Agência Patrícia Galvão, 10/11/2017
A aprovação de uma PEC (Proposta de emenda à Constituição) que endurece as regras de aborto até em casos legais, como o de estupro, e a tentativa do Congresso — vetada pelo presidente Michel Temer (PMDB) — de alterar um dos principais dispositivos da Lei Maria da Penha foram duramente criticadas por duas especialistas em direito da mulher e combate à violência doméstica ouvidas pelo UOL.
A advogada Leila Linhares, representante brasileira no MESECVI (Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra a Mulher), da OEA (Organização dos Estados Americanos), e uma das autoras do texto da Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, classificou a aprovação da PEC 181 de 2015 na comissão da Câmara, por 18 votos a 1, como “um artigo oportunista e ilegal”.
Na avaliação dela, o texto aprovado afrontou o próprio entendimento do Código Penal de 1940, que previa a não-criminalização do aborto em casos de estupro, e do STF (Supremo Tribunal Federal), que em 2012 decidiu que o aborto de fetos anencéfalos não seria mais crime.
“Os mais conservadores incluíram no texto da PEC algo que retroage ao Código Penal e o STF, sendo que o Brasil já é um dos países mais atrasados do mundo nessa questão. Como dizer a uma mulher que gesta fruto de aborto, ou que gesta feto sem a calota cerebral, que esse processo torturante, esse drama horroroso, não compete a elas avaliar?”, questionou.
A promotora de justiça em São Paulo e integrante do Gevid (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica) do Ministério Público, Fabíola Sucasas, também criticou a PEC aprovada. Para ela, a proposta vai em direção oposta aos avanços dos direitos das mulheres.
“É um absurdo esse tipo de aprovação, pois demonstra o quanto as mulheres, em seus direitos, estão ameaçadas a todo tempo. Alguém pergunta a mulheres que sofreram estupro e engravidaram o que elas estão sentindo?”, opinou.
A integrante do Gevid lembrou ainda que, no caso dos estupros, há uma notificação considerável. Segundo dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), são cerca de 500 mil estupros ao ano no Brasil. E pelo menos metade desse número refere-se a crimes praticados contra menores de 13 anos.
“Virar as costas à mulher que sofreu violência sexual é levá-la ao espaço do objeto. Em um país onde 50% desses crimes são praticados contra menores de 13 anos, em geral, no espaço doméstico, obrigar essas mulheres a seguirem com a gravidez é uma forma de violência legitimada em que o Estado se coloca como o avalizador da violência sexual”, finalizou.
Críticas ao Congresso, elogios ao veto presidencial
As duas especialistas também criticaram a tentativa do Congresso de abrir permissão para que delegados de polícia pudessem conceder medidas protetivas de urgência às vítimas, previstas na Lei Maria da Penha. Hoje, a lei faculta isso apenas a juízes.
Leila Linhares elogiou a decisão do presidente Michel Temer de vetar essa alteração na lei. Para ela, o veto evitou a insegurança jurídica que a legislação, considerada hoje uma das melhores no mundo para o combate à violência doméstica, poderia sofrer.
“Isso foi vetado tanto porque era inconstitucional – e seria derrubado no Supremo -, como pelo fato de que um dos grandes avanços da lei foi possibilitar o acesso das vítimas ao poder Judiciário, e, mais especificamente, a que elas tenham acesso à Defensoria Pública, não apenas para receber as medidas protetivas, mas para serem instruídas sobre seus procedimentos no processo”, destacou.
Na avaliação da advogada, delegar ao policial a concessão da medida não surtiria efeito.
“Claro que muitas delegadas, em Estados como o Rio, por exemplo, têm tido um desempenho muito bom no atendimento a essas vítimas, mas essa não é a realidade das delegacias em geral”, disse. “Não só porque ainda há a mentalidade muito pouco sensível à questão de gênero e pouco treinada para esse tipo de violência, como porque muitas vezes se tem, nesses espaços, a orientação para que a vítima não preste a queixa e busque a conciliação. Mesmo no Judiciário, há magistrados que buscam essa mediação e aplicam mecanismos que não são da lei, infelizmente”.
Fabíola Sucasas também se disse aliviada com o veto à alteração na Lei Maria da Penha. “Esse veto certamente trouxe a confirmação de que as vozes das mulheres foram ouvidas; isso traria uma imensa insegurança jurídica na aplicação da lei”, considerou.
“A ideia de que a autoridade policial teria a possibilidade de ser a única a dar proteção mais rápida é considerar a medida como único recurso e de repressão, quando, na realidade, o rol das medidas busca garantir a proteção não apenas da vítima, mas também do agressor, das testemunhas e dos familiares envolvidos em uma relação dessas”, acrescentou. O texto sancionado por Temer assegura, entre outras medidas, “o direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar de ter atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado, preferencialmente, por servidores do sexo feminino” e a “criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”.
Reforço à lei Maria da Penha
Indagada sobre qual seria a solução para combater leis que eventualmente possam infringir os direitos das mulheres, a advogada Leila Linhares pediu união da sociedade.
É preciso que as mulheres, os formadores de opinião e os setores médicos se unam e se mobilizem contra isso e entendam que, daqui a pouco, nesse ritmo, a mulher brasileira vai ter que começar a vestir burca
Leila Linhares, uma das autoras do texto da Lei Maria da Penha
“Estamos retroagindo quase um século de conquistas democráticas – quando o que queremos, nós mulheres zangadas com esse quadro, é aprofundar o processo democrático no qual é fundamental que as mulheres tenham seus direitos reconhecidos e aplicados”, afirmou a advogada. “Essas propostas, no bojo e no crescimento do conservadorismo, vão desfigurando o perfil da democracia brasileira”, concluiu.
A promotora de Justiça Fabíola Sucasas reforçou que antes de se pensar em alterações na Maria da Penha, é necessário dar mais eficácia à lei que está em vigor.
“Antes de se pensar em mudar a Lei Maria da Penha, é preciso dar efetividade a seus dispositivos. Capacitar as polícias Civil e Militar e as guardas municipais, por exemplo, e incluir na educação valores de respeito à dignidade pessoa humana dentro perspectiva de gênero, além de iniciativas –hoje, ainda muito pontuais –pela fiscalização da aplicação das medidas protetivas”, enumerou.
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