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domingo, 10 de setembro de 2017

Como o sistema prisional lida com transtornos de personalidade

Apoiada em amplo levantamento de dados, pesquisadora revela limitações do tratamento jurídico-penal dado a pessoas com a condição

Por Raphael Concli
USP
05/09/2017

A privação da liberdade não é a única pena possível para um crime. Para que se determine o tipo de pena e sua duração, o Código Penal prevê que o juiz leve em conta em sua avaliação a personalidade, conduta social e comportamento do agente que o cometeu, além das circunstâncias e consequências da ação. Mas esta diretriz, estabelecida no artigo 59 do Código Penal, é de fato seguida? E no caso de pessoas com transtornos psíquicos, é feito o encaminhamento adequado?

São questões como essas que a pesquisadora Anna Cecília Santos Chaves decidiu investigar em seu doutorado Crimes violentos e suas relações com transtornos da personalidade: implicações jurídico-penais, realizado na Faculdade de Direito (FD) da USP.

Em seu trabalho, Anna produziu literalmente um diagnóstico sem precedentes a respeito de questões da saúde psíquica na população carcerária. E constatou que, além de subdiagnosticadas, pessoas com transtornos de personalidade deveriam receber acompanhamento mais adequado nas unidades prisionais.

O dilema da punição

No campo da saúde mental, há os chamados transtornos clássicos, aqueles que privam a pessoa da capacidade de entender aquilo que faz ou de controlar os próprios atos, como a psicose. Quando pessoas com tais condições cometem crimes, o direito penal oferece uma alternativa à pena de prisão, através das chamadas medidas de segurança. Estas preveem a internação em um hospital psiquiátrico ou o tratamento ambulatorial.

Como explica a pesquisadora, os transtornos de personalidade são uma categoria dos transtornos mentais que podem causar prejuízos no entendimento e controle das próprias ações, mas não impedem na totalidade estas capacidades. Indivíduos com esta condição podem então ser responsáveis por seus atos, mas são considerados semi-imputáveis: podem receber uma pena de prisão ou a sanção penal da medida de segurança como alternativa. Como o Código Penal brasileiro adota um sistema chamado vicariante, apenas uma dessas duas sanções pode ser imposta.

Entretanto, “há um enorme debate tanto na psiquiatria quanto entre juristas sobre qual seria a medida mais adequada para este perfil de indivíduos. E não existe consenso”, aponta Anna. Como a escassez de dados sobre a questão é grande no Brasil, tais discussões pautam-se, em boa medida, em literatura e pesquisas estrangeiras, ressalta a pesquisadora.

Pelos dados levantados, notou-se também que pessoas vindas de regiões de maior vulnerabilidade social não cometiam necessariamente mais crimes – Imagem: Eternos Caminhantes, de Lasar Segall (Unicamp-Warburg-CHAA)
.
A avaliação que o Código Penal demanda é feita também de forma problemática, como aponta Anna, sendo baseada muitas vezes apenas no histórico de crimes cometidos pela pessoa, e não numa investigação de cunho psicológico, como sugere a pesquisadora.

“Se a nossa lei manda examinar a personalidade, esse exame tem que ser feito. Ele tem que ser feito de uma forma mais cuidadosa, menos subjetiva do que simplesmente analisar a sua vida pregressa, o que você fez ou não fez. Você é mais do que seus crimes, ou que sua ausência de crimes.”

Anna propõe que haja uma equipe nos tribunais ou nas varas criminais que faça essa avaliação de personalidade. Assim o subdiagnóstico seria eliminado, abrindo-se a possibilidade de garantir o acompanhamento terapêutico ao indivíduo no presídio como parte de sua sentença. Este tratamento deveria ser oferecido obrigatoriamente, mesmo que o indivíduo viesse a recusá-lo.

“O acompanhamento psicológico e psiquiátrico com este propósito terapêutico dentro das unidades prisionais teria um impacto enorme no sentido de realizar o propósito de ressocialização, que é um propósito que nós adotamos no nosso sistema jurídico-penal.”

Das entrevistas aos dados

Em seu recorte, Anna entrevistou 116 homens em regime fechado, dos quais ela não possuía qualquer informação prévia, nos três presídios com maior população no Estado de Minas Gerais. A amplitude e diversidade da população carcerária destes locais permitiria uma amostra representativa do Estado. Os vários encontros, de mais de uma hora e meia cada, lhe permitiram descobrir inúmeras histórias e olhar para além do delito.

Antissocial: desprezo das obrigações sociais, falta de empatia, desvio entre comportamento e normas sociais. Baixa tolerância à frustração e agressividade | Borderline: perturbações da autoimagem, do estabelecimento de projetos e preferências pessoais. Sensação crônica de vazio, relações intensas e instáveis e tendência ao comportamento autodestrutivo | Paranoide: sensibilidade excessiva face às contrariedades, recusa de perdoar os insultos, caráter desconfiado, tendência a interpretar ações dos outros como hostis ou de desprezo.


Um curso preparatório realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a habilitaria a aplicar dois testes para obter a realização dos diagnósticos: a Entrevista Clínica Estruturada para DSM-IV e a minientrevista neuropsiquiátrica internacional 5.0. Trata-se de questionários elaborados precisamente para este fim, e que podem ser aplicados para fins de pesquisa por quem não tenha formação na área médica.

Os dados mostraram que cerca de 56% dos indivíduos apresentam algum transtorno de personalidade. Mas não se pode afirmar que estes sejam a causa dos crimes. O que se pode dizer é que tais transtornos indicam maior probabilidade de cometê-los, mas mesmo assim é preciso considerar fatores como as circunstâncias e o ambiente, lembra Anna. Outra descoberta relevante é que transtornos de personalidade são fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos por uso de substâncias psicoativas, como o vício e dependência em álcool e outras drogas.

Anna espera que o trabalho possa servir tanto pelo levantamento exaustivo de dados novos, como também enquanto suporte para possíveis transformações no tratamento dado às pessoas com transtornos de personalidade. A pesquisa, afinal, não trata só do diagnóstico da população carcerária, mas do sistema jurídico de forma mais geral.

Quando você se propõe a pesquisar a prevalência de algo como transtornos mentais na população carcerária, longe de buscar estigmatizá-la, você está indicando que existe um problema e que há necessidade de intervenção e criação de políticas públicas para se tratar esta questão.

A tese foi realizada sob orientação do professor Daniel Martins de Barros, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).

Mais informações: e-mail acschaves@yahoo.com.br

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