Da zona leste paulistana, ele mistura break com contemporâneo e conta um pouco das alegrias e tristezas de ser dançarino
Redação PdH
publicado em 27 de Janeiro de 2020
Você já ouviu essa frase? "Dança não é coisa para homem"
E você já fez essa pergunta? "Você só dança? Não trabalha?"
Trabalhar com dança e viver disso não é uma trajetória fácil, e tem alguns outros estigmas envolvido nisso se você for homem. No homens possíveis de hoje a gente vai contar a história do Guilherme Nobre: aos 28 anos ele trabalha como dançarino, vive disso, e acaba de voltar de uma turnê de dois meses pela Europa e EUA.
Ele se apresentou como parte do Grupo de Rua e foi notícia no New York Times mas ressalta que para ele a turnê no estrangeiro não é mais importantes do que a apresentações que faz pelo Brasil: “Eu estava lá fazendo um trabalho, mas o que eu fiz lá é o mesmo que eu faço em outros trabalhos aqui. É claro que tem um valor de ser reconhecido por outros países, mas tem essa síndrome de admirar o importado... A galera dá valor de quando te vê no New York Times! Mas não é como se eu visse que o jornal de uma cidade do interior que noticiou uma apresentação foi coisa pouca ou menos importante.”
Foto com Clarissa Lambert do espetáculo "Singularidades"
Morador do Jardim Danfer, zona leste de São Paulo, Guilherme começou a dançar aos 13 por influência de um amigo de um amigo. “Mas era bem brincadeira de menino”.
Não frequentava escolas de danças. Aprendia passos e break com outros garotos que sabiam um pouco mais e que se juntavam para praticar. Foi assim até os 15, 16 anos.
Depois de terminar o ensino médio, Guilherme conta que começou a trabalhar no centro de São Paulo numa central de cartórios. Ele fazia serviços de office boy, auxiliar de escritório, atendimento e, no tempo que sobrava (o que não era muito), trabalhava como bolsista numa escola de dança.
Nesta escola ele era responsável por ajudar os professores, completando os pares das alunas de dança de salão. Em troca, ele poderia estudar outras modalidades e ai foi descobrindo o interesse por entender as técnicas da dança com mais profundidade.
“Acontece que no fim, sobrava pouca energia para fazer as coisas que eu queria. Eu não tinha tempo nem ânimo. Foi uma época "pra baixo", mas foi bom porque foi justamente este desânimo que me motivou a abandonar as coisas que não me faziam bem.”
Foto por Kelson Barros do espetáculo "O que se rouba"
Transformar a dança numa profissão não era um projeto de vida para ele.
“Eu não era de pensar muito a frente... Eu não sabia o que eu queria fazer. Eu não via sentido em fazer uma faculdade. As faculdades de dança que tinham na época eram pagas e não tinha muito isso de bolsa.”
Pensando um dia de cada vez, ele resolveu que queria sair do emprego para investir tempo e energia na dança.
“Minha mãe achou péssimo eu largar um emprego em que eu poderia crescer lá dentro para dançar”. Ele conta que os pais não impediram, mas que tampouco apoiavam a ideia.
“Se fosse alguém que trabalhasse com isso e me falasse das dificuldades de trabalhar com dança eu até entendo. Mas o que eu acho engraçado é: o que meu pai e minha mãe sabem de dança pra falar que vai dar errado? A única que me deu um incentivo - até sem perceber, porque ela acha que não fez nada - foi minha irmã.”
Foi a irmã que mostrou para ele a possibilidade de fazer um curso técnico de dança na ETEC. “Ai eu saí desse emprego com uns 21 anos, consegui pegar fundo de garantia e fiquei com uma reserva. As contas de casa estavam sendo pagas pelos meus pais e eu estava com uma grana guardada para não dar despesas pra eles. Financeiramente, eu estava numa posição privilegiada (a gente é dessa classe média baixa para pobre, mas a casa é própria) em que eu tinha a possibilidade de investir um tempo sem ganhar dinheiro. Então eu resolvi aproveitar disso. para ficar um tempo sem trabalhar. Prestei o vestibulinho e aí as coisas foram acontecendo.
Eu estava me preparando para a prova quando eu conheci um cara que me falou do Núcleo Luz que era um projeto social de dança que dava um auxílio para quem passasse: tinha o vale transporte e uma refeição.”
Foto do espetáculo "O que se rouba"
Guilherme conta que se preocupava com as inseguranças financeiras de trabalhar com dança, mas que não tinha a perder tentando:
“Lá no trabalho do escritório eu conheci gente que entrou com 14 anos e que estava se aposentando, sabe? Tinham pessoas que estavam ali super felizes e radiantes e tinham pessoas que estavam ali simplesmente porque tinham que pagar as contas em casa, gente que abriu mão dos próprios sonhos para ser o provedor (o que é uma coisa extremamente triste).
Eu olhei aquela situação e pensei, se eu largar essas paradas que eu tenho hoje pra investir na dança, lá na frente, se der errado, eu vou voltar para um trabalho que eu não quero... Então o que eu tenho para perder? Se desse errado na dança eu não ia me arrepender porque eu ‘perdi tantos anos da minha vida tentando’, até porque a outra opção era perder todos os anos da minha vida num trabalho que eu não gosto."
Guilherme foi aprovado e começou o curso da ETEC, também entrou para o Projeto Núcleo Luz.
"As coisas foram acontecendo e daí pra frente foi um pouco que questão de tempo pra eu enxergar possibilidades profissionais e meus pais irem vendo que eu tinha espaço, que eu tinha como ganhar dinheiro.”
Depois destes processo de formação, em 2014 ele entrou para o Grupo Zumb.boys, (dirigido por Márcio Greyk), onde perfomou e participou da criação de trabalhos como "Dança por Correio", "Ladrão", "O que se Rouba" e "Mané Boneco". Em 2017 participou do Festival Internacional de Londrina (FILO) como dançarino convidado do GRUA – Gentlemen de Rua. Em 2018 também fez parte do Núcleo de Pesquisas Mercearia de Ideias, com direção de Luiz Fernando Bongiovanni, onde participou do processo de criação e circulação do espetáculo "Singularidades". Em 2019 circulou pela Europa e EUA com o espetáculo "Inoah", compondo o elenco do Grupo de Rua de Niterói que é dirigido por Bruno Beltrão.
(Para não ficar só no texto, vem dar uma olhada nele dançando.)
“Boa parte das alegrias que eu tenho tem a ver com os trabalhos que eu faço.” Mas ele também comenta sobre a falta de valorização da arte dificulta trabalhar com isso no Brasil.
“Primeiro que a arte é uma coisa vista como inútil para grande maioria. A galera as vezes só entende a parte da profissão que é voltada para entretenimento: música, cinema, coisas para se distrair. Quantas pessoas gastam 100 reais num openbar mas não pagam para ver uma peça de teatro, ou nem saem de casa mesmo quando a peça é de graça?
Não tem uma atribuição de valor para essas atividades, não tem uma questão de entender as importâncias que a arte tem pra construir um ser crítico, reflexivo, para enxergar o mundo de outra forma. Mas isso também é algo que se educa. A outra grande dificuldade de trabalhar com arte é que a gente não tem esse olhar para arte desde novo na escola. E se não tem na escola, dificilmente você vai ter em casa, a não ser que seja uma família que dê valor para isso.
E ai que eu acho que é foda quando a galera pergunta sobre a utilidade da arte. Eu acho que é uma parada muito louca porque ela não tem que ter utilidade nenhuma, arte vai contra todas essas utilidades que a gente inventou (de criar uma necessidade e de vender um serviço porque ele vai ter alguma serventia). A arte profana esse tipo de pensamento.
Com a dança eu consigo por botar pra fora coisas que eu não aprendi a botar pra fora de outras formas. As alegrias também são as pessoas que eu conheci através da arte. Mudou meu ciclo de amizades, minha forma de pensar, minha forma de me relacionar com as pessoas, são coisas que eu acho que a gente só aprende com a arte, porque te atravessa de uma forma que a maneira que se relaciona sem a arte não dá conta.
Foto por Clarissa Lambert - Espetáculo "Singularidades"
Hoje Guilherme mistura o break com o contemporâneo, mas ele começou na dança de rua. Ele conta que nessa modalidade a maioria são homens, o que evita alguns questionamentos em relação à masculinidade. Ao contrário, ele conta que ainda percebe muito machismo e nesse nicho, mas que as suas vivências com a arte lhe deram uma visão mais crítica e outros pontos de vista.
"Hoje em dia eu fico pensando muito nessa questão de “o que é ser homem?". Porque hoje em dia não é nem mais uma questão fisiológica, de genital, é sobre como a gente se relaciona com o mundo. É a pessoa que vai decidir o que ela é ou não, ou como ela vive essa masculinidade. Vários amigos ainda fazem comentário do tipo “fulano não é homem de verdade”. Que tipo de discurso e de comentário é esse? É muito doido isso...
O que é ser homem? Eu não tenho ideia. São coisas que eu penso que hoje em dia nem importam mais pra mim. A pessoa se apresenta como ela é e acabou."
Guilherme quer ser pai daqui alguns anos e quer que o filho possa ser homem ou mulher da maneira como bem entender, sem precisar se adequar aos padrões de gênero ou de sexualidade. Mas... E se ele quiser ser dançarino?
“Eu preferia que não. Eu não vou proibir, eu quero que meu filho seja feliz. Mas acho que ele seria mais feliz mesmo se ele gostasse de verdade de fazer algo que também desse dinheiro.”
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