G1 ouviu cinco mulheres especialistas na área. Para elas, Justiça brasileira não compreende gravidade da violência de gênero e falha ao não aplicar legislação existente nos casos de abuso em transporte público.
Por Lívia Machado, G1, São Paulo
01/09/2017
A Justiça paulista considerou um crime de menor potencial ofensivo um homem se masturbar e ejacular no pescoço de uma mulher dentro de um ônibus em São Paulo. O caso ocorreu na tarde da última terça-feira (29). Menos de 24 horas após ser preso em flagrante, o agressor, Diego Ferreira de Novais, de 27 anos, que tem ao menos 15 passagens pela polícia por suspeita de estupro e assédio sexual, foi liberado.
Juiz e promotor foram a favor do relaxamento da prisão. O crime, registrado pela Policia Civil como estupro, foi convertido em contravenção durante audiência de custódia por não haver, na avaliação do magistrado, "constrangimento tampouco violência".
Tal interpretação, entretanto, não representa um comportamento isolado. Casos similares de abuso contra mulheres são frequentemente minimizados pela Justiça.
“A maioria dos assédios em transporte público caem nessa vala comum de se entender sempre como uma contravenção penal. E a gente não consegue coibir a conduta. A pessoa faz e não acontece nada, como ocorre com esse rapaz”, aponta Teresa Cabral, Juíza de Direito titular da 2ª Vara Criminal da Comarca de Santo André e integrante da COMESP - Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do Estado de São Paulo.
No opinião da juíza e de outras quatro especialistas ouvidas pelo G1, o assédio sexual não é punido, principalmente, por falha na formação de juízes no entendimento da gravidade da violência de gênero.
“O judiciário tem um viés machista. E essas intepretações têm amparo legal. Mas até que ponto o amparo legal traz uma resposta de justiça?”, questiona Fabíola Sucasas, promotora do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID).
“É uma lacuna na educação continuada dos profissionais para sensibilização do enfrentamento da violência contra a mulher, da violência de gênero”, destaca Marina Ganzarolli, advogada e co-fundadora da Rede Feminista de Juristas.
Na visão da especialista, ignorar o impacto, o trauma e os danos da violência de gênero são reflexos de um comportamento machista e patriarcal que permeia não apenas a cabeça do agressor, mas a sociedade e o sistema judiciário.
“A gente está cansada de ver. É sempre um tom a abaixo, sempre romantizando a situação. A Justiça naturaliza a violência contra a mulher”, aponta Marina.
Legislação
Embora o Brasil tenha um código penal antigo, a lei que incide sobre crimes contra a dignidade e liberdade sexual foi alterada há menos de uma década, em 2009, por uma demanda de movimentos de enfrentamento à violência contra mulheres, às crianças e aos adolescentes.
“O crime de atentado violento ao pudor não existe mais e o crime de estupro passou a abarcar todo o constrangimento, a violência, com fins libidinosos. Qualquer ato com fim de prazer sexual a uma das pessoas, no caso, o agente, sem o consentimento da outra pessoa, é estupro”, resume Marina.
Na avaliação da advogada, há recursos para coibir assédio sexual dentro de transporte público, mas a lei não é respeitada ao enquadrar os casos como crime de menor potencial ofensivo. “Menor potencial ofensivo para quem? Para as mulheres com certeza não”, rebate.
"Ejacular em alguém é um ato sexual, tem fim libidinosos. (...) É tão bizarra essa decisão porque como que um ato sexual sem consentimento pode não causar constrangimento? Que pessoa é essa que sofre uma violência sexual e não foi constrangida? Essa pessoa não existe. Qualquer pessoa, inclusive esse magistrado, na mesma situação que essa vítima, estaria igualmente constrangido, igualmente em estado de choque", complementa.
Gargalos
A promotora Fabiola Sucasas acredita que exista um campo minado na tipificação em relação às violações sexuais, o que favorece decisões errôneas.
“Você tem desde uma pena de multa até uma pena de 15 anos. Esse é um espaço para interpretações variadas que podem levar às injustiças, que, na minha opinião, foi o que aconteceu”, opina.
Ela avalia positivamente a legislação atual, mas crê que a variedade de graduação de penalidade gere insegurança aos juízes.
“Eu acredito que a lei deva ser mais especifica sobre essas condutas. É uma confusão que se faz que acaba gerando esse tipo de revolta. Para que as penas possam ser proporcionais aos fatos, e não tenham essa elasticidade. Uma lei que não exclua a que já tem", sugere.
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Advogadas fundadoras de um escritório especializadas no atendimento às mulheres vítima de violência sexual e doméstica na capital paulista, Ana Paula Braga e Marina Ruzzi, também são favoráveis às alterações.
“Esse é o problema de não ter um crime especifico de assédio em lugares públicos. O que reverbera para gente é que temos que mudar a lei. Na Argentina aprovaram a lei sobre assédio sexual criminalizando a conduta. A Bélgica também criminaliza. Seria o caso da gente adotar.”
A proposta, entretanto, é vista com ressalvas por Teresa Cabral, Juíza de Direito titular da 2ª Vara Criminal da Comarca de Santo André, e retoma ao que tende a ser o ponto central do problema, apresentado no início da reportagem: “Não adianta ter uma tipificação penal especifica, se não há uma formação dos profissionais de todo o sistema de Justiça para conseguir entender o que é violência de gênero.”
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