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domingo, 31 de maio de 2020

Judith Butler crê que pandemia de coronavírus levará a luta radical por igualdade

  • Responsável pela teoria "queer", popularmente disseminada como teoria de gênero, a filósofa norte-americana Judith Butler revela em entrevista exclusiva que se dedica a “aliviar o sofrimento e construir um mundo melhor em comum” frente à pandemia. Em seu novo livro, "A Força da Não Violência", ela faz defesa radical contra qualquer tipo de crueldade

    MARIE CLAIRE
  • ADRIANA FERREIRA SILVA
  • DO HOME OFFICE

27 MAI 2020



Judith Butler (Foto: Reprodução / Instagram )
Judith Butler (Foto: Reprodução / Instagram )

A filósofa norte-americana Judith Butler se transformou numa referência ao lançar, há 30 anos, Problemas de Gênero (Civilização Brasileira, 288 págs., R$ 59,90), livro que fundou a teoria queer ao afirmar que a “sexualidade humana assume formas diferentes e que não devemos presumir que o fato de sabermos o gênero de uma pessoa nos dá qualquer pista sobre sua orientação sexual”, segundo palavras da própria pensadora. Sua obra, no entanto, é muito mais vasta. Judith já escreveu sobre o discurso do ódio, a ética judaica e a Palestina, entre outros temas, o que a torna uma das mais importantes pensadoras feministas do mundo contemporâneo. Em seu novo livro, A Força da Não Violência (que chega ao Brasil no segundo semestre, pela editora Boitempo), Judith faz uma defesa radical da não violência e da igualdade, teorizando, por exemplo, sobre o direito de todos os seres humanos ao luto, a despeito da ideia de que apenas a perda de algumas vidas valeriam o choro e o lamento. Em entrevista concedida do isolamento em sua casa, na Califórnia, ela afirma que, neste momento, trabalha pensando em “como aliviar o sofrimento e construir um mundo melhor em comum” frente à pandemia de coronavírus. “Nossos planos, por ora, estão todos destruídos, mas talvez haja algo mais importante do que nossos planos.”
“Nossos planos, por ora, estão todos destruídos, mas talvez haja algo mais importante do que nossos planos.”
Judith Butler
Marie Claire Muitas previsões têm sido feitas por pensadores sobre a crise provocada pelo coronavírus. O que pensa sobre o tema?

Judith Butler Vejo cenários em que uma crítica mais vigorosa do capitalismo se torna possível, e os laços transnacionais de solidariedade se fortalecem, mas também acho que a especulação capitalista e o nacionalismo podem se intensificar. Assim que tivermos um tratamento antiviral ou uma vacina, veremos nações sendo “donas” e tirando proveito dessas descobertas, negando acesso àqueles que não são seus cidadãos. Veremos ainda se os mais vulneráveis serão tratados primeiro ou se serão considerados dispensáveis. O vírus mostrou as desigualdades estruturais. Nos Estados Unidos, as populações negra e pobre (nem sempre as mesmas) têm acesso à pior ou a nenhuma assistência médica, e suas vidas não são consideradas tão valiosas. Então, temos de empreender uma grande luta para estabelecer equidade social e econômica, garantindo saúde para todos, pois, sem esses ideais sociais, o vírus fará um estrago ainda maior. Posso ver o futuro nesses dois sentidos. Talvez a luta pela igualdade radical se intensifique.

MC O que a inspirou a escrever A Força da Não Violência?

JB Me perturba o fato de que muitas pessoas não entendem a distribuição desigual de comida e de moradia como uma forma de violência. Tentamos pensar em desigualdade como uma categoria, e em violência como outra. Mas a violência pode tomar a forma de uma política social. A destruição da floresta, por exemplo, é a destruição da Terra, habitat de animais e dos seres humanos. Pode não ser um ato de violência explícita, mas seus efeitos são violentos e letais. Temos de mudar nossas ideias sobre violência e não violência na estrutura da desigualdade. Quais vidas devem ser protegidas de doenças e da morte, da destruição do nosso habitat, e quais não? Muitas políticas para migração, meio ambiente, alimentação e moradia deveriam ser consideradas modalidades de violência.

MC Há quanto tempo a senhora trabalha neste livro?

JB Acho que venho pensando nisso minha vida inteira. Por que é tão fácil deixar algumas populações morrerem e tão impensável que outras possam morrer? Que tipo de imaginário é esse que distingue o valor de uma vida humana dessa maneira?

MC Poderia resumir as principais propostas do livro?

JB Entre outras coisas, defendo que temos de ultrapassar a ideologia do individualismo para entender o alcance e o significado da violência. Se eu pratico uma violência contra outra pessoa, não atinjo somente ela, mas o vínculo entre nós. Se pensarmos que a violência destrói os vínculos sociais, entendemos que faz parte de algumas políticas. Na esquerda, há quem julgue necessário usá-la como instrumento para conquistar objetivos justos. Comete-se, aí, um erro. Se agirmos violentamente para alcançar um objetivo, introduziremos mais violência no mundo e justificamos isso com nossos atos. Não temos controle sobre as formas que essa violência assumirá no futuro. Muitos insistem que a violência é mais forte que a não violência, mas, para mim, há formas que podem desmantelar o poder do Estado, por exemplo, de modo destrutivo no bom sentido – e não violento.

"Se eu pratico uma violência contra outra pessoa, não atinjo somente ela, mas o vínculo entre nós""
Judith Butler
MC Quais táticas sugere para nos transformarmos em uma sociedade não violenta?

JB Nossa aliança deve ser transregional e transnacional, multilíngue, reunindo todos aqueles que vivem em precariedade e são explorados. Acredito que o movimento feminista e o movimento antirracista têm desenvolvido alguns dos mais importantes modelos para o ativismo cooperativo. Eles devem ser o guia para o restante de nós.

MC Quais são os desafios para alcançar essa sociedade não-violenta em um momento como este, em que vivemos uma onda de regimes autoritários em todo o mundo (Donald Trump, nos EUA; Jair Bolsonaro, no Brasil; Viktor Orbán, na Hungria etc.), e também considerando as desigualdades interseccionais históricas e estruturais de raça, gênero e classe?

JB É sempre um desafio fazer uma oposição não-violenta a um poder autoritário, e na maioria das vezes as pessoas confiam nas forças armadas para realizar um golpe. Mas essa é, como sabemos, uma opção muito perigosa. A única outra maneira é desenvolver laços fortes entre trabalhadores, sindicatos, mulheres, movimentos sociais, pobres, pessoas queer e trans, minorias raciais, indígenas e grupos comunitários. Todos devem trabalhar juntos, apesar de suas diferenças, para produzir círculos de solidariedade e desenvolver fortes demandas políticas. Em números, somos fortes, e esses números são a melhor oposição possível ao autoritarismo e ao poder militar.
MC A senhora explorou o conceito de "luto" no livro Frames of War, de 2009, e agora volta a essa ideia. Poderia falar sobre esse conceito?

JB Toda vida deve ser "sentida". O que isso quer dizer? Que sua perda deve ser lamentada. Infelizmente, muitas pessoas são tratadas como se suas vidas não tivessem valor e sua perda não importasse. Defender o luto é defender que todas as vidas têm o mesmo valor. Vemos essa desigualdade nas maneiras pelas quais algumas mortes são publicamente lamentadas e outras negadas e desvalorizadas. Na prática cotidiana, decisões letais são tomadas como se algumas vidas não tivessem importância.
MC A senhora está entre os ícones do feminismo. Como vê essa quarta onda de ativismo de mulheres e como a nova geração de militantes impulsiona suas ideias?

JB Acredito que a influência acontece no sentido oposto. As feministas da América Latina e de outros lugares do mundo me permitiram ver como o feminismo pode ser um movimento de massa ao invés de servir a propósitos individuais. Como cidadã norte-americana, isso me traz um grande alívio e uma inspiração. Movimentos feministas como o Ni Una a Menos (em português, Nem Uma a Menos) têm produzido uma oposição visível e avassaladora à violência contra as mulheres. Elas não esperam pelo Estado para protegê-las. Elas demandam liberdade nas ruas. Sua força não pode ser subestimada!

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