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sábado, 21 de março de 2020

OPULÊNCIA E DESTRUIÇÃO EM “A FALÊNCIA”, DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA

Em uma época onde o masculino era soberano, autora carioca apresenta um olhar essencialmente feminino para os dilemas de suas personagens
Carta Capital
Mara Vanessa Torres /  8 de março de 2020
Em uma época dominada pelo universo masculino, as linhas da escritora carioca Júlia Lopes de Almeida (1862 – 1934) retratam mulheres com pensamentos e posturas díspares das representações feitas por romancistas de renome da época. No lugar de criaturas que oscilam entre beleza e ambição, há aquelas que escolhem a independência e o trabalho; para as paixões desenfreadas e as maquinações de alcova, não há o peso das correntes e das chagas públicas. Basta lembrar o final trágico de Emma Bovary em “Madame Bovary” (1857), de Gustave Flaubert, ou o estigma marcado de “A Letra Escarlate” (1850), de Nathaniel Hawthorne, para saber como a infidelidade feminina era encarada mundo afora. Focando em um exemplo mais local, há a rejeição transformada em exílio de Capitu, personagem de “Dom Casmurro” (1899), do conterrâneo Machado de Assis. Os exemplos são muitos.

Em “A Falência” (1901), Júlia descreve a ruína de uma família estruturada na base do comércio de café e que perde tudo em um golpe de azar. A narrativa se passa na cidade do Rio de Janeiro, entre 1891 e 1893, no período republicano (recém-saído das abas do Império). O ponto central é a opulência – e posterior falência – da família Teodoro, puxada pelo rico comerciante de café Francisco Teodoro, que teve sua fortuna devassada por especulações financeiras. Teodoro é um imigrante português pobre, pé na terra, que veio tentar a sorte no Brasil. No império tupiniquim, angariou sua riqueza com muito sangue e suor, com jornadas de trabalho excessivas, profundos sacrifícios e esforço hercúleo.
Ao alcançar êxito com o negócio do café, em expansão no Brasil no final do século XIX e início do século XX, Teodoro casa com uma mulher sem posses, mas bonita, e forma uma família. Mergulhado no trabalho e nas finanças, o comerciante não percebe os rumos que a vida de seus familiares vai tomando. Camila é a personagem escolhida por Júlia Lopes de Almeida para nadar contra a correnteza da época ao manter um caso de longa data – sem tantas culpas ou remorsos – com o médico e bon vivant Gervásio. Afundada até o pescoço em uma sociedade que condena a paixão fora do casamento a ferro e fogo, especialmente quando se trata da condição feminina, Camila demonstra consciência e uma mea culpa leve ao driblar a situação. Este é um dos pontos que difere Júlia Lopes de Almeida de seus contemporâneos.
A participação de outras mulheres na trama também ganha destaque e relevância na pena da escritora. Há empregadas fortes e conselheiras, como Noca; agregadas que sofrem com paixões impossíveis, mas que enxergam no trabalho uma forma de sobrevivência, como é o caso de Nina; dois outros destaques ficam para Ruth Teodoro, filha do casal, que tem uma mudança de atitude notável ao enfrentar a grande crise que ataca à família, e Catarina, irmã de um dos homens apaixonados por Camila Teodoro, o capitão Rino, que reconhece na sua independência mental e arguta inteligência um desafio quando se trata de contrair matrimônio.
As figuras masculinas da trama são elaboradas em cima de estereótipos. É possível localizar o homem trabalhador, sem pendor artístico ou intelectual, como Francisco Teodoro; o refinado e cultíssimo doutor Gervásio, que valoriza o belo e a arte em detrimento do mundano; o ingênuo e reto capitão Rino, homem apaixonado e que idealiza a mulher amada, e, fechando o ciclo dos protagonistas, encontramos o superficial e pródigo Mário, filho de Teodoro.
A maior riqueza de Júlia Lopes de Almeida é não pesar a mão em assuntos como infidelidade e independência de pensamento, temas com frequência analisados sob a lupa do final trágico para as mulheres aos olhos dos romancistas do sexo masculino. Por outro lado, a autora continua sendo uma pessoa de seu tempo e de sua classe social, imersa em maneirismos aristocráticos quando se refere à diferença entre negros e brancos – apesar de toques disfarçados de caridade e consciência.
Este foi o meu primeiro contato com Júlia Lopes de Almeida, oportunizado pela parceria com a Editora Unicamp. Nesta edição, lançada em 2018, o leitor conta com um prefácio completo escrito pela professora Regina Zilberman, material de grande utilidade informacional e didática – impedindo os mais ávidos e apressados de pular as páginas.
Trata-se de um romance urbano e histórico, que apresenta outra perspectiva do universo social – agora com um olhar bem mais voltado para o feminino – e que traz na bagagem as ideias e sugestões de sua época. Em “A Falência“, mulheres permanecem solteiras, trabalham e evoluem no percurso narrativo. Aos interessados em literatura histórica, uma edição destacadamente interessante e que vale o investimento.

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