De volta aos cinemas depois de quase quinze anos, família Pêra embarca em uma nova aventura que reitera os valores otimistas do primeiro filme e de seu diretor
por Pedro Strazza
3.jul.2018
Por mais que faça sentido dentro da lógica narrativa do original, é uma decisão um tanto inusitada e significativa que “Os Incríveis 2” comece sua história no momento seguinte ao fim do primeiro capítulo, contrariando o caminho comum de avançar no tempo e acompanhar seus protagonistas em outro momento de vida. Ao optar por mostrar os eventos que se sucederam depois dos últimos segundos do original, a continuação parece querer esclarecer do princípio que nada mudou na (agora) série desde sua última aparição no agora longínquo ano de 2004, um fundamento pelo visto tido como essencial pelos fãs do primeiro “Os Incríveis”.
É um raciocínio de auto-preservação que sem dúvida se alastra por todo o longa, mas se por um lado ele ocupa todas as funções esperadas ele não chega somente para tornar o longa um alento à nostalgia de um determinado grupo ou de reduzir a sequência a um rígido código de batidas emocionais a serem seguidos com fidelidade – um modelo de conduta assumido por tantos segundos capítulos feitos no mais puro piloto automático financeiro, como o próprio “Procurando Dory” da Pixar. De volta ao projeto que lançou sua carreira aos holofotes e lhe proporcionou uma passagem um tanto bem sucedida no ramo do live-action (pelo menos até um resultado amargo nas bilheterias com “Tomorrowland: Um Lugar Onde Nada É Impossível”), Brad Bird retorna ao cotidiano nada corriqueiro da família Pêra com toda a disposição para o fan service que lhe é cabido, é claro, mas também movido por um desejo de atualização visual e temático que em si é nada discreto. Seja na explosão de cores ou no maior número de assuntos tocados pela trama, o novo “Os Incríveis” é maior e mais ambicioso em sua proposta mesmo sua premissa estando preservada, concentrada nas particularidades de seu principal núcleo familiar.
A história do segundo episódio, afinal, segue mais ou menos os meandros de seu antecessor, incluindo aí algumas de suas viradas. Depois de um encontro bastante destrutivo com o vilão Escavador, a família de Roberto (Craig T. Nelson) e Helena (Holly Hunter) se vê desprotegida pelo programa de assistência do governo e ancorada agora por um executivo (Bob Odenkirk) que deseja mais do que tudo a legalização dos super-heróis – uma vontade que logo se revela um plano de manipulação midiática estrelado pelo alter ego heroístico da matriarca dos Pêra, a Garota-Elástica. Enquanto o marido fica em casa cuidando dos filhos – incluindo aí o bebê Zezé, que está descobrindo os seus múltiplos poderes – Helena entra de cabeça na tarefa de reerguer sua profissão perante o olhar público, enfrentando a resistência de um novo e perigoso antagonista chamado O Hipnotizador.
Embora grande parte das atenções vá recair nos esforços pífios de Roberto para conciliar a vida doméstica de cuidados com os três filhos – que inclui ainda um Flecha (Huck Milner) com dificuldades nos estudos e uma Violeta (Sarah Vowell) sofrendo com as ansiedades típicas da adolescência – é na campanha para descriminalizar os heróis e nos perigos da manipulação que Bird no fundo está mais interessado. Esta adição busca torcer a bússola moral do original sob um novo ângulo, levando a ideia da franquia de conciliação entre uma visão clássica da figura do super-herói e as estruturas tradicionais da animação familiar para dentro de um jogo político de pouquíssima inocência. Ainda que limitado em escopo pelos próprios ideais genuínos da produção, o novo filme mostra-se constantemente disposto a aludir a um cenário desencantado e sedento por um retorno de bons valores, desde as piadas mais inocentes sobre a classe política ao arco reacionário ocupado por seu vilão – um que para o desgosto de muitos não deve alcançar o mesmo nível de sofisticação subtextual do nêmesis anterior, o fanboy frustrado e movido por vingança do Síndrome.
A sequência mostra-se constantemente disposta a aludir a um cenário desencantado e sedento pelo retorno de bons valores
Este confronto temático, entretanto, não chega a ser tão curioso quanto as intenções de seu diretor bem pretendem. Se Bird arma este conflito entre ingenuidade e “perversidade” do roteiro de forma a promover na continuação um sentimento de renascimento da esperança e atender com seu olhar sempre otimista de relações, esta necessidade de contrapor os valores positivos e institucionalizados da família de protagonistas contra uma rigidez cética do mundo acaba servindo apenas de reiteração à proposta do original, que partia justo desta ambição de celebrar o extraordinário dentro de um cotidiano pautado pelo mundano. De novo mesmo nesta abordagem só há a questão do contexto dentro do gênero, com o clima de otimismo de “Os Incríveis” buscando servir como uma espécie de antigo bálsamo de pura positividade para a verdadeira linha de produção que são os filmes de super-herói em Hollywood hoje.
Em qualquer outro cenário este conjunto de características sem dúvida resultaria num longa problemático, mas como em outros trabalhos de Bird as decisões por trás da construção da narrativa acabam sustentando seu conteúdo com algum gosto, e no caso de “Os Incríveis 2” o segredo está na maior desinibição perante o próprio gênero. Diferente do original – que no fundo tinha no mote “heróis escondidos no cotidiano” sua razão de existência visual inicial a ser destrinchada – a continuação possui do começo um desejo muito explícito de seguir por um tom mais cartunesco, abraçando de vez sua propensão ao carnavalesco para construir os personagens (alguns heróis apresentados efetivamente lembram brinquedos nos rostos caricatos e incluem até um com cabeça de coruja) ou as cenas de ação, que trocam a superforça de Roberto pela elasticidade de Helena. O resultado é o de praxe na carreira do diretor: um ritmo constante, capaz de se alternar entre a comédia e a aventura com uma fluidez bastante invejável mesmo para os padrões atuais.
As decisões narrativas de Brad Bird sustentam o conteúdo, e no caso de “Os Incríveis 2” o segredo é a maior desinibição com o gênero
Neste sentido, o grande vencedor deste verdadeiro esforço de malabarismo realizado pela sequência é a comédia da vida privada, que ganha o centro das atenções na inversão de papéis entre Roberto e Helena – outra destas tentativas de mudança estrutural que não agrega nenhum peso distinto à continuação, já que a esposa também precisava salvar o marido no primeiro capítulo. Se a Garota-Elástica ocupa com elegância o centro das atenções da ação remodelada pela direção, o reposicionamento do patriarca na tarefa de manter a família em ordem geram momentos de humor que são igualmente prazerosos de assistir, seja com o pai se esforçando para ajudar os filhos no dever de casa, com o namorado ou no simples ato de lidar com a descoberta de poderes recém-adquiridos.
É também das situações envolvendo Roberto que “Os Incríveis 2” enfim reencontra o seu verdadeiro norte. Por mais que Bird esteja afim de proporcionar novos horizontes à série pelo alinhamento com temáticas contemporâneas e muito promissoras de discussão, é no valor familiar intrínseco à animação onde mora o coração da franquia, um centro nervoso que no fim o longa, querendo ou não, está fadado a cumprir com.
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