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terça-feira, 31 de março de 2020

Como a quarentena escancara a sobrecarga de mães dentro de casa

Em uma sociedade que atribui majoritariamente às mulheres as tarefas domésticas, é possível equilibrar home office, atividades de casa e o cuidado com os filhos durante o isolamento?


By Andréa Martinelli
Marcella Fernandes
31/03/2020 

Natane Tamasauskas, 34, e seu marido, Felipe, 30, precisaram criar um novo jeito de organizar o mundo do trabalho com a vida doméstica a partir do momento em que as escolas suspenderam as aulas em São Paulo por conta do covid-19. Eles são pais de Tiê, de 6 anos, Aurora, de 4, e Ravi, de 8 meses. Com a possibilidade de home office, o casal decidiu praticamente se mudar para a casa da mãe de Felipe — e contar com a ajuda dela para o cuidado com as crianças.

″Se eu não tivesse a divisão do cuidado com o Felipe, que é o pai dos meus filhos, e com a minha sogra, eu acho que para mim não seria possível”, conta Natane, formada em jornalismo, mas que atualmente trabalha como coordenadora de marketing de uma empresa. “Ela [sogra] é a minha rede de apoio. Então até por proteção a ela, mesmo antes de as aulas pararem oficialmente, decidimos que as crianças ficariam em casa”, diz ao HuffPost, em entrevista por telefone, interrompida por uma das crianças pedindo atenção. 
As imposições necessárias diante da pandemia mundial do novo coronavírus, como o isolamento forçado, tem não só exposto a sobrecarga de mães na tentativa de se equilibrar entre trabalho remoto, afazeres domésticos e cuidado com os filhos —  e de outras mulheres que funcionam como a chamada “rede de apoio” — mas também provocado novos arranjos na divisão de responsabilidades da vida doméstica com os parceiros.
O mais difícil mesmo está sendo ficar entregue ao trabalho diante das demandas de atenção das crianças e pensar em atividades para eles e tudo o mais.
Natane Tamasauskas, coordenadora de marketing e mãe de Tiê, Aurora e Ravi
A chamada “dupla jornada feminina” é evidenciada na edição mais recente da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), divulgada em 2019 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Segundo o estudo, a jornada semanal das mulheres dura em média 3,1 horas a mais do que a dos homens, levando em conta o tempo dedicado ao cuidado da casa e de seus moradores. 
Essa jornada adicional parte da tese de que quando uma mulher chega em casa, no final do dia, ela pratica seu segundo emprego não-remunerado no ambiente doméstico, ao comprar mantimentos, cozinhar, limpar e lavar a louça, além de performar “o trabalho invisível” — que é planejar, coordenar e antecipar necessidades de todos da casa.
Do total das mulheres, 92,2% realizam afazeres domésticos, como faxinar, passar, cozinhar, pagar contas, cuidar de animais e de crianças ou idosos. Entre os homens, essa proporção baixa para 78,2%. A pesquisa também aponta que existe uma grande diferença no tipo de tarefa desempenhada por cada sexo na criação dos filhos. Os homens costumam participar de atividades como ler, jogar ou brincar (73,7%) e fazer companhia em casa (87,9%). Mas, na hora de fazer o dever de casa, eles estão presentes em 60,7% dos casos ante 72% delas.
“O trabalho doméstico tem duas formas para as mulheres: o remunerado e o não-remunerado, de cuidados. O impacto da pandemia para as mulheres, nesse mundo do cuidado, é muito grande”, analisa a historiadora Glaucia Fraccaro, professora da PUC de Campinas (SP). “Estou chamando de cuidado o trabalho de casa, de limpeza, e é muito grande porque envolve o cuidado com os idosos, pessoas mais velhas e também com as crianças que estão com as aulas suspensas”, diz ao HuffPost. 
Nesse contexto, o casal Natane e Felipe, que mora em um apartamento no bairro do Cambuci, no centro da capital paulista, dispensou a diarista (mas manteve a remuneração dela) e separou a rotina em turnos. “O mais difícil mesmo está sendo ficar entregue ao trabalho diante das demandas de atenção das crianças e pensar em atividades para eles e tudo o mais. Então, por enquanto, a gente está tentando achar um meio termo”, conta Natane.

Os números do coronavírus no Brasil

O número de casos confirmados do novo coronavírus no Brasil chegou a 4.579, de acordo com balanço divulgado pelo Ministério da Saúde nesta segunda-feira (30). A taxa de letalidade nacional é de 3,5%.
No último domingo (29), eram 4.256 casos confirmados e 136 óbitos. A quantidade de diagnósticos positivos cresceu 7,6% de domingo para segunda e a de mortes, 17%.
Na nova rotina, o primeiro turno é acordar, organizar a casa, pegar as crianças e ir para a casa da avó paterna deles, no mesmo bairro - e ficar lá o restante do dia. “Lá tem quintal, e possibilita que as crianças fiquem mais entretidas, brinquem, não fiquem tanto na televisão, tablet etc. E lá eu tenho o apoio dela [sogra] com o Ravi, que é muito pequeno. Tudo isso acontece enquanto eu e o Felipe trabalhamos”, explica.
Natane (à esq), Tiê e Aurora (acima); Felipe, com Ravi no colo (à
ARQUIVO PESSOAL
Natane (à esq), Tiê e Aurora (acima); Felipe, com Ravi no colo (à dir.)
A segunda parte é o desafio de se concentrar apenas no trabalho o máximo de tempo possível. “Eu estou me esforçando bastante, mas sei que o meu desempenho seria diferente se eu estivesse somente focada nisso. Mas a gente está contando com a colaboração e com o entendimento dos nossos gestores.” A jovem conta que, na empresa em que trabalha, devido ao aumento do número de casos de coronavírus em São Paulo, pais e mães foram autorizados a fazer home office por tempo indeterminado. 
O terceiro turno, é entreter as crianças. “Eu faço muitas reuniões e por isso fico em um quartinho mais distante da casa e tranco a porta”, conta a jornalista. “Mas claro que existem milhares de interrupções. E, principalmente, no meu caso, porque o Ravi quer mamar”, diz. Enquanto isso, Felipe, que trabalha com publicidade e tem uma rotina com menos reuniões e videoconferências, consegue interagir e entreter as filhas mais velhas.
“Mas, mesmo com todo esse contexto diferente e intenso, a gente está tentando explicar para as meninas que precisa trabalhar e impor alguns limites. Ele faz menos reuniões e consegue ficar no andar de baixo da casa. Eu já preciso me trancar em um lugar mais isolado. E a minha sogra me ajuda muito com o Ravi, que ainda é um bebê. Isso pra mim é fundamental. A gente tem tentado coordenar assim até que esta fase passe”, diz. 

‘Sinto como se eu tivesse o triplo de tarefas’

Do total das mulheres, 92,2% realizam afazeres domésticos, entre eles, limpar, passar, cozinhar,...
SORBETTO VIA GETTY IMAGES
Do total das mulheres, 92,2% realizam afazeres domésticos, entre eles, limpar, passar, cozinhar, pagar contas, cuidar de animais e de crianças ou idosos.
Enquanto Natane conta com o apoio não só de seus gestores, mas de sua sogra e tenta dividir de forma equilibrada o trabalho e a rotina doméstica com o marido, a manicure Francine Souza*, de 41 anos, mãe de Gustavo, de 8, vive uma outra realidade diante do isolamento imposto pela epidemia da covid-19. “Fiquei com muito medo do que poderia acontecer. Eu tive que desmarcar todas as minhas clientes. Eu não podia me colocar em risco ou colocá-las em risco também. Algumas até disseram que poderiam me pagar mesmo assim, mas eu não quis. Não é justo com elas”, conta. 
Natural de Vitória da Conquista (BA), Francine é casada com Carlos, 45, metalúrgico na região do ABC Paulista - pólo de grandes indústrias no estado. Há pelo menos 25 anos ela trabalha como manicure em São Paulo. Ela atende a domicílio e, aos finais de semana, trabalha em um salão de beleza. “Esse é o meu sustento, mas é aquilo: temos um gasto muito alto com equipamento. A gente trabalha com tudo o que é descartável, tem que esterilizar o material; às vezes eu pago para trabalhar”, lamenta.  
Nas últimas semanas, não só as aulas em escolas municipais e estaduais foram canceladas, mas também profissionais da indústria, como Carlos, foram instruídos a ficar em casa. “Por ser informal, eu estou sem renda nenhuma. Não tenho ‘caixa’, nada. Trabalho para pagar as contas. Se não fosse o emprego fixo do meu marido, nós não teríamos como nos manter neste momento”, desabafa, acrescentando que tem se organizado dentro de casa e planeja o que comprar, já que o dinheiro é contado.
Mas sinto como se eu, mesmo sem trabalhar, estivesse com o triplo de tarefas. Faz duas semanas e está sendo muito cansativo. O duro é não saber quando vai acabar.
Francine Souza*, manicure
“Mas isso não quer dizer que eu não trabalhe”, aponta. Francine conta que assume os papéis de mãe, esposa, cozinheira e até professora. “Agora cuido da casa, do meu marido e ajudo o meu filho, que está estudando em casa até tudo voltar ao normal. Eu gosto disso, de ficar mais perto deles. A gente tem pouco tempo junto normalmente”, diz. “Mas sinto como se eu, mesmo sem trabalhar, estivesse com o triplo de tarefas. Faz duas semanas e está sendo muito cansativo. O duro é não saber quando vai acabar.” 
Muitas questões ligadas à desigualdade entre homens e mulheres foram sublinhadas conforme o novo coronavírus se espalhou pelo mundo. Tanto temas do universo do trabalho quanto da divisão das tarefas no ambiente doméstico trouxeram desafios e deixaram mais explícita a carga invisível absorvida pelas mulheres.
Uma nova pesquisa, realizada nos Estados Unidos pela Kaiser Family Foundation, aponta que 4 entre 10 norte-americanos acreditam que sua vida doméstica foi “muito” ou “pouco” afetada pelas novas dinâmicas impostas com a pandemia, principalmente desde que a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomendou o isolamento. O grupo era composto majoritariamente por pessoas casadas e com filhos de até 18 anos. 
Até o momento, no Brasil, não há estudo semelhante. Segundo a pesquisa, um número maior de mulheres - em comparação com os homens - tem se sentido mais estressada devido ao acumulo de funções, além de temerem pelo futuro do trabalho e da economia e se sentirem mais ansiosas.
“Eu não tenho dúvidas que todas as mulheres, em especial as pobres e negras, serão atingidas por essa crise. Sejam elas trabalhadoras informais ou não. A história nos mostra isto: sempre que há uma crise, as mulheres são diretamente afetadas. É preciso olhar para essa dimensão de gênero da crise”, reforça Madge Porto, professora da UFAC (Universidade Federal do Acre), que estuda questões de gênero. 
Apesar de não haver uma diferença entre os gêneros no mercado informal como um todo - ambos representam cerca de 41%, segundo o IBGE -, enquanto os homens apresentam maior participação de empregados sem carteira e em trabalhadores por conta própria, as mulheres são maioria no trabalho auxiliar familiar e compõem quase que integralmente o trabalho doméstico sem carteira, grupo em que representam 73,1% do total.
Nesta segunda-feira (30), o Senado aprovou a proposta apelidada de “corona voucher”. O texto prevê auxílio emergencial de R$ 600, por 3 meses, a trabalhadores informais. Para as mães que são chefe de família, o projeto permite o recebimento de duas cotas do auxílio, totalizando R$ 1,2 mil. Para chegar até essas mulheres, contudo, a medida ainda precisa de um decreto do governo federal detalhando as regras de pagamento, de acordo com o presidente da Caixa Econômica, Pedro Guimarães.

Elas no trabalho de cuidados

Devido a construções sociais, a expectativa é de que as mulheres é que vão estar à frente do trabalho do cuidado. “Porque é estabelecido que esse é seu papel de gênero. Pensa-se que ela é que vai ter mais habilidade, mais cuidado. Não se espera de um homem esse papel”, aponta Marilane Teixeira, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.


Para além das tarefas em si, há um estresse adicional por ter de pensar na logística das mudanças impostas pela pandemia, a chamada “carga mental”. “Isso não é pensado e visto. É como se fosse natural [às mulheres]”, afirma a pesquisadora da Unicamp.



“Boa parte das mulheres que trabalham nos empregos mais precários, menos protegidos, e que não tiveram a possibilidade de licença, tem que buscar alternativa para administrar essa situação, seja deixando o cuidado com os filhos mais velhos, seja buscando arranjos na própria comunidade, com outras mulheres. Isso é um absurdo e se volta novamente como responsabilidade exclusiva e principal das mulheres”, afirma Teixeira.

‘De um jeito ou de outro, a gente faz as coisas acontecerem’

A empreendedora Priscila Josefick, 33 anos, com seus dois filhos: Valentim (à esq.), de 4 anos,...
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A empreendedora Priscila Josefick, 33 anos, com seus dois filhos: Valentim (à esq.), de 4 anos, e Lola, de 8

“Eu só consegui te responder porque neste momento meu filho mais velho está distraído no tablet e porque coloquei a outra, que acabou de acordar, para assistir desenho”, conta Priscila Josefick, mãe de Valentim, de 4 anos e de Lola, de 8 meses. Ela, junto com seu marido, é dona de um e-commerce online especializado em produtos para mães ― e desde o início da quarentena, notou uma diminuição nas vendas. “Eu sou muito privilegiada. Trabalho em um escritório próximo à minha casa, não preciso pegar transporte público, por exemplo. Mas ao mesmo tempo, se não vende, eu não tenho como pagar as contas. É uma empresa familiar e nossa fonte de sustento”, explica. 
Por conta da pandemia, Priscila precisou dispensar uma funcionária durante o período de quarentena, deixou de frequentar a casa dos pais e se organizou para ir de uma a duas vezes ao mercado por semana, conforme a necessidade. Acostumada a trabalhar com as crianças por perto, a rotina dela e de seu companheiro se intensificou principalmente quando a creche que Valentim tinha começado a frequentar havia pouco menos de um mês paralisou as atividades. ”É bem cansativo. É muito difícil trabalhar com crianças em casa, mas a gente tem tentado balancear as demandas entre trabalho e brincadeiras.”
É bem cansativo. É muito difícil trabalhar com crianças em casa, mas a gente tem tentado balancear as demandas entre trabalho e brincadeiras.
Priscila Josefick, empresária e dona da Mamahood
Ela conta que, mesmo com as dificuldades, tem conseguido se dividir de forma equilibrada com o marido — entre trabalho, cuidado com os filhos e outras demandas do ambiente doméstico. “Se tem alguma coisa que ele precisa fazer, eu fico com as crianças e ele desenvolve, faz o que precisa fazer etc. Se a demanda é minha, se eu preciso fazer alguma coisa, ele é quem fica com as crianças para que eu possa trabalhar. E tem dado certo”, opina.
O casal mora em um apartamento pequeno em Guarulhos, na Grande São Paulo, com pouco espaço de lazer para os pequenos, e tenta entretê-los com atividades lúdicas e não ficar só no uso da televisão e aparelhos eletrônicos. “A gente é muito firme com a rotina. Mas, como estamos vivendo dias diferentes, estamos buscando leveza. Abrimos mão de muita coisa. Se eu preciso focar em algo e eles querem assistir desenho, por exemplo, tem sido algo mais flexível.” 
Diante da carga mental neste período, somada à sensação de incerteza que a pandemia do novo coronavírus desencadeou, a empreendedora deixou de acompanhar diariamente as notícias. “A doença é muito grave. Mas eu não fico entrando nessa onda de pânico. E é isso que está salvando a minha sanidade mental. Então a gente faz do jeito que dá. Porque é isto: de um jeito ou de outro, a gente faz as coisas acontecerem”, conclui.

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