Fernanda Pereira Barbosa e Leomar Daroncho
Quarta-feira, 30 de Maio de 2018
Gostamos de nos imaginar numa sociedade moderna, embora a expressão “mulher honesta”, carregada de preconceitos morais, somente tenha sido retirada do Código Penal brasileiro em 2009.
A pergunta de uma aflita trabalhadora a um comentarista de rádio, conhecido consultor do mundo corporativo, diz muito sobre o nosso tempo e a vulnerabilidade da mulher que vive do seu trabalho.
O dilema: deixou de informar sua gravidez durante o processo seletivo. Foi contratada. Agora, no período de experiência, não sabe como proceder diante do possível questionamento quanto à má-fé em sua omissão. Teme o surgimento de dúvidas sobre sua integridade.
A resposta: divagando sobre o grau de responsabilidade social da empresa, o consultor indicou que ela teria a legislação e os tribunais a seu favor. Admitiu a possibilidade de ressentimento do empregador com a postura, cabendo a ela demonstrar que a empresa contratou a profissional certa para a função.
O comentarista sabe como funciona o mundo real. Experiente na dinâmica de grandes corporações, sabe que aquela mulher já começa com um peso adicional.
A Fundação Getúlio Vargas – FGV – pesquisou, até 2016, um total de 247 mil mulheres do setor privado que fizeram uso da licença maternidade entre 2009 e 2012. Constatou que 48% delas foram demitidas em até 1 ano após findar a licença.
Recente relatório do Banco Mundial compara a legislação de 189 países em diferentes temas relacionados à desigualdade de gênero, indicando seu impacto sobre a inclusão econômica das mulheres. O estudo aponta a inexistência, no Brasil, da “licença-parental”, já adotada em 58 economias que permitem repartir a licença entre pai e mãe.
O constituinte conhecia a nossa realidade e o nosso passado de discriminações.
Apesar disso, persistem situações de mulheres com salários inferiores, para as mesmas funções. Também subsistem os obstáculos adicionais para que as mulheres atinjam cargos de chefia e gestão.
A necessidade de “modernização” das relações de trabalho foi o mote da Lei 13.417/17 (Reforma Trabalhista), embora tenha sido sustentada em dados falsos e inadequadas comparações com experiências estrangeiras. Na nova Lei, as inovações referentes ao trabalho da mulher evidenciam a falta de sintonia com o mundo real e com o princípio do Progresso Social, previsto no artigo 7º da Constituição. Andou na contramão do que a nossa norma constitucional dispõe.
Além de afrontar normas biológicas, a reforma trata com descaso as trabalhadoras gestantes e lactantes, estendendo a indiferença à sorte do nascituro. Isso tudo quando há conhecimento científico suficiente acerca dos danos potenciais do contato com agentes insalubres para a formação do bebê e o futuro da criança.
Ainda com relação à lactante, manteve-se a garantia de intervalos para amamentação, porém, os horários destes intervalos deverão ser definidos previamente em acordo individual entre a mulher e o empregador, o que remete ao mesmo problema. É improvável que, em momento de particular fragilidade no emprego, a negociação, direta e individual, realmente preserve os interesses da trabalhadora e as necessidades do bebê. Ignorar esse dado é ignorar o mundo real.
Nesse contexto, não surpreende que tenha sido extirpado o tão polêmico intervalo de 15 minutos outrora garantido à empregada antes de iniciar a jornada extraordinária.
As novas disposições trazidas pela Lei 13.417/17 não trazem enunciados de proteção à mulher e tampouco ações de incentivos específicos para conferir igualdade de oportunidades. Longe disso.
Enquanto outros países avançam efetivamente na adoção de medidas que equalizam direitos de mulheres e homens no mercado de trabalho, tal como ocorre com a licença-parental dividida entre pai e mãe empregados, ou políticas que asseguram igualdade salarial efetiva, a “modernização” legislativa no Brasil não se traduziu em efetivo avanço. Ao contrário, retrocede em relação à preocupação com a vida, saúde e integridade física da mulher e do nascituro, e mantém o débito com uma pauta destinada a assegurar a igualdade de oportunidades.
No que diz respeito à dificuldade de acesso a postos de trabalho, dados objetivos indicam que quando o requisito é a aferição objetiva do mérito, as mulheres se destacam e até superam os homens. O fato pode ser observado, por exemplo, na própria carreira do Ministério Público do Trabalho, em que as procuradoras já são maioria.
A retirada da expressão “mulher honesta” da nossa legislação é insuficiente para superar a situação de defasagem da trabalhadora, decorrente de uma pesada carga histórica de preconceitos. O caminho para a verdadeira modernidade, seguindo o exemplo de países cujo grau de civilidade invejamos, demanda que avancemos superando históricas condições de preterição e preconceito.
Fernanda Pereira Barbosa é Procuradora do Trabalho no Ministério Público do Trabalho.
Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho no Ministério Público do Trabalho.
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