da Festa do Peão de Barretos
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