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domingo, 2 de agosto de 2020

“Boca a Boca” mostra que só a liberdade pode curar qualquer mal

Vírus misterioso espalhado pelo beijo é apenas o pano de fundo da nova série brasileira da Netflix, que aborda os males do conservadorismo

por Soraia Alves
29.jul.2020

Não há como falar da nova série brasileira da Netflix sem fazer paralelos com a atual pandemia de Covid-19. Embora o projeto de “Boca a Boca” tenha sido concebido há dois anos, a produção estreou em julho na plataforma de streaming, enquanto os números de contaminados pelo coronavírus só crescem no país. E contaminação é justamente o centro da trama de Esmir Filho, que aborda um vírus misterioso que começa a se espalhar entre os jovens de uma cidade no interior de Goiás através do beijo.

O atual contexto, porém, pode afetar um pouco a compreensão geral de “Boca a Boca”, que fala muito mais sobre conexões, liberdade e experimentações, do que sobre uma doença. O espectador mais desatento pode deixar-se envolver apenas pela curiosidade sobre a misteriosa doença e a tensão sobre o que ela pode causar e quem pode afetar, mas são os desdobramentos que a presença do vírus traz a cada personagem que faz de “Boca a Boca” uma das produções brasileiras mais interessantes a aparecer na Netflix.

Esmir Filho (à direita) com o elenco e a equipe de produção no set

Grande parte dos elogios para a série é fruto do elenco primoroso, que mescla veteranos como Denise Fraga, Bianca Byington, Flávio Tolezani e o irreconhecível Bruno Garcia, com nomes frescos do cinema nacional, em especial Iza Moreira, Caio Horowicz, Thomas Aquino e Michel Joelsas, este em uma atuação impecável. No caso de Iza, que interpreta Fran, a série é sua estreia no audiovisual, assim como para Esther Tinman, a Manu. Ainda assim, o elenco jovem traz uma conexão bastante crível, além de nos levar a nutrir uma empatia especial por cada um, principalmente por Chico, personagem de Joelsas.

A cidade fictícia de Progresso também é um destaque. A casca progressista que garante ao lugar um status de “cidade modelo” logo exibe rachaduras, nas quais podemos enxergar todo o conservadorismo presente nos moradores da cidade. Da diretora controladora do colégio, que usa uma moderna bola de pilates enquanto vasculha as conversas privadas nos celulares de seus alunos, ao grupo de pais que fazem academia juntos enquanto decidem sobre as vidas de seus filhos, tudo em Progresso nos lembra os discursos reacionários que surgem fantasiados de “avanço”.

Tudo em Progresso nos lembra os discursos reacionários que surgem fantasiados de “avanço”

Enquanto o vírus se espalha, entre desafios no Instagram promovidos pelos mais céticos, vemos outros problemas evoluírem como um câncer: elitismo, homofobia, autoritarismo, preconceito, religiosidade, revenge porn, entre outros, que são sempre catalisadores para os questionamentos do trio de protagonistas – Fran, Chico e Alex – sobre regras, métodos e padrões sociais. A trama ainda brinca com uma seita misteriosa, fórmulas milagrosas e bestas resultantes de modificação genética, enquanto abre espaço para breves (porém intensos) romances e coloca a conexão familiar como a grande base para a resolução de problemas, em qualquer nível.

A série coloca a conexão familiar como grande base para a resolução de problemas

Em entrevista ao Metrópoles, o diretor Esmir Filho ressaltou que “Boca a Boca é sobre o vírus do conservadorismo”. Por isso mesmo a série não é a “Euphoria” brasileira, como algumas pessoas apontam. Embora as duas histórias retratem a geração Z e, portanto, tenham pontos em comum como a internet, a sexualidade e as experimentações adolescentes, a série da HBO lançada no ano passado traz um retrato muito mais problemático dessas questões, enquanto a produção brasileira faz o oposto ao colocar a repressão de desejos como o grande vilão a ser combatido. “Euphoria” nos traz questionamentos sobre a necessidade de limites. Já “Boca a Boca” nos faz crer que só a liberdade pode curar qualquer mal.

Espera-se que a série brasileira tenha uma boa audiência na Netflix, fator essencial para garantir uma segunda temporada, que é necessária justamente para desenvolver os pontos intencionalmente deixados em aberto ao final dos seis episódios dessa primeira temporada. Ainda assim, o principal recado de “Boca a Boca” já foi passado: toda repressão adoece.


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