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sábado, 7 de março de 2020

“Não dá pra fazer uma crítica à LGBTfobia sem questionar a família”, diz Amanda Palha

Por Andrea DiP
6 de março de 2020

Resumo:
Militante cobra crítica da esquerda e do movimento LGBT sobre o caráter político e econômico por trás do padrão familiar e aponta o desmonte de políticas públicas para pessoas trans

Amanda Palha é militante, travesti, educadora popular e assessora parlamentar. Uma fala provocadora (no melhor sentido da palavra) no debate “Família, religião e política” durante o Seminário Internacional “Democracia em colapso?”, em outubro de 2019, atraiu ataques de grupos religiosos e de extrema direita. Na ocasião, Amanda questionou a tentativa contínua de parte do movimento LGBT em dizer que não é uma ameaça à família tradicional e suavizar o atrito com conservadores: “Cabe a radicalização nossa também, de afirmar com todas as letras o que é uma estratégia política crítica anti-sistêmica: ‘ah, vocês querem destruir a família…’ sim. Queremos. Porque se a gente não quiser, não vai ser ameaça. E se a gente não perceber isso, a direita faz questão de corrigir nossa burrice, porque eles falam isso pra gente. ‘Vocês só são ameaça se quiserem mexer na família. Se quiserem desregrar o sexo e desnormatizar o desejo’ e a gente diz o quê? Que não quer ser ameaça?”

Em entrevista à Agência Pública, Amanda fala sobre o episódio e diz não querer nota de apoio e sim que o movimento LGBT e a esquerda se posicionem a respeito desses temas. Comenta também o desmonte das políticas públicas voltadas às pessoas trans e diz que acha importante levar pautas concretas às ruas no 8 de março (dia internacional das mulheres): “A gente não mobiliza a nossa classe por abstração, ninguém sai de casa por abstração. O que é sair em defesa da democracia? O que é a pauta da democracia no concreto da vida das mulheres da nossa classe? O que é naquela região, naquela cidade, naquele estado, discutir a perda de direitos das mulheres? O discurso abstrato não agrega, não convida, não mobiliza politicamente” e conclui: “A gente não pode ver a revolução como um grande acontecimento que, de um dia pro outro, desceu do céu. É um processo de construção cotidiana, de organização e fortalecimento de classe e das lutas”.

Por que você acha que a defesa da família heteronormativa é uma pauta tão importante e forte para esse governo e também para outros governos de extrema direita que estão se erguendo em outras partes do mundo hoje?
Eu acho que são duas coisas que caminham meio juntas. Uma coisa é a dimensão macroeconômica e política da questão. O fato de que a família convencional não é um padrão de família à toa. Ele está muito ligado às condições básicas de constituição do capitalismo, fruto dos processos de acumulação primitiva etc. Num momento pós crise de 2008, com a necessidade da burguesia de reorganizar a economia mundial e retomar o crescimento econômico, a família no molde convencional é uma forma ótima de organizar a vida como um todo. Isso porque ela se baseia justamente num trabalho doméstico não pago, não remunerado, que reduz o valor da força de trabalho. A cadeia de produção do capital, que não começa na fábrica mas começa na família, com a produção da mercadoria força de trabalho, ganha com a defesa da família convencional, com a submissão da mulher e tudo mais.
Uma outra dimensão disso, sem dúvida, é a moral ideológica. O pressuposto de humanidade que mantém o sistema de gênero e a família na sua forma convencional, a expressão máxima do sistema de gênero, também norteia todas as noções morais e éticas das discussões contemporâneas. No sentido de que, tanto o racismo mas também a adequação ao gênero, são pressupostos de humanidade do ser social, você é humano porque você constitui família, porque você é um homem cisgênero e heterossexual, ou uma mulher cis e heterossexual, numa relação de dominação. Isso fortalece e legitima a roda social como um todo. Defender a família na sua forma convencional não é só defender a família, é defender os valores modernos, os valores cristãos e liberais.

Naquele debate realizado pela Boitempo, você fez uma colocação de que o movimento feminista e o LGBT têm tentando, desde a década de 1990, se justificar de que não quer destruir a família, que quer casar também, constituir a própria família, “a gente só quer amar” em resposta aos ataques dos conservadores, no sentido de reforçar que “não somos uma ameaça”. E aponta que isso é um retrocesso político, que a esquerda precisa se radicalizar. Pode falar um pouco sobre isso?
É complexo e, como militância, a gente precisa fazer essa crítica. É entender que a dimensão que a família tem para a vida individual também é muito pesada. O fato de que a família é pressuposto de humanidade, significa a negação do acesso à família pra gente que é LGBT, para as mulheres negras e para as pessoas de uma forma geral, que são marginalizadas, um não acesso à vida pública e aos direitos. É compreensível que a defesa da família ou de outros modelos de família apareçam no movimento. Mas conforme o cerco se fecha e você vai perdendo a conexão com perspectivas revolucionárias de transformação social, você vai perdendo a crítica sistêmica, vai abrindo mão da crítica e se prende à dimensão cotidiana. E na dimensão cotidiana, não tem como dizer que a família não é importante. Assim como trabalhar é importante, ninguém vai dizer que não é importante. Mas dizer que trabalhar é importante, não nos impede de enxergar o que o trabalho assalariado significa para a reprodução mundial do capital. O mesmo é com a família. Reconhecer que o acesso à família é um legitimador de direitos e que a negação à família faz parte da violência contra à população LGBT e contra às mulheres negras, não pode nos impedir de entender o que a família efetivamente significa para a ordem social. Isso tem a ver, no movimento LGBT por exemplo, com o quanto dos anos 1980 para os anos 1990 o movimento se afastou da esquerda e a esquerda se afastou do movimento. Um movimento que passa a ser hegemonizado pela influências liberais. E todo tipo de análise sistêmica acaba indo pelo ralo e você fica com a dimensão cotidiana. Mas isso precisa ser retomado, sem sombras de dúvida, porque não dá pra fazer uma crítica sistêmica à LGBTfobia sem questionar a família, você não consegue sair da superfície da questão. Parece que é só uma coisa de acesso a direitos. E mesmo para a esquerda, que também tem problemas em fazer a discussão de família, fica sempre aquela discussão rasa de “a luta LGBT é importante porque tem trabalhadores que são LGBTs” ou “é importante a luta da mulher porque parte da classe é de mulheres”, mas não é só por isso. É porque tem uma dimensão sistêmica na misoginia, no patriarcado, na LGBTfobia. O ponto de acesso para chegar nessa dimensão sistêmica é a crítica à família.

Você inclusive foi muito atacada por essa fala. Como está isso?
Deu uma diminuída agora, felizmente. Recebi ameaças, saíram vídeos, saiu num portal fundamentalista e tudo mais. Agora eu tô me organizando para lidar com isso, produzindo alguns textos pra fazer a discussão, resolvendo juridicamente algumas ações que vão ter que ser resolvidas, porque envolvem violações graves de direitos, por pessoas públicas e parlamentares. Mas eu queria dizer uma coisa também que tenho refletido sobre isso. No ápice das mensagens e ameaças, começaram a pipocar muitas notas de apoio, e eu fiquei extremamente brava com isso, muito incomodada. Porque não é isso, não é nota de apoio. A grande questão não é a gente dizer “tudo bem aquela companheira fazer tal crítica, a gente apoia ela”, a questão é que ou a gente assume mesmo a discussão, se posiciona, ou nada. Vai ser sempre assim: LGBT, mulheres e pessoas negras se fodendo sozinhas por fazer discussões que a esquerda não tem coragem de fazer porque pega mal. Então ou a gente assume coletivamente o processo da crítica ou indivíduos que não têm a opção de deixar a crítica pra depois vão continuar se fodendo sozinhos.

E até isso, esses ataques que você sofreu – e que obviamente não deveria ter sofrido – mostram o quanto é importante a gente provocar essas discussões…
Exato. Isso evidencia o quanto o assunto é sensível.

Nós estamos vivendo um momento em que não podemos mexer com certas coisas e com certas crenças, não podemos causar incômodos. A justificativa é a de que precisamos dialogar com essas pessoas e por isso não podemos questionar as suas crenças. Você acha que, de fato, não é possível dialogar com as pessoas a partir de outros lugares que não seja por exemplo a religião? A gente não pode falar a partir de raça, classe, precarização do trabalho, violência policial? A gente tem que falar com as pessoas sempre a partir das crenças e da religião delas?
Tem algo nisso que sempre me incomodou, que é um certo distanciamento que faz com que o senso comum da militância trate a classe trabalhadora como burra. E a dificuldade em fazer a discussão mesmo no âmbito religioso, de entender o papel da religião e o que é a religião na cabeça da nossa classe, produz um preconceito de que, se a pessoa é religiosa, ela está imune a qualquer discussão crítica. Ela deixa de ser um sujeito alvo de discussão crítica, até que se supere a religião. Primeiro você precisa resolver a relação da pessoa com a religião, pra depois você discutir política. Isso me parece um desconhecimento de como a cabeça da nossa classe funciona.
Para citar um exemplo, a gente tem em Pernambuco um movimento grande em prol da legalização e regulamentação da produção de cannabis, que é protagonizado por mães, mulheres da classe trabalhadora, mães periféricas e negras, que têm contato com a discussão sobre maconha a partir da necessidade do uso medicinal. E sem dúvida, parte dessas mães tem origem religiosa, mas tem uma questão que é inescapável que é a realidade batendo, que faz a gente criticar e olhar o mundo de outra forma. E não tem pessoas pra quem mais a realidade tá batendo do que a nossa classe periférica e negra. Essa ideia de que não dá pra tocar em pontos sensíveis com a nossa classe, porque vai afastar, me parece um profundo desconhecimento da realidade. Precisamos de discussões políticas profundas, de questionamentos mais anti-sistêmicos. E particularmente, eu acho que não faltam exemplos na nossa história recente. O próprio bolsonarismo precisa ser entendido nesse sentido também. Tem a dimensão fascista do pensamento bolsonarista, que certamente é atraente para o senso comum, mas ele também pega a nossa classe em um momento de necessidade de radicalização. Não que o bolsonarismo seja radical, mas ele tem uma retórica radical, ele se vende como anti-sistêmico. Por que a gente da esquerda não tá conseguindo disputar essa necessidade de discussão anti-sistêmica na nossa classe? Isso é uma questão também.

E tem a violência do Estado, a violência policial, a pobreza, a precarização do trabalho… Outras coisas que não necessariamente têm a ver com religião. No entanto, estamos vendo partidos de esquerda criarem núcleos evangélicos. Você acha que é por aí?
Eu acho importante desfazer essa polarização entre a esquerda e evangélicos. Eu estou trabalhando em um mandato de esquerda em Recife e parte da nossa equipe é evangélica. E a gente tem discutido muito a importância de desfazer essa falsa impressão de “evangélicos versus o progresso”. Paralelo a isso, nós temos lá em Pernambuco uma frente evangélica pelos direitos, frente evangélica progressista, movimento negro evangélico, que fazem uma discussão progressista. A gente não pode legitimar e dar aval para um movimento que fundamentalistas fazem de utilizar a religião como fonte de suas pretensões políticas. E ao invés de mostrar o que é religioso e o que é político, eles falam que é religioso sim e a que qualquer disputa é contra a religião. Não é por aí, não é contra a religião.

Você está vendo hoje resistência por parte do movimento social, do movimento feminista e LGBT ao governo Bolsonaro?
Vejo, acho que cada um na sua possibilidade de ação está se movimentando. Quais estratégias são mais ou menos eficazes, é uma discussão também que iria por outro caminho. Agora, eu me preocupo muito no quanto a gente se fecha no Bolsonaro. É fundamental enfrentar o Bolsonaro, mas também é fundamental entender que ele não é um cara muito louco que conseguiu o poder por acaso. De novo, aquela discussão de não perder de vista o olhar macro-sistêmico da questão, porque tirar o Bolsonaro pura e simplesmente, não é uma solução em si. Quem fica no lugar? Quem vai assumir esse papel dele? Porque ele não está sozinho, ele representa um conjunto de interesses. Não é acidental, o Bolsonaro é uma figura genial para parte da burguesia porque, se ele der certo ou errado, ele dá bom.

Em São Paulo, nós estamos vendo uma reestruturação com o fechamento de vários espaços que atendem LGBT, você tem visto isso acontecer no resto do país? E você acha que mudou alguma coisa no atendimento às pessoas trans com a Damares Alves no ministério?
Veja, ainda é um pouco cedo para dizer que isso se atribui a ela. Com o contexto geral, de fato, tem acontecido retrocessos de todos os tipos. Em Pernambuco, a gente tem serviços parados e estacionados, dificuldade em fazê-los funcionar por falta de verba e repasse – o espaço trans do HC tá parado. Mas aí que tá, o HC tá parado há 2 anos, esse fechamento se intensifica mas não nasce agora. Existe intensificação do retrocesso nos serviços e nas políticas públicas para pessoas trans, que também têm a ver com o fortalecimento das bancadas fundamentalistas nas casas legislativas. O meu receio de fazer essa discussão é de não parecer que estava tudo bem antes, porque não estava. A gente vem em uma escalada de perdas de direitos que não começa com o Bolsonaro, é anterior. Por isso a importância de olhar o governo Bolsonaro de forma mais macro. Ele vem representando um grupo de interesses que já vem mostrando as caras desde antes.

Que vem ganhando força a cada legislatura. No Congresso nós temos vários projetos de lei que estão sendo criados ou desarquivados para barrar inclusive os direitos que já existem para pessoas trans…
Exato. E a gente começou falando disso na primeira pergunta. É entender que isso é importante para o momento político e econômico mundial. Não vamos esquecer do veto ao “kit gay” ainda na gestão da presidenta Dilma. Isso foi pré-impeachment.

A gente teve uma convocação para irem às ruas no 15 de março, em prol do governo e contra o Congresso. Tivemos com isso um chamamento à resistência ainda maior para o 8 de março. Eu queria saber quais são as pautas que você acha mais importante pra gente levar para a rua agora.
Pergunta difícil! Não sei te responder sobre pautas especificamente, até porque a construção do 8M não é genérica, cada estado, cidade, grupo, tem as suas questões que funcionam como mediações na dimensão das emergências e do que se aparece como pauta. É importante saber essas mediações. Não dá, e acho que isso é um problema que perpassa toda a esquerda e que acaba aparecendo muito, pra ser genérico, abstrato. É um discurso que a gente quer manter revolucionário, mas que vai ficando cada vez com menos conteúdo concreto. A gente não mobiliza a nossa classe por abstração, ninguém sai de casa por abstração. O que é sair em defesa da democracia? O que é a pauta da democracia no concreto da vida das mulheres da nossa classe? O que é, naquela região, naquela cidade, naquele estado, discutir a perda de direitos das mulheres? O discurso abstrato não agrega, não convida, não mobiliza politicamente. Essa é uma das dificuldades que a esquerda vem enfrentando, mas que os movimentos sociais com formas específicas de funcionamento, têm mais facilidade em trabalhar. O movimento feminista, historicamente, faz isso com mais facilidade. Que é transcrever o projeto político para as necessidades concretas. Esse é o desafio, como a gente transcreve a nossa compreensão do momento macro da sociedade e do retrocesso que a gente vem vivendo, em questões concretas e objetivas da nossa população. Afinal de contas, é isso que faz a gente ir pra rua, que movimenta politicamente. A gente não pode ver a revolução como um grande acontecimento que, de um dia pro outro, desceu do céu. É um processo de construção cotidiana, de organização e fortalecimento de classe e de lutas.

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