Dar as mãos aos nossos medos e acolher as inseguranças nos ajudam a realizar aquilo que o nosso coração realmente deseja
Aqueles olhinhos estreitos sorriam para mim enquanto, a alguns metros dele, eu observava tudo, com paciência e sem ansiedade. “Levanta e vem!”, eu disse. A mão espalmou o chão e ajudou o corpinho pequeno a se erguer, e as perninhas, meio bambas, confiavam no meu chamado. “Vem!”. Alguns passinhos meio afobados iam cambaleando o corpo enquanto concretizavam o impulso de andar pela primeira vez. E aí ele caiu. Foi durante o tempo em que eu apurava essa matéria sobre ter coragem que vi meu bebê de 1 ano dar seus primeiros passos.
Aos poucos ele ganhava confiança, fazia pequenos experimentos ao soltar as mãos de um móvel e ia se apropriando do seu desejo de caminhar por aí, embalado pelos olhares de cumplicidade de quem estava perto. Primeiro, foram passinhos tão curtos que eu não sabia dizer se poderia eleger aquela data como “o dia em que andou pela primeira vez”. No decorrer dos dias, essas distâncias ficaram maiores até que concluí que agora tinha mesmo uma criança caminhante, ainda cheia de tropeços, mas segura da sua coragem em conquistar novos espaços.
Se existisse uma metáfora sobre a coragem, eu talvez escolhesse essa: a de andar pela primeira vez. A gente não acorda num belo dia decidida a ser corajosa e tudo acontece, como se houvesse uma capa de herói no armário para usar quando se tem vontade. A coragem diz muito mais sobre dar as mãos aos nossos medos e acolher nossas inseguranças; sobre caminhar, um passo de cada vez, em pequenas decisões que colocam cor no nosso agir. Ninguém nasce corajoso nem sabendo andar.
De mãos dadas com o medo
A gente ainda acredita que o corajoso é aquele que enfrenta tudo com segurança, que nunca sente as pernas bambearem por nada. “As pessoas criam oposição entre coragem e medo. Mas coragem não é ausência de medo. Se não há medo, não há o que ser enfrentado. Portanto, não há coragem”, me diz o psicólogo Saulo Velasco. Saulo dá aulas sobre como ser mais confiante na The School of Life, em São Paulo. E acredita que a coragem é, na verdade, uma habilidade emocional que podemos desenvolver. “Ela envolve você enfrentar desafios e aceitar riscos em função daquilo que realmente deseja”, diz.
Por isso, o primeiro passo é reconhecer que a coragem não é uma iluminação, um dom. Que ela está de mãos dadas com a nossa insegurança, nossas limitações e as incertezas da vida. E, mais ainda, que isso faz parte de todos nós. “Temos a ilusão de que as pessoas que admiramos por serem bem- -sucedidas em seus projetos não vivem esses mesmos sentimentos. Que não fracassam, não erram, estão sempre prontas. Mas não é verdade”, diz.
Esse sentimento tem até nome: a síndrome do impostor. Ao mesmo tempo em que somos críticos conosco porque conhecemos as nossas limitações, medos e ansiedades, achamos que as pessoas que estão realizando coisas incríveis ao nosso redor são mais corajosas. Mas é porque, no fundo, só conhecemos parte da história delas. Achamos que somos uma farsa porque temos a ilusão de que os outros são diferentes. “Estamos em uma cultura que valoriza muito as histórias de força, de segurança, e aí vestimos nos outros a fantasia de bem- -sucedidos, porque ninguém se permite assumir a própria vulnerabilidade”, explica Saulo. É como se, em nós, conhecêssemos todo o iceberg e, nos outros, enxergássemos somente a ponta do gelo.
O medo e as incertezas
Rafa Rios tem uma história que caminha nesse sentido. Hoje ele é conhecido por ser um homem florista, que ensina mais gente a deixar a criatividade e o sentimento fluírem por meio de arranjos florais. Durante suas oficinas, ele diz, nem vê a hora passar. Mas nem sempre foi assim. “No dia da minha primeira oficina, eu me senti totalmente na síndrome do impostor. Eu me lembro de ir para o banheiro do trabalho, desesperado, e pensar ‘por que é que fui inventar aquilo?’. Eu tinha um roteiro todo pronto nas mãos e pensava que não tinha nada de útil para compartilhar”, lembra. “Agora faço as oficinas sem nem olhar para o relógio.
Mas a síndrome sempre nos acompanha. Esses dias estive em um evento para falar sobre novas masculinidades. Olhei no painel de palestrantes e vi tantos homens com títulos importantes, um pós-doutor, outro doutor em filosofia do Direito. E eu, até o começo do evento, pensando ‘por que é que estou aqui? O que é que eu tenho para acrescentar?’”, lembra.
Saulo compartilha do mesmo sentimento: “Como orientador de mestrado, meus orientados têm uma tendência a achar que para mim é muito mais fácil escrever, mas eles não fazem ideia das noites que eu passo acordado batendo a cabeça no computador sem ter o que colocar no papel”, diz. E eu engrosso o coro: a cada matéria que escrevo para Vida Simples, ainda elaboro um certo frio na barriga por não ter a certeza de que, ao final, o texto terá ficado bom.
Acolha o fracasso
Saber que podemos fazer escolhas erradas e que nem sempre tudo dará certo também é uma forma de exercitar a nossa coragem. Para a psicanalista Elisa Maria de Ulhôa Cintra, é diante desse desamparo que exercemos a habilidade. “Desde o nascimento temos uma demanda por ser amado, por ser reconhecido. E, muitas vezes, essas necessidades fundamentais não são atendidas. Vivenciamos experiências de frustração, decepção e fracasso, e são nelas que a coragem se fortalece”, ela diz. Isso quer dizer que coragem nada tem a ver com invencibilidade, mas com se colocar em movimento ainda que o resultado não seja garantido ou, mesmo, tão satisfatório.
Esse desafio é potencializado, em especial, porque a nossa cultura carrega uma profunda dificuldade em lidar com o fracasso. “A nossa sociedade hipervaloriza o sucesso, mesmo no fracasso. Então as histórias que ouvimos nos livros, filmes e novelas são histórias de superação. De pessoas que, se fracassaram, fizeram do fracasso um trampolim para o desfecho feliz”, diz Saulo. E o problema é que essa noção de fracasso que dignifica, de falha como caminho para algo maior, pode ser bastante opressora. “As conquistas estão recheadas de pequenos fracassos não porque são como um trampolim, mas porque simplesmente fazem parte de qualquer processo.”
Nutrir uma resiliência diante dos desafios também é parte dessa caminhada. Se há a coragem em arriscar coisas novas, também é preciso a mesma coragem para perseguir aquilo que se deseja mesmo quando as dificuldades começarem a surgir. “Daí esse sentimento estar relacionado à nossa capacidade de suportar frustrações, perdas e todas as vicissitudes da vida. O destino de cada um de nós tem, naturalmente, elementos trágicos”, diz Elisa.
Saiba rir de si mesmo
Alimentar o sentimento de que, um dia, seremos pessoas inteiras, capazes, prontas, só tem o poder de nos distanciar ainda mais do exercício da coragem. Podemos desconstruir, já, a ideia de que é em uma manhã mágica que esse impulso vai se derramar sobre nós e nos tornaremos, enfim, corajosos para concretizar nossos desejos. Saulo, em suas aulas sobre o tema, convida os alunos a escrever do que é que eles sentem medo, sobre quais são suas limitações. O resultado é que, quando todos expõem suas dificuldades, percebem que há um denominador comum entre muitas situações. Além da coragem em se expor, também descobrem que o que sentem não é anormal. “Quanto mais a gente fala publicamente sobre as nossas limitações e vulnerabilidades, mais se habitua a isso. E, na prática, vê que tudo bem, que continuamos sendo amados e admirados. Podemos parar de nos esconder”, pondera o psicólogo.
É como o bebê que cai, mas sabe que pode levantar de novo. E que há um olhar de amor no cuidador que vê, naquela criança, um ser capaz. Para Elisa, uma das melhores formas de se nutrir de coragem é estar cercado de pessoas que nos encorajam. Não porque dizem que somos os melhores e mais capazes em fazer isso ou aquilo, mas porque estarão ao nosso lado mesmo nas adversidades, mesmo se tudo der errado. Por isso, é tão importante que, desde cedo, a gente possa valorizar a experiência, o caminho, e não só o resultado. No livro Mindset – A Nova Psicologia do Sucesso (Objetiva), a autora Carol S. Dweck fala sobre um experimento que fez com crianças.
Coragem está ligado à tolerância de errar
Em seu método, elaoferecia uma série de atividades de quebra-cabeça, que ficavam progressivamente mais difíceis conforme o teste avançava. Enquanto algumas enxergavam na dificuldade o fim da jornada, ou seja, sequer se arriscavam com medo do fracasso, do erro, outras seguiam gostando da experiência, do desafio, ainda que não conseguissem completar o quebra-cabeça. A conclusão é que aqueles que acreditam que suas aptidões podem ser desenvolvidas– e que as falhas fazem totalmente parte do processo – acabam por serem mais motivados a seguir em frente e a realizar seus objetivos. Coragem, por fim, está intimamente ligada à tolerância de errar. Ou, por que não, à capacidade de arriscar sem ter qualquer tipo de certeza se aquilo que buscamos dará certo ou não.
Seguir o coração
O bonito disso tudo é que o que nos faz agir, mesmo sem garantias, é o impulso daquilo que não pode mais ficar guardado dentro da gente. Precisa sair, ganhar o mundo. Coragem significa, também, “agir com o coração”. O Rafa, florista, sabe bem o que é isso. Desde criança ele já carregava uma expressão artística bem clara. Era um garoto sensível e emotivo, mas que, na adolescência, acabou sendo conduzido aos padrões do que a sociedade espera para um menino.
Foi aluno militar da Marinha, depois se formou em Direito e começou a prestar concursos públicos por estabilidade, remuneração e status social. “Silenciei minha essência emotiva, criativa e artística. E assim segui, pulando de cargo em cargo”, conta ele. Em 2016, recém-casado e reprovado em um concurso, decidiu que era hora de olhar para dentro e reencontrar sua essência. “Um tempo depois, buscando algo que me desse prazer, me lembrei da alegria de oferecer flores à minha avó e minha mãe quando pequeno e de também gostar de levar buquês para a minha companheira. Decidi fazer arranjos para materializar todos os sentimentos que estavam em mim”, conta ele.
Coragem é ter consciência
Mas tornar-se florista implicava um ato profundo de coragem: como ele, homem, ex-militar e advogado, iria mostrar ao mundo seu encantamento pelas flores? “No início, lidei com os julgamentos e sentia um estranhamento enorme das pessoas. Esse espaço da sensibilidade não é dado aos homens. O encorajamento interno foi uma construção”, reflete Rafa. “E a minha ligação com a coragem tem sido agir com o coração. Olhar e pensar ‘poxa, é isso que eu quero fazer’. É um processo de autoafirmação”, diz ele, que se sente encorajado pelo Brotherhood, grupo de homens coordenado por Gustavo Tanaka, e também pela companheira, a seguir construindo seu caminho com as flores. “No grupo uma vez disseram que coragem eram ‘cores que agem’, e as flores são isso para mim. Coragem é ter consciência do medo e dizer ‘então vamos caminhar juntos’. Ir sem nenhum medo, sem nenhum receio, talvez seja imprudência”, reflete.
Experimentar, enfim
Rafa segue em seu cargo público enquanto dá voz aos sentimentos com seus arranjos e oficinas. Ele é um exemplo de algo que podemos aplicar quando desejamos fazer algo novo: colocar em prática pequenos experimentos. Isso significa que, se lhe falta coragem para começar um novo projeto, que tal fazer pequenas experiências com a ideia? Desenvolver algo menor, para as pessoas mais próximas?
Saulo também traz uma dica: em vez de se encorajar e dizer que tudo vai dar certo, por que não, então, olhar para o que acontece se tudo der errado? “Porque, depois, você vai sentir prazer em simplesmente ter enfrentado uma dificuldade. E essa é a experiência que fortalece a coragem.” No fim das contas, o que nos resta mesmo é arriscar alguns passos, ainda cambaleantes, ainda entre tropeços. Porque acolhemos quem somos e sabemos que não vai existir o dia em que, enfim, nos tornaremos definitivamente corajosos. Coragem não é o fim, mas cada passo e cada tropeço do caminho. Levanta e vem.
➥ Para saber mais sobre o tema: http://bit.ly/HomemFlorista
Débora Zanelato acredita que se sente corajosa quando consegue ouvir e identificar os desejos do coração, mesmo quando está com medo.
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