Pressionada por ativistas antiaborto – incluindo um integrante do conselho de saúde estadual, a secretaria do estado tornou-se uma arma na guerra contra o aborto.
By Melissa Jeltsen, HuffPost US
27/06/2020
Ilustrações por Mikyung Lee para o HuffPost
No primeiro dia de abril, Marsha Boss, uma farmacêutica católica de 68 anos, postou uma foto no Facebook. Tirada num dia ensolarado, a imagem mostrava o estacionamento da Little Rock Family Planning Services, uma das duas clínicas de aborto que restam no Arkansas, estado do Sul dos Estados Unidos. “Vimos chegar três carros do Texas, três do Tennessee e um do Alabama, todos vindo ao nosso grande estado para fazer aborto”, escreveu Boss no post. “Não é triste?”
Na mesma época, Boss comunicou essa desaprovação às autoridades estaduais de saúde, de forma privada. Por meio de mensagens de texto e telefonemas, ela reclamou que a clínica estaria violando as diretrizes de distanciamento social, fazendo “de 25 a 30” abortos por dia, e avisou que pacientes de fora da cidade ― muitos dos quais estavam tentando driblar a suspensão temporária dos abortos em seus estados, por causa da pandemia – poderiam espalhar a doença infecciosa no Arkansas. Ela também disse que viu alguém entrando na clínica usando máscaras cirúrgicas, então muito cobiçadas, além de cerveja.
Na mesma época, Boss comunicou essa desaprovação às autoridades estaduais de saúde, de forma privada. Por meio de mensagens de texto e telefonemas, ela reclamou que a clínica estaria violando as diretrizes de distanciamento social, fazendo “de 25 a 30” abortos por dia, e avisou que pacientes de fora da cidade ― muitos dos quais estavam tentando driblar a suspensão temporária dos abortos em seus estados, por causa da pandemia – poderiam espalhar a doença infecciosa no Arkansas. Ela também disse que viu alguém entrando na clínica usando máscaras cirúrgicas, então muito cobiçadas, além de cerveja.
“A clínica de aborto acha que está acima da lei e certamente acima de quaisquer regras, mas agora temos a covid 19”, disse uma mensagem enviada por Boss a Laura Shue, advogada ligada à secretaria de saúde do Arkansas. “Sei que você está ocupada, Laura, e odeio incomodá-la com isso, mas realmente acho muito importante.”
Muito antes de o coronavírus chegar ao Arkansas, Boss já vigiava a clínica de Little Rock. Desde 2008, ela organiza protestos, reúne membros da igreja para participar de campanhas pró-vida e recruta voluntários para rezar na porta da clínica. Ao contrário dos manifestantes evangélicos radicais, que carregavam fotos horríveis de fetos e chamavam as mulheres de assassinas, Boss e sua equipe sempre foram mais comedidos, preferindo orações silenciosas e cartazes como “Antes de te formar no útero, eu te conhecia”. Ainda assim, ela frequentemente abordava as pacientes quando elas estacionavam seus carros, entregando panfletos e implorando que elas dessem meia-volta, diz o segurança da clínica, Guy Hooper, que conversou por telefone com o HuffPost. Às vezes, ela vestia jaleco ou avental branco, segundo Hooper, talvez para indicar seu diploma de farmacêutica. Mas, como Boss não é funcionária da clínica, o uniforme também poderia confundir as pacientes. Em sua página do LinkedIn, ela descreve sua profissão como “Guerreira de Oração Contínua em Deus”.
O Arkansas é considerado um dos estados mais antiaborto dos Estados Unidos. Desde 2012, quando os republicanos assumiram o controle da assembleia estadual, o Arkansas promulgou leis que estão entre as mais restritivas do país, algumas das quais atualmente são contestadas na Justiça. As mulheres que querem abortar devem atender a uma lista cada vez maior de exigências, que vão de uma espera de 72 horas a aconselhamento obrigatório sobre o conceito desmascarado da “reversão do aborto”. Para algumas pacientes, os obstáculos são simplesmente insuperáveis; uma em cada cinco mulheres que procuram um aborto têm de sair do estado para obtê-lo. Em 2019, o Arkansas registrou os mais baixos números de aborto em 42 anos.
O fechamento da clínica de Little Rock é o cálice sagrado do movimento antiaborto local, pois é a única clínica do estado que realiza “abortos cirúrgicos”. O próprio termo é enganoso pois não há incisão nem anestesia geral. “Aborto cirúrgico” refere-se a todos os procedimentos de aborto realizados em consultório, como aqueles que envolvem sucção uterina. A clínica de Little Rock também fornece aborto por pílula, assim como a outra clínica do estado. Mas o medicamento só pode ser ministrado até a décima semana de gravidez ― portanto, para as mulheres cuja gravidez está mais avançada, a clínica de Little Rock é a única opção no estado.
Boss se referiu à clínica de Little Rock como “os portões do inferno” em uma entrevista de 2015 ao site Arkansas Catholic. “Esses bebês estão sendo crucificados lá.” No passado, ela enviou à Pro-Life Action League (uma organização nacional antiaborto) documentos sobre supostos crimes cometidos pela clínica e usou as mídias sociais em sua campanha. “Outra pobre mamãe foi ao hospital de ambulância depois de sair da clínica, por volta das 14h”, escreveu ela no Facebook no final de dezembro. “O ABORTO FAZ MAL ÀS MULHERES!!!” Não está claro o que aconteceu naquele dia ou por que uma ambulância foi chamada ― o aborto é um dos procedimentos médicos mais seguros realizados nos Estados Unidos ―, mas posts alarmistas desse tipo são uma tática comum dos inimigos do aborto. O objetivo é fazer o aborto parecer perigoso e não-regulamentado.
O medo é a munição de Boss. Quando o novo coronavírus chegou ao Arkansas, em março, ela estava pronta para atirar. Boss também tinha uma vantagem tática: em 2018, o governador republicano do Arkansas, Asa Hutchinson, um firme defensor do movimento antiaborto, a indicou para o conselho de saúde do estado. O conselho define todas as regras e regulamentos para o licenciamento de profissionais de saúde, incluindo clínicas de aborto. Além disso, tem o poder de suspender as licenças que permitem a realização de abortos.
Como integrante do conselho, Boss participou de reuniões trimestrais nas quais expressou suas preocupações sobre as clínicas remanescentes no estado. As reuniões eram frequentadas regularmente pelas principais autoridades de saúde do estado, incluindo o secretário de Saúde, Nate Smith. Durante a maior crise de saúde em um século, Boss tinha uma conexão direta com os responsáveis pelo combate à pandemia.
Pouco mais de uma semana depois do post de abril de Boss, a clínica seria forçada a parar de fazer abortos cirúrgicos, desencadeando uma catástrofe na saúde reprodutiva no estado.
Nos primeiros meses da pandemia, muitos estados adotaram medidas agressivas de contenção do vírus, ordenando que as pessoas ficassem em casa e fechando serviços não-essenciais. Em tese motivadas por questões de saúde pública, essas medidas também foram influenciadas por pressões políticas.
De março a maio, os governadores de 12estados americanos determinaram que o aborto não era um procedimento médico essencial, provocando confusão generalizada e alguns fechamentos temporários de clínicas. Para entender melhor como os estados tomaram essas decisões, o HuffPost se concentrou no Arkansas e revisou centenas de páginas de comunicações internas da secretaria de saúde do estado de abril e maio.
O que se revelou viu foi a história de uma secretaria de saúde que virou arma na guerra contra o aborto – graças à pressão de legisladores e ativistas antiaborto, incluindo Boss.
Os documentos que analisamos foram obtidos por meio de uma solicitação da Lei de Acesso à Informação apresentada por advogados da clínica de Little Rock. (O HuffPost tentou solicitar documentos diretamente à secretaria de saúde, mas o pedido foi negado por que não residimos no estado.) Conversamos com seis pessoas associadas à clínica de Little Rock, além de especialistas em saúde pública e aborto. Boss recusou nosso pedido de entrevista, assim como a secretaria de saúde, citando “litígios sobre esse assunto” ainda em andamento. Um porta-voz do governador Hutchinson afirmou que o decreto usado para interromper o aborto cirúrgico foi mantida pela Justiça após contestações legais. “Os abortos cirúrgicos não tinham direito a uma isenção especial”, afirmou por email um porta-voz de Leslie Rutledge, secretária de Justiça do Arkansas.
As consequências da proibição do aborto cirúrgico eram incalculáveis. Muitas mulheres tiveram seus abortos cancelados e foram obrigadas a sair do estado em meio à pandemia. E, em alguns casos conhecidos, as mulheres que queriam abortar não conseguiram fazê-lo antes da data de corte legal (a idade limite do feto varia de acordo com o estado). Elas continuam grávidas, contra sua vontade.
O primeiro caso de coronavírus no Arkansas foi registrado em 11 de março. No início de abril, havia quase 600 infectados. Hutchinson fechou escolas, academias e restaurantes (com exceção de delivery e venda para viagem) e proibiu reuniões acima de mais de 10 pessoas em lugares fechados. Mas, diferentemente de quase todos os outros estados, não houve ordem para que as pessoas ficassem em casa. A população poderia determinar o que era seguro, e muitas lojas seguiram abertas.
O estado, no entanto, determinou que procedimentos que pudessem ser “adiados com segurança” fossem suspensos, para garantir que os equipamentos de proteção individual fossem destinados ao combate à Covid-19. O decreto sobre essas cirurgias eletivas, publicado pela secretaria de Saúde do Arkansas em 3 de abril, criou uma exceção para cuidados urgentes e situações em que o problema de saúde pudesse progredir ou piorar sem intervenção cirúrgica.
A maioria dos governadores adotou medidas semelhantes em relação aos procedimentos eletivos. Mas se o aborto era considerado essencial ou passível de adiamento era uma questão que dependia de quem dava as ordens. No vizinho Texas, uma ordem de emergência parecida foi usada para fechar as clínicas, apesar das preocupações de associações médicas, como o Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas, que alertou que o adiamento do aborto por dias ou semanas “pode aumentar os riscos ou potencialmente torná-lo completamente inacessível.”
O decreto do Arkansas não fazia referência específica ao aborto. Em comentários públicos posteriores, Hutchinson e Smith, respectivamente governador e secretário de saúde do estado, evitaram perguntas de jornalistas sobre como o decreto deveria ser interpretado em relação ao aborto. Questionado diretamente em 6 de abril, Smith disse que o decreto “não pretendia substituir decisões médicas” sobre se um determinado procedimento poderia ser adiado com segurança. Em outras palavras, o médico teria a palavra final.
A oito quilômetros da clínica de Little Rock, os funcionários da secretaria de saúde do estado tentavam entender aquela ordem vaga. Uma linha telefônica criada para responder perguntas sobre o coronavírus recebia diversas perguntas sobre aborto ― e os funcionários não sabiam como respondê-las.
“Podemos obter esclarecimentos se o aborto é considerado um procedimento eletivo ou essencial?”, perguntou em 6 de abril Joyce Gorney, uma atendente da linha direta do coronavírus, a um advogado da secretaria de saúde. O advogado respondeu que o assunto estava sob análise e ela receberia um retorno. Dias depois, ela voltou a pedir orientação, afirmando que “pessoas estavam ligando nervosas” porque a clínica de Little Rock continuava aberta. Não está claro se ela recebeu uma resposta do advogado, mas, ao mesmo tempo, outras autoridades estavam montando um roteiro para os operadores. Em um e-mail, sugeriu-se que os atendentes agradecessem ao interlocutor “por compartilhar sua perspectiva pessoal sobre o assunto”. Os operadores deveriam dizer que estavam analisando as preocupações levantadas.
Os funcionários da secretaria de saúde também estavam sob pressão constante de Boss, que, como integrante do conselho de saúde, atua como consultora de políticas públicas. Desde o início de abril, ela procurava as principais autoridades estaduais de saúde e outros funcionários para reclamar da clínica de Little Rock, enviando fotos de carros estacionados e alegando que a clínica estaria violando as diretrizes de distanciamento social.
Boss estava “muito chateada/nervosa”, escreveu uma assistente executiva do chefe de gabinete da secretaria num e-mail enviado em 1º de abril ao departamento jurídico. “Ela quer que alguém vá lá conferir o que está acontecendo e quer saber quem será essa pessoa e quando ela vai.” Boss também ligou para o escritório de Smith, de acordo com e-mails.
Em 7 de abril, a secretaria de saúde recebeu outra queixa sobre a clínica de Little Rock, dessa vez de uma enfermeira aposentada cujo nome foi apagado nos registros revisados pelo HuffPost. A denúncia repetia muitas das preocupações de Boss. “Houve um grande aumento no número de mulheres que vêm abortar em Little Rock, vindas de Texas, Louisiana e Oklahoma, como observado nas placas dos carros”, escreveu a pessoa em um email enviado diretamente a Smith. “[A clínica] está cheia cheia cheia, ganhando dinheiro e usando EPIs [equipamentos de proteção individual] valiosos que poderiam ser utilizados em ambientes hospitalares para salvar vidas.”
Em poucas horas, Becky Bennett, chefe da divisão da secretaria que lida com reclamações sobre instalações médicas, enviou uma equipe para investigar. Mas a cena que eles encontraram era muito diferente da descrita pela enfermeira e por Boss. Havia apenas um carro no estacionamento, e a clínica parecia ter tomado medidas para garantir o distanciamento social. As informações de triagem estavam postadas na porta da frente. Do lado de dentro, a sala de espera tinha placas nas cadeiras, assegurando uma distância mínima de dois metros. A clínica fez 15 abortos naquele dia, e 12 estavam agendados para o dia seguinte ― muito menos que os “25 a 30” apontados por Boss.
Lori Williams, diretora da clínica, explicou aos fiscais que a Little Rock Family Planning Services tinha notado um pequeno aumento no número de pacientes vindos do Texas, devido à proibição do aborto naquele estado. Apresentando uma cópia do decreto de 3 de abril, ela disse aos investigadores que, no seu entendimento, os abortos estavam isentos da proibição. A ordem permitia procedimentos se houvesse risco de uma condição progredir se a cirurgia não fosse realizada. Os abortos são considerados essenciais, acrescentou Williams, porque o avanço da gestação representa mais riscos para a paciente, segundo relatório dos fiscais que fizeram a visita.
Os investigadores da secretaria pareceram concordar. Eles afirmaram que “nenhuma deficiência foi citada” e não recomendaram ações adicionais. No dia seguinte, a secretaria de saúde preparou uma carta a Williams dizendo que a clínica estava em conformidade com as regras e regulamentos. Bennett, chefe da fiscalização, a assinou e pediu que um funcionário enviasse o documento por e-mail, diretamente para Williams. Mas, antes que esse funcionário o fizesse, chegou outro email de Bennett: “ESPERA”.
O departamento não enviaria uma carta padrão dessa vez. Em vez disso, por razões desconhecidas, Bennett encaminhou as conclusões dos fiscais a duas chefes da secretaria: Renee Mallory, vice-diretora de programas de saúde pública, e Connie Melton, diretora do Centro de Proteção à Saúde. Outro funcionário assumiu a responsabilidade de redigir a carta, e incluiu no circuito um advogado do escritório do governador. Quando o texto voltou para a assinatura de Bennett, estava irreconhecível. De acordo com um email enviado por Melton aos advogados do departamento, a “AG modificou o rascunho da carta”. “AG” é uma referência à secretária da Justiça do estado, Leslie Rutledge, de acordo com Bettina Brownstein, uma das advogadas que representam a clínica de Little Rock.
O documento, agora, determinava que a clínica parasse de fazer abortos cirúrgicos imediatamente, sob o risco de perder a licença de operação.
Acima: Assim como o Arkansas parou de fazer abortos cirúrgicos, outros estados instituíram proibições semelhantes, deixando as mulheres na região com poucas opções.
Conversei com Williams, enfermeira e diretora clínica da Little Rock Family Planning Services, por meio de uma chamada de Zoom, em junho. Williams, que usava um uniforme azul marinho, estava na clínica, com os cabelos presos em um rabo de cavalo. A iluminação forte do teto lançava pequenas sombras em seu rosto, e ela falou no tom direto e objetivo, mas ao mesmo tempo afetuoso, das enfermeiras experientes.
“Estou sempre aqui”, disse ela, abrindo um sorriso. Além de suas funções administrativas, Williams, que trabalha na clínica desde 2004, atua principalmente como guardiã, protegendo a clínica dos ataques de legisladores, manifestantes e outros que querem o seu fechamento. Em 16 anos, ela esteve envolvida em 12 ações judiciais desafiando as tentativas do Estado de restringir o acesso ao aborto. Colegas antigos e atuais dizem que Williams mantém a calma em situações de pressão e é extremamente profissional.
Williams começou sua carreira assistindo partos, antes de voltar para a escola para obter um diploma avançado. Depois de formada, ela viu um anúncio de emprego em uma clínica de aborto em Little Rock. Quatro anos depois, aquela clínica fechou, e ela começou a trabalhar na Little Rock Family Planning Services. Ela não vê contradição numa carreira que começou auxiliando partos e agora envolve o término da gravidez: “É tudo assistência médica, ajudar as mulheres em um momento de necessidade.”
Assim que o surto de coronavírus atingiu o Arkansas, disse Williams, a clínica adotou medidas para proteger pacientes e funcionários, entendendo que um passo em falso poderia ser usado como argumento para fechá-la. As clínicas de aborto são monitoradas de perto no Arkansas, sujeitas a 35 páginas de regras e regulamentos. Em um sinal de seu imenso poder, os fiscais da secretaria estão autorizados a entrar nas clínicas sem aviso prévio e podem suspender ou revogar a licença de funcionamento caso encontrem uma única irregularidade.
Para reduzir o número de pacientes, a clínica parou de prestar cuidados ginecológicos básicos, como exame de Papanicolau e de doenças sexualmente transmissíveis, diz Williams. Eram oferecidos somente os serviços de aborto. A clínica escalonou as consultas e pediu que as pacientes aguardassem em seus carros, em vez de usar a sala de espera. Os voluntários que ajudam as pacientes a entrar na clínica com segurança, protegendo-as dos manifestantes, foram instruídos a ficar em casa, por cautela extra.
O coronavírus não impediu o assédio dos manifestantes – pelo contrário, diz Williams. E eles nem sempre usavam máscaras ou respeitavam as diretrizes de distanciamento social. Pareciam encorajados pelo fechamento de clínicas nos estados vizinhos, acredita ela. Boss era vista com frequência nas imediações da clínica, espiando pela cerca e tirando fotos, diz Guy Hooper, o segurança. Por duas vezes, os manifestantes chamaram a polícia afirmando ter presenciado ilegalidades na clínica.
Williams temia que Boss tentasse usar seu poder no conselho de saúde para fechar a clínica, usando o coronavírus como argumento. “Essa foi a minha preocupação”, diz ela. “Parece um enorme conflito de interesses, e uma atitude muito antiética, misturar suas opiniões pessoais e seu trabalho profissional.”
No início de abril, Williams participou de duas ligações com a secretaria de saúde, nas quais explicou as medidas que a clínica estava tomando. Ela afirma não ter sido informada de que o aborto era considerado não-essencial. Ninguém a avisou da fiscalização de 7 de abril. Ela foi surpreendida três dias depois, a Sexta-feira Santa, com a ordem de interromper os abortos.
Havia oito abortos cirúrgicos marcados para aquele dia, incluindo o de uma mulher na 17ª semanas de gravidez. (Hoje, as mulheres no Arkansas podem abortar até a vigésima semana; uma redução no prazo para 18 semanas foi assinada por Hutchinson em 2019, mas está temporariamente bloqueada pela Justiça.)
Seria a segunda visita para todas as mulheres, pois elas tinham sido obrigadas a comparecer três dias antes para uma sessão de aconselhamento. Muitas tinham viajado longas distâncias ― duas vezes. Agora, eram informadas de que não poderiam fazer o aborto.
A primeira preocupação de Williams foi ajudá-las a remarcar o aborto em outro lugar. Mas em muitos dos estados vizinhos havia proibições semelhantes. “Louisiana, Texas e Tennessee também tiveram restrições em algum momento ou outro”, diz Williams. “Era difícil saber que clínicas próximas ainda estavam abertas. Viajar de avião não era uma alternativa.”
Enquanto a equipe da clínica aconselhava as pacientes, manifestantes antiaborto e deputados estaduais comemoravam do lado de fora. Boss chegou à clínica antes mesmo do documento da secretaria de saúde, diz o segurança Hooper. Na entrada do estacionamento, o senador estadual Jason Rapert (republicano) fazia uma transmissão ao vivo no Facebook. “Passando por aquela porta, elas tomam uma decisão que mudará suas vidas e acabará com a vida de pequenos seres humanos”, dizia ele. “Temos de marcar posição em nome da vida humana.” Ele não estava de máscara.
No Twitter, outro senador estadual do Partido Republicano, Trent Garner, aplaudiu a notícia. “Parece que se começa a fazer cumprir o decreto que interrompe os abortos”, escreveu ele. (Algumas semanas antes, ele tinha pressionado o governador a proibir o aborto em um post que dizia: “Não devemos expor as mulheres ao risco do vírus Wuhan COVID-19 por causa de um procedimento eletivo desnecessário, e poderíamos salvar as vidas dos bebês ainda não nascidos.”)
Em um comunicado publicado na internet, Rutledge, a secretária de Justiça, prometeu tomar ações decisivas caso o decreto fosse desrespeitado.
Williams, que tem a American Civil LIberties Union (ACLU, organização sem fins lucrativos que defende as liberdades individuais) na agenda do telefone, pediu ajuda.
Na segunda-feira seguinte, dia 13 de abril, a ACLU, juntamente com o escritório de advocacia O’Melveny & Myers, processou o estado em nome da clínica, pedindo o fim da suspensão dos abortos cirúrgicos. “Foi uma decisão política tomada pelo governador”, disse Brownstein. “Na minha opinião, a secretaria não queria a suspensão [dos abortos]. Havia tanta pressão política, não apenas de Marsha Boss, mas de certos legisladores antiaborto, e eles fizeram tanto barulho, que o governador concordou.”
Na noite de terça-feira, um juiz federal permitiu a retomada dos abortos cirúrgicos. Williams passou o dia seguinte inteiro ligando para os pacientes e reagendando consultas. Algumas mulheres estavam perto do limite legal para o aborto, era preciso correr para atendê-las. A clínica fez abortos cirúrgicos por outros três dias, até que os tribunais entrassem em cena novamente.
Em 22 de abril, uma instância superior restabeleceu a proibição (https://www.aclu.org/legal-document/eighth-circuit-court-appeals-ruling-arkansas-abortion-access-challenge). Os juízes afirmaram que a determinação da secretaria de saúde na realidade era um “adiamento, não uma proibição”, porque expiraria em 11 de maio (a menos que o governador renovasse o estado de emergência).
Mais uma vez, a clínica teve de parar de fazer abortos cirúrgicos. Williams cancelou dezenas de compromissos na última hora. Àquela altura, ela disse, os atrasos tinham gerado muita confusão e criado um gargalo na fila de pacientes. “Ajudamos pelo menos 40 mulheres a encontrar outras clínicas”, diz ela. “Mas recebemos dezenas de ligações de mulheres tentando marcar consultas futuras que não poderíamos atender.”
A clínica ainda estava fornecendo abortos por via medicamentosa, diz ela, mas esse método só pode ser usado nas primeiras 10 semanas de gravidez.
Em 27 de abril, o estado emitiu um novo decreto a respeito de cirurgias eletivas. Segundo as novas regras, as cirurgias eletivas poderiam ser retomadas desde que o paciente tivesse um teste negativo de COVID-19 nas 48 horas anteriores ao procedimento. Na época, os testes ainda estavam em falta no país inteiro, e as pacientes que buscavam abortos cirúrgicos agora tinham a tarefa impossível de encontrar um laboratório que aceitasse fazer o exame em pessoas assintomáticas e além disso apresentasse o resultado rapidamente.
“Continuaram dificultando as coisas”, diz Williams. “Foi extremamente difícil.” Ela ligou para mais de 15 hospitais e clínicas de atendimento emergencial em buscas dos testes. Naquela semana, a clínica de Little Rock teve de recusar mais de 50 pacientes que procuraram atendimento, incluindo 14 que tentaram, mas não conseguiram obter os resultados dos exames a tempo. Williams enviou um email à secretaria de saúde pedindo ajuda para encontrar um laboratório que pudesse garantir resultados rápidos, mas nunca recebeu resposta.
Em 1º de maio, a clínica de Little Rock entrou com outra ação na Justiça, pedindo a suspensão da exigência dos testes e alertando que havia várias mulheres prestes a ultrapassar o limite legal para abortar. Em 7 de maio, um juiz federal negou o pedido da clínica, citando a opinião anterior que dizia que, para enfrentar uma crise de saúde pública, o estado pode tomar medidas que violem os direitos constitucionais.
Então, quase duas semanas depois, a secretaria de saúde anunciou o relaxamento dos requisitos de testes. A partir de 18 de maio, os pacientes teriam até 72 horas antes do procedimento eletivo para obter um teste. Naquela época, afirma Williams, a clínica já tinha contato com laboratórios para conseguir testes rápidos (além disso, havia mais disponibilidade de testes em todo o estado). Ainda era complicado para algumas pacientes, e algumas simplesmente não conseguiam atender as exigências, mas a clínica decidiu desistir da ação judicial.
“Ainda achamos que as ordens são inconstitucionais, mas travamos várias batalhas diferentes para manter a escolha reprodutiva”, diz Brownstein. “Certamente outras virão.”
O preço total do fechamento de clínicas na América durante a pandemia de coronavírus ainda está sendo entendido. Quantas mulheres não tinham dinheiro para viajar para outro estado para receber atendimento? Quantas hoje seguem grávidas e terão de levar a termo uma gestação indesejada? Quantas tentaram aborto secreto em casa?
São perguntas sem respostas, pelo menos por enquanto.
No Arkansas, a clínica de Little Rock recebeu muito menos pacientes em abril e maio em comparação com os mesmos meses do no ano passado. Williams se pergunta o que aconteceu com aquelas mulheres a quem a clínica não pôde ajudar. Ela conhece pelo menos duas pacientes que perderam a janela do aborto legal.
Mesmo as pacientes que conseguiram abortar sob as regras do governador foram afetadas pelo estresse da experiência, afirma Williams.
Uma mulher teve que ir de carro para Little Rock sete vezes antes de poder fazer um aborto. “Ela fez o teste de COVID e o resultado não saiu a tempo. Então ela teve que fazer outro teste e esperar que o resultado saísse a tempo. Vimos isso se repetir várias vezes”, diz Williams.
A mulher quase perdeu o emprego por causa das ausências inexplicáveis, segundo Williams, que ligou para o chefe da paciente para explicar por que ela precisava de tantos dias de folga. Além do impacto financeiro – os dias não trabalhados e a gasolina ―, a mulher ficou traumatizada por ter de manter uma gravidez indesejada por mais um mês. “Ela fez tudo o que era necessário e ainda assim não podia abortar.”
Williams toma cuidado para não culpar ninguém pelo que aconteceu com o acesso ao aborto no Arkansas durante a pandemia. “É a secretaria de saúde, é o governador”, afirma ela. Williams também suspeita que Boss, ao mesmo tempo manifestante antiaborto e integrante do conselho de saúde, teve um papel significativo. Em declaração enviada ao HuffPost, o governador Hutchinson defendeu Boss, afirmando que ela “tem o direito de expressar suas crenças” e observando a importância de diversas perspectivas no conselho de saúde.
Williams acha que muitas mulheres tiveram seu direito negado por um golpe político insensível.
Não precisava ser assim, acrescenta ela.
“Na imensa maioria dos estados, não houve interrupção do atendimento ao aborto. Médicos e profissionais de saúde puderam decidir os cuidados apropriados e como aplicá-los”, diz ela. “No Arkansas, o direito ao aborto foi violado.”
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