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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Viva o feminismo agonístico

Carla Rodrigues
16.01.18
Gastei muito tempo, nos idos do início do século XXI, tentando convencer homens – e também algumas mulheres – que não, o feminismo não tinha acabado, como queriam os arautos do retrocesso, e nem fazia sentido decretar o fim dos movimentos feministas, pois ainda faltava muito para que as relações de trabalho, sociais e familiares fossem pautadas pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. É, portanto, uma imensa alegria ver feministas – norte-americanas, francesas, brasileiras, mas não apenas – debatendo violência contra as mulheres, assédio sexual em ambientes profissionais e submissão de mulheres aos privilégios dos homens, como aconteceu na semana passada (aqui, uma excelente compilação dos principais textos publicados).

Discutir assédio, abuso e violência é fundamental, claro, e mais ainda discutir as formas de mudar essas práticas, o que não necessariamente passa apenas pelo recurso à lei criminal ou, menos ainda, pela condenação de acusados. Por isso eu gostaria de ir além e abordar uma questão de método. Para os pouco afeitos à política feminista, os inúmeros manifestos, cartas e artigos podem parecer apenas uma imensa confusão de vozes dissonantes que não chegam a lugar nenhum. É exatamente nessa espécie de torre de Babel de discursos – de aparência contraditória ou conflituosa entre si – que está o meu interesse em argumentar que hoje os feminismos carregam, na política, uma dupla potência.
A primeira potência, por óbvia, não precisaria ser repetida, mas vamos lá: nada justifica nem as diferenças ainda existentes entre homens e mulheres nas sociedades contemporâneas, nem o racismo, a violência, a discriminação e a permanente suposição de subalternidade, presente dos menores aos maiores gestos. Os movimentos feministas são a principal insurgência contra esse estado de coisas, o que faz das mulheres o motor das transformações nas relações econômicas e sociais. Poderia se argumentar que a segunda onda feminista talvez tenha nos deixado um legado “meramente cultural”, seguindo os termos do debate estabelecido entre Judith Butler e Nancy Fraser na New Left Review, cuja tradução no Brasil é pertinente para as questões atuais, mas esta seria outra conversa.
A segunda grande potência dos movimentos feministas costuma ser tratada como demérito, defeito ou falha: há lugar para muitas vozes, elas são heterogêneas, os acordos são parciais, as alianças são contingentes, as divergências são valorizadas. Neste modo de fazer política reside sua principal força, embora os inimigos pretendam apontar aí sua maior fraqueza. Aqui vale a pena trazer à tona a carta da atriz francesa Catherine Deneuve, publicada pelo Libération, na qual ela revisita muitos dos pontos do Manifesto da semana passada.
Dois aspectos do texto de Deneuve chamam minha atenção. Primeiro, ela faz questão de reafirmar sua posição contrária a transformar denúncia em veredito, problema amplamente debatido nos feminismos brasileiros e também abordado em excelente artigo da escritora canadense Margaret Atwood. O segundo ponto importante é quando Deneuve diz: “Sou uma mulher livre e assim permanecerei”. Ora, por que parece tão importante repetir essa afirmação? No meu argumento, para que possamos afirmar a potência de um feminismo agonístico – ou de conflitos – como exemplo daquilo que a filósofa Chantal Mouffe chamou de “democracia agonística”, uma democracia na qual os conflitos não são superados em nome de uma “tolerância”, mas mantidos em função do reconhecimento de que a política se faz na abertura para a pluralidade e não no silêncio forçado dos consensos. Discordar é manter as questões políticas em aberto, sujeitas a modificações, revisões, reinterpretações.
Entra aqui a chance de ver na prática a crítica da filósofa Judith Butler a uma política fechada às lutas identitárias. Para ela, é um paradoxo que primeiro seja preciso se estabilizar numa identidade unificada para, a partir dessa identidade, reivindicar direitos e liberdade. Isso porque a exigência prévia fecha as possibilidades ao invés de abri-las, levando a política feminista para o mesmo modo de funcionamento da política tradicional: nós contra eles; amigo versus inimigo, legítimos contra ilegítimos, estratégias que buscam o apagamento de conflitos internos em nome da tomada do poder. Na política agonística, Atwood não precisa formular a pergunta que dá título ao seu artigo – “Será que sou má feminista?” –, porque essa divisão não se sustenta em formas de luta nas quais nos reconhecemos como pessoas livres para pensar, errar, acertar, agir e reagir, mas não para – usando aqui o verbo que se estabeleceu na tradução do manifesto francês – importunar.

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