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terça-feira, 27 de agosto de 2019

Fernanda Young: "Aprendi a lidar com a depressão porque sempre tive amor e humor perto de mim"


Em entrevista à editora-chefe de Marie Claire, Maria Laura Neves, a roteirista e escritora - que morreu neste domingo (25) de causas ainda não divulgadas - falou sobre a depressão que teve ao longo da vida, da maternidade e de sua obra

“Me expus muito na nossa conversa e fiquei com receio de ser mal entendida e ferir os meus pais. Mas poder falar sobre esses assuntos é necessário, porque ajuda quem viveu coisas parecidas”.
Recebi essa mensagem de Fernanda Young no início de 2017, quando publiquei uma longa entrevista com ela. Em um encontro raro, ela falou sobre suas dores mais profundas, as mesmas que a fizeram desenvolver alergias e outras somatizações ao longo da vida. Fernanda sofria de depressao desde a infância e, no intuito de desmistificar a doença, topou se expor e revelar o que tinha de mais íntimo.

Como ela mesma disse, foi essa mesma sensibilidade que a levou a conquistar um lugar único na televisão brasileira, se tornar mãe de quatro filhos. Feminista, inteligentíssima, foi a primeira mulher roteirista de grande sucesso no país, autora best seller, atriz de grandes públicos. Nossos sentimentos de Marie Claire à família e aos amigos. Fernanda morreu neste domingo (25), aos 49 anos, em seu sítio em Gonçalves, Minas Gerais. As causas da morte ainda não foram divulgadas. A seguir, a entrevista feita com ela no fim de 2016.
Viver é desagradável. Qualquer pessoa minimamente sensata percebe isso”, diz Fernanda Young, no sofá da sala de sua casa no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Enquanto dispara as palavras, olha freneticamente para os lados. A cena é tão caricatural que eu não sei se ela está fazendo piada ou falando sério. Abro um sorriso largo, como quem acha tudo muito engraçado, mas Fernanda continua firme. Em seguida, discorre sobre a depressão que teve ao longo da vida e sobre o novo romance. Ou seja: ela está falando sério. E eu, como qualquer interlocutor, fico estarrecida com sua capacidade de conjugar humor e dor.
Diagnosticada com dislexia e disritmia cerebral na infância, Fernanda tentou cortar os pulsos aos 10 anos. “Era uma criança muito, muito triste. Nunca ninguém me machucou, minha família não tinha culpa disso”, contou durante a conversa. Conseguiu esconder o episódio dos pais, mas a doença – e as medicações para controlá-la – a acompanham até hoje. “Aprendi a lidar com a depressão porque sempre tive amor e humor perto de mim. Por causa dela conquistei muitas coisas”, reflete. Ela se refere, além de aos 13 livros publicados – entre eles, Estragos (Globo Livros, 216 págs., R$ 44,90), lançado em dezembro –, à família. Casada com o roteirista Alexandre Machado desde os 23 anos, teve quatro filhos: as gêmeas Estela May e Cecília Madonna, de 16 anos, Catarina Lakshimi, 8, e John Gopala, 7.
Nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, é filha de um desenhista e de uma advogada. Foi criada com rigidez pelos avós maternos, católicos fervorosos, e pela mãe, que se separou do pai quando Fernanda tinha 6 anos. Encontrou sua tribo aos 13, quando virou punk. Aos 17, fez um teste para atriz na TV Globo e passou. Seu primeiro papel foi na novela O Dono do Mundo, em 1991. Mas a vocação sempre foi escrever. Roteirizou comédias de sucesso, como Os Normais, da Globo, e Surtadas na Yoga, do GNT. No canal, prepara-se para es­trear, no segundo semestre de 2017, Edifício Paraíso, série da qual será autora e atriz. Também teve uma polêmica passagem pela primeira formação do Saia Justa, nos anos 2000. As declarações sinceras lhe renderam críticas severas e o apelido de “Barbie que Fala Merda”, culminando em um grave episódio de depressão. A seguir, os detalhes e os trechos pouco conhecidos da história de uma das mais irreverentes personagens do showbiz brasileiro.
MARIE CLAIRE Você está terminando de escrever um novo romance. Do que se trata?

FERNANDA YOUNG É uma trama familiar. Tudo se dá diante de uma personagem que tem depressão. O livro se chama O Piano Está Aberto. Toda vez que essa mulher, que é mãe de alguns adultos, colapsa, ela toca piano. As pessoas que convivem com a doença costumam colocar codinomes porque depressão parece mau agouro. Os personagens referem-se à doença dela como “o piano está aberto”. É sobre essa família que lida com essa dor.

MC Você já disse que tem depressão. É uma  obra biográfica?

FY É menos um livro sobre mim e mais sobre a doença. É estranho dizer isso, mas, se não fosse a depressão, não teria feito nem 70% do que realizei na minha vida. Não teria tido tantos filhos, por exemplo. As crianças me deixam desconectada de uma realidade que me desagrada, que é viver. A princípio [a vida] não me parece muito... cabível. É desagradável. Qualquer pessoa minimamente sensata percebe isso. Mas, hoje, tenho pouco daquilo que sei sobre a doença. Reconheço os sintomas e não vivo mais neles. Falo com muita calma sobre isso porque sobrevivi. E obviamente estou sujeita, a qualquer momento, a cair de novo.

MC Quando isso se manifestou pela primeira vez?

FY [Depois de um silêncio, diminui o tom de voz] Ah, eu era uma criança muito triste. Não gostaria que parecesse culpa da minha família. Simplesmente era uma criança depressiva, que poderia se machucar e que pensava em morrer. É uma doen­ça química. Ninguém me machucou. Pedia muito para Deus me matar. Também tive muitas doenças – alergias, pneumonias – que vinham do emocional.

MC Chegou a se machucar?

FY [Silêncio] Sim.

MC Você se cortou?

FY Uhum [concorda com a cabeça].

MC A automutilação era uma prática constante?

FY Não. Foi só desta vez e eu queria morrer. E ninguém soube.

MC Quantos anos você tinha?

FY Uns 10.

MC O que a levou a isso?

FY Tristeza. Não era nada com a família.

MC Você cortou o braço?

FY O pulso. Foi superficial, muito leve. Fui uma criança diferente. Fui diagnosticada com disritmia e comecei a tomar Tegretol [antiepiléptico] muito nova. Depois, descobriram que era disléxica. Comecei a fazer terapia aos 13 anos, por insistência do meu pai. Faço até hoje. Também tive a grande sorte de ter minha irmã Renata. Lá pelas tantas, com uns 16 anos, ela viu que eu falava muito sobre morte. Então disse seriamente: “Olha aqui, vou morrer velha e, depois, você”. Foi um esporro tão grande... e isso ficou decidido[os olhos marejam]. Além disso, sempre rimos muito na minha casa. O humor me ajudou.

MC Quando você foi diagnosticada com depressão?

FY Com 24, 25 anos. Meu livro A Sombra das Vossas Asas (Objetiva) tem o capítulo “A depressão cor de abóbora” por causa disso. Fiz vários exames e o neuropsiquiatra falou: “Olhe esta área aqui”. Era cor de abóbora. “Isto é a sua depressão.” Ganhar um diagnóstico foi maravilhoso. Pensei: “Vou tratar”. Fazer exercício físico é uma das coisas que mais me ajudaram na vida. Passei a medicar especificamente a depressão. Foi sensacional. Saí de um redemoinho de dramas e dor, de altos e baixos. Passei muitos anos bem. Até que tive uma crise grave em 2002 ou 2003.

MC O que a detonou?

FY Um jornalista disse que eu era perigosa e estúpida. A verdade é que apresentava o Saia Justa e não tinha a menor ideia do que estava fazendo ali. Só falava o que queria. Foi quando começou o bullying virtual, criaram a “Barbie que Fala Merda” [apelido que rodou a internet]. Foi horrível. Deu problema pra cacete e não queria aquilo. Minha irmã me encontrou num estado horrível, num dia em que não conseguia mais falar. Ela me levou ao médico em São Paulo. Eu achava que estava em Niterói, na Rua Nossa Senhora da Conceição. A única pergunta que faz uma pessoa ser internada é: “Você quer se matar?”. E eu queria. Mas decidiram não me internar. O médico entrou com uma medicação superforte e fiquei acompanhada 24 horas por dia, durante alguns dias. Morri de vergonha... Não precisei de acompanhante porque minha família cuidou de mim. Precisei de dois anos para tirar os remédios.

MC Sua doença sempre se manifesta dessa forma?

FY Não. Foi uma crise. Obviamente tenho quedas de ânimo e aviso em casa: “Estou sensível”. Quando piora um pouco, digo: “Estou com medo”. Sinto coisas físicas: o hálito muda, a boca fica amarga, o couro cabeludo arrepiado. É fácil detectar. Mas nunca deixei de trabalhar. Estava escrevendo Aritmética (Ediouro), que me é muito caro, quando essa crise aconteceu.

MC Já sofreu violência?

FY Sim. Foi um estupro terrível. Fui violentada em um encontro íntimo com um ex-namorado, aos 16 anos. Na época, achei horrível, mas levei tempo para entender que foi um estupro. Ele começou a forçar a barra, eu disse que não queria e ele amarrou meus pulsos. Fez sexo comigo dessa maneira. Não sabia para quem contar, tinha vergonha. Achava que a culpa era minha por ter amado essa pessoa. Só percebi que tinha sido estuprada vendo uma cena semelhante em uma série, anos depois.

MC Você foi mãe de gêmeas aos 30 anos. Foi natural?

FY Não. Foi tratamento. Demorei muito para engravidar. Na minha família, existe essa dificuldade, não somos férteis. Tenho ovários policísticos. Mas sei o dia em que as meninas foram geradas. Foi muito bonito. Estava no hospital com minha melhor amiga, Marcelinha. Vestia uma camisola fininha, ela segurava minha mão.

MC Já fez aborto?

FY Não, graças a Deus, porque me faria muito mal. Mas sou absolutamente a favor da legalização. Já é tão cruel passar por isso, vamos facilitar? Se você acha errado, lide com isso, mas não transforme sua opinião em lei.

MC E aborto natural?

FY Sim, quase aos quatro meses de gravidez. Eu não sabia que passar por isso era tão cruel. Foi uma das coisas mais terríveis que já aconteceram comigo. Descobri fazendo o ultrassom e só pude tirar no dia seguinte [com a curetagem]. Naquela noite, enchi a cara. Em dado momento, tive que parar de beber líquido para poder fazer a intervenção. Foram as horas mais horríveis da minha vida porque fiquei com uma sede louca, com uma ressaca de todas as ordens. Foram meses para me recuperar. Na verdade, acho que não me recuperei até hoje. Fiquei muito puta. Depois, tatuei um beija-flor [em homenagem à bebê, que se chamaria Antonia]. Foi uma alma que não chegou a ver a cara da maldade. No fim, tive uma filha por adoção que nasceu com uma síndrome congênita, a Catarina [a membrana que envolve o cérebro da menina é rígida. Hoje, usa uma válvula para drenar o líquido que circula por ali e está ótima]. [Faz uma pausa] Quer uma cerveja sem glúten?

MC Não, obrigada. Você cortou o glúten porque é celíaca?

FY Não, mas sou cheia de alergias e elas melhoram quando corto o glúten, a lactose.

MC Sete anos depois das gêmeas, você adotou dois filhos. Pode contar como isso aconteceu?

FY Foi lindo. A Catarina é o desejo mais antigo da minha existência. Sempre falava que teria uma filha adotiva. Quando a vi pela primeira vez, a reconheci imediatamente. Estava na fila da adoção e uma instituição me ligou. Estava em Paris, feliz da vida, e voltei rapidamente. Pude ver o parto dela, foi uma explosão de alegria. Na época, a lei permitia a adoção por doação. Quando ela tinha 9 meses e eu já tinha saído da lista de adoção, recebi um telefonema de outra  instituição, dessas que ligam para pedir ajuda, dizendo que tinham recebido uma criança e perguntando se eu podia ajudar. Pensei: “Tenho dinheiro. Fiz esse trabalho medío­cre hoje, em que ganhei tanto; Alexandre está em Nova York com as gê­meas; está tudo bem nessa casa. Vou lá entregar as coisas pessoalmente”. Liguei para meu marido no caminho, contando o que estava indo fazer, e ele intuiu o que aconteceria. Peguei o John e o trouxe para casa, o que obviamente era proibido. Amor à primeira vista? Não. Desespero da circunstância. Ele tinha três dias. Fui tão esculhambada pelo meu advogado... Parecia que eu tinha trazido Bin Laden e toda a Al-Qaeda para cá. Hoje, estou proibida de voltar a qualquer uma dessas instituições. Ajudo a distância.

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