Menos de 30% dos cientistas do mundo são do sexo feminino. Enquanto discriminação e falta de perspectiva leva brasileiras a buscar reconhecimento no exterior, iniciativas vêm tentando incentivar pesquisadoras no Brasil.
08.03.2020
Edison Veiga
Laís Maia: "Durante a graduação, eu tinha mais colegas do sexo feminino em classe, mas a maioria dos professores eram homens"
"Nos trabalhos de campo, homens – não meus pares – boicotaram minhas atividades, me colocando em perigo físico até. Já fui desrespeitada e humilhada por fiscais federais e assediada por soldados do Exército. E sabe quando o assédio não acontecia? Quando tinha um homem para 'me proteger'. É difícil fazer trabalho à noite no mato, de boa, sendo mulher", conta a brasileira Renata Moretti, hoje pesquisadora na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. "Já tive de inventar algumas vezes que estava com marido ou namorado no campo, ou inventar e falar alto um nome de homem."
Moretti, que é herpetóloga (zoóloga que estuda répteis e anfíbios), diz que foi somente no exterior que passou a se sentir respeitada como cientista mulher. "Eu achava isso normal. Aqui em Harvard a ficha caiu", afirma. "E me assustei quando vi o quanto no Brasil eu era desacreditada. Aqui não precisei ver outras mulheres para me espelhar. Eu passei a ser uma pessoa como todo mundo."
Moretti, que é herpetóloga (zoóloga que estuda répteis e anfíbios), diz que foi somente no exterior que passou a se sentir respeitada como cientista mulher. "Eu achava isso normal. Aqui em Harvard a ficha caiu", afirma. "E me assustei quando vi o quanto no Brasil eu era desacreditada. Aqui não precisei ver outras mulheres para me espelhar. Eu passei a ser uma pessoa como todo mundo."
Dados mostram que o desequilíbrio de gênero na ciência de ponta é um problema mundial. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), apenas 28,8% dos pesquisadores acadêmicos do mundo são mulheres. Entre os 919 laureados com um Prêmio Nobel ao longo da história, a discrepância é ainda maior: são somente 54 mulheres reconhecidas.
Para a bióloga e ecóloga brasileira Laís Maia, pesquisadora na Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia, a própria "literatura científica mostra que existe muita discriminação de gênero dentro do mundo acadêmico".
"Isso fica visível ao longo da progressão da carreira. Durante a graduação, eu tinha mais colegas do sexo feminino em classe, mas a maioria dos nossos professores eram homens", exemplifica ela, que fez o curso superior na Universidade Federal de Lavras, em Minas Gerais. "Eu ficava sem entender como um curso com tantas estudantes do sexo feminino tinha tão poucas professoras mulheres."
"Com o tempo, fui percebendo que existem diversas pressões que levam a uma menor presença de cientistas mulheres, não apenas no Brasil, mas ao redor do mundo. Discriminação e preconceito com a gravidez é uma delas", comenta. "Nunca me esqueço da história de uma colega de graduação que estava grávida e foi discriminada por um professor dizendo que aquela situação, a gravidez, não 'combinava' com o espaço acadêmico."
Um estudo publicado pela revista Nature em outubro de 2016 mostrou como, na prática, a discriminação de gênero ocorre. Os pesquisadores analisaram 1.224 cartas de referência, de 54 países diferentes, utilizadas por pesquisadores em processos seletivos no meio acadêmico. Na comparação, concluiu-se que as direcionadas a mulheres traziam informações menos assertivas do que aquelas para homens. Enquanto um cientista costumava ser apresentado como "um bom profissional", uma cientista, na maior parte das vezes, era classificada como "ela tem potencial para ser uma boa profissional".
"Também há a diferença de salários", aponta Maia. "Um estudo recente [publicado em janeiro pelo periódico Plos One] mostrou que, ao longo da vida, uma cientista mulher na Nova Zelândia recebe 400 mil dólares neozelandeses a menos do que seus colegas do sexo masculino [o equivalente a quase de 1,2 milhão de reais]."
Iniciativas valorizam mulheres na ciência
Nos últimos anos, algumas ações têm sido feitas para dar visibilidade a mulheres cientistas – e, no longo prazo, tentar reduzir essas discrepâncias. Um exemplo é o Prêmio Para Mulheres na Ciência, realizado pela Unesco em parceria com a marca de cosméticos L'Oréal e que, desde 1998, distribui bolsas de 100 mil dólares para jovens pesquisadoras.
A primeira brasileira que recebeu o prêmio serve de inspiração para muitas cientistas mais novas: a geneticista Mayana Zatz, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), laureada em 2001. "Foi um marco importante em minha vida. E me deu a oportunidade de ter mais exposição na mídia e de falar sobre ciência", afirma ela.
Outra iniciativa de destaque é Instituto Meninas na Ciência, projeto de extensão ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e que desde 2013 realiza oficinas, palestras e campanhas para reduzir a discriminação de gênero na área científica e incentivar que adolescentes do sexo feminino, se tiverem vontade, busquem ingressar em cursos superiores de ciência e tecnologia. Uma pesquisa realizada pelo grupo e publicada em 2018 constatou que, dentre os membros da Academia Brasileira de Ciências (ABC), entidade independente que existe desde 1916, apenas 100 dos 718 titulares são do sexo feminino.
A plataforma de divulgação científica Agência Bori, que foi inaugurada este ano, já nasceu com cromossomos femininos. O nome da agência, funfada por duas cientistas mulheres – a biomédica Ana Paula Morales e a jornalista e doutora em política científica e tecnológica Sabine Righetthi –, é uma homenagem a uma cientista mulher.
"Desde o início, a gente queria o nome de uma cientista mulher. Temos muitas homenagens a cientistas homens, como as plataforma Lattes [homenagem a César Lattes] e Carlos Chagas, do CNPq, mas quase não nos lembramos das mulheres", comenta Righetthi. "A ideia era que achássemos uma cientista mulher com papel importante na ciência, na institucionalização da ciência – e, se possível, com um nome sonoro e curto para facilitar a memorização. Quando chegamos em Carolina Bori não tivemos dúvida. Ela preenchia todos os requisitos."
Carolina Martuscelli Bori (1924-2004) foi uma psicóloga brasileira, primeira mulher a presidir a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). De acordo com avaliação da Agência Bori, "ela é considerada uma cientista-chave para a consolidação da ciência brasileira, especialmente nas décadas de 1960 a 1980".
Além de iniciativas assim, a mídia também pode ajudar a dar visibilidade para mulheres que atuam na ciência. Foi o que aconteceu com a bióloga molecular Mayana Zatz, sobretudo no auge das descobertas do Projeto Genoma Humano. E tem sido assim nos últimos dias, com a médica imunologista Ester Cerdeira Sabino, pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) comandando os esforços de sequenciamento genético do novo coronavírus no Brasil.
"Apesar de todas as dificuldades, conseguimos fazer ciência de ponta. Precisamos agora sensibilizar o governo sobre a importância de se investir em ciência e tecnologia. E dar incentivo para a iniciativa privada investir também", diz Zatz.
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