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domingo, 14 de junho de 2020

Isolamento social e conflitos familiares: que saídas?

Por Lorenna Figueiredo de Souza
Quarta-feira, 10 de junho de 2020

O aparecimento da COVID-19, com seu alto nível de contágio, e a consequente exigência de confinamento como medida de prevenção, é um acontecimento fortuito que desorganizou nossa rotina, impondo um modo inédito de convivência.

A restrição de nossa possibilidade de ir e vir, o deslocamento do ambiente de trabalho e estudo para dentro de casa, a saída de cena de nossos empregados domésticos, o afastamento temporário das pessoas que amamos devido à necessidade de prevenção do contágio, o risco de morte inerente ao vírus, tudo incidiu sobre nossa forma habitual de (con)viver. Rompidas as pactuações que regulavam nosso cotidiano, uma nova rotina precisa ser inventada, à força. O impacto das mudanças foi sentido fortemente no cotidiano, possibilitando a emergência de uma série de conflitos. Além de notícias que informam sobre o aumento do número de divórcios após o período de confinamento decorrente da pandemia, e do recrudescimento da violência doméstica, os operadores de direito, em especial do direito das famílias, têm convivido com a quebra nos contratos de guarda, convivência e alimentos. Qual a origem desses conflitos? Por que a necessidade de confinamento favorece esse tipo de situação?

Nossas relações sociais são reguladas através de pactos. O direito, a lei, é a faceta mais evidente disso – o arcabouço jurídico é a regulação-mor de cada país. Entretanto, esses não são os únicos pactos que nos regem: somos regulados por uma série de outros, que incluem os costumes da nossa sociedade, nossa cultura, que nos são transmitidos através de gerações. Mas, além disso, existem ainda os pactos estabelecidos em cada uma das relações que frequentamos: em nosso ambiente de trabalho, entre nossos amigos e, obviamente, nas nossas famílias. Essas pactuações vão sendo construídas diariamente e, muitas vezes, de maneira silenciosa. 

Sobre o que incidem essas pactuações? Sobre algumas tendências que ameaçam a convivência, tendências agressivas, de dominação do outro, de imposição de poder. Toda pactuação implica em uma perda de liberdade, na renúncia de alguns de nossos anseios em nome de uma convivência, con-viver, um viver junto.

Essas pactuações não são perenes, podem ser rompidas, repensadas, a partir da insatisfação de uma das partes com o que está pactuado, ou a partir de um acontecimento fortuito – uma gravidez, a morte de um membro da família, por exemplo – o que vai exigir um trabalho de repactuação, de reorganização da dinâmica daquele grupo. As medidas de distanciamento social decorrentes da pandemia da COVID-19 se enquadram como um desses acontecimentos, o que vem exigindo repactuações coletivas – são as discussões que temos acompanhado no campo trabalhista, de políticas sociais, entre outras – e privadas, que são aquelas que dizem respeito ao espaço doméstico, à convivência familiar.

A sobreposição dos espaços público e privado na casa é, certamente, um gerador de conflitos. A casa passa a congregar os espaços da intimidade, do trabalho, do estudo, do lazer, atividades que, normalmente, são setorizadas, obedecendo seus próprios códigos. Como fazer quando tudo isso se reúne em um único espaço?  É certo que os códigos e pactos que valiam para a vida doméstica não servem mais para esse momento. Novas regras, divisões de espaço e de tarefa precisam ser construídas para regular esse novo tipo de convivência. Se, como vimos, os pactos regulam certas tendências agressivas e de dominação, pode-se esperar a emergência de uma série de conflitos no momento em que se rompem

A repactuação também pode ser uma fonte de conflitos. Diante de uma situação inédita como a atual, recorremos a soluções já conhecidas para tentar construir uma resposta. Os papéis de gênero intervirão nesse processo: tradicionalmente, às mulheres cabe o espaço privado, da casa, da intimidade; enquanto aos homens, o espaço público, o mundo do trabalho, da política. É claro que avançamos muito e hoje as mulheres ocupam mais amplamente o espaço público, contudo: será que ainda não subjaz em nossa cultura essa divisão? E será que ela não se recoloca nesse momento em que todos nos recolhemos às nossas casas? Será que nossos pactos silenciosos não deixam subjacente que a gestão da casa cabe à mulher? É certo que os conflitos familiares que emergem devido ao convívio intenso decorrente do distanciamento social têm importantes marcadores de gênero. Eles mostram que as “quatro paredes” das nossas casas, são constituídas por uma série de regulações que remetem, sim, aos papéis de homens e mulheres na nossa sociedade. Esses papéis ficam ainda mais evidentes através de uma ruptura fundamental nesse momento, que é saída de cena dos empregados domésticos. Ou melhor, empregadas domésticas, porque, em geral, é a outras mulheres que mulheres de classe média, entregam parcialmente a gestão da vida doméstica para poder ocupar o espaço público. Quando essas mulheres saem de cena, quem entra? As donas da casa? É possível isso diante das outras atividades que lhes cabem? Ou será necessário dividir isso com os outros moradores da casa – maridos e filhos?

Ao longo de seu ensino, o psicanalista Jacques Lacan indica que a linguagem e o discurso, matéria-prima dos nossos pactos, são os muros que dão contorno às nossas vidas. Isso fica muito evidente no caso das famílias que já não mais moram juntas, decorrentes da separação do casal parental:  os pactos de guarda, convivência e alimentos estabelecem novas regras de convívio familiar, resguardando os direitos dos sujeitos ali envolvidos das tendências agressivas e de dominação de alguma das partes. É o que vai constituir o “ambiente” familiar. A necessidade de repensar a rotina devido às medidas de distanciamento social também incidiu sobre essas pactuações, rompendo acordos construídos muitas vezes com tanta dificuldade, possibilitando a emergência de tendências que haviam sido reguladas com a ajuda dos operadores do direito.

 De forma que, no momento atual, estamos confinados em nossos espaços domésticos, mas em uma situação que nos é estranha, pois as paredes discursivas que nos protegiam ruíram. Daí nos sentirmos, por vezes, perdidos em território desconhecido, apesar de estarmos em casa. Inventar uma nova convivência demandará um esforço de deslocamento de todas as partes envolvidas no rearranjo, a necessidade de abrir mão de verdades e modos de funcionamento estabelecidos, além do desejo de manutenção desses que são os laços que dão esteio às nossas vidas – os laços familiares. A aposta é no único instrumento de mediação que está ao alcance de todos, matéria-prima de nossas pactuações – a palavra, que deve se efetivar através, preferencialmente, através do diálogo. 

É fundamental, portanto, que as famílias recuperem sua capacidade de dialogar. Do mesmo modo, os operadores do direito e seus colaboradores – psicólogas, assistentes sociais, mediadores – têm a responsabilidade estimular, com sua prática, que as famílias sob seu cuidado sigam nessa mesma direção, pois esse é o meio de construir saídas, ainda que permanecendo em casa.

Lorenna Figueiredo de Souza é psicóloga, Mestre pelo Programa de Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (PGPSA/UERJ), ligada a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (SES-RJ), colaboradora da Comissão de Direito das Famílias da OAB-RJ, subseção Barra da Tijuca. Participante da Escola de Psicanálise Letra Freudiana.

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