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quarta-feira, 11 de março de 2020

“Troco em Dobro” é uma história de vigilantismo que revira códigos morais masculinos



Nova parceria de Mark Wahlberg com o diretor Peter Berg, filme policial de Boston mantém a atenção na reavaliação de modelos de conduta

por Pedro Strazza
6.mar.2020

Se percebe que os tempos são de masculinidade tóxica e de desconstrução de ideais relacionados no cinema não porque a produção prestigiada de Hollywood circula de um jeito ou de outro pelo tema, mas quando até mesmo os segmentos de nicho da indústria atravessam o tópico. Prova deste “lado” da tendência é “Troco em Dobro”, cujo prólogo introduz a questão a partir de um flashback de enfoque inesperado ao gênero. Ao mostrar como o protagonista Spenser (Mark Wahlberg) foi preso por espancar seu superior (Michael Gaston) na polícia, o filme também destaca um primeiro motivo para a agressão: a esposa do chefe (Colleen Camp) desfigurada, violada fisicamente a partir de maus tratos do consorte.

Disposta desta maneira e reforçada sem muita sutileza por um “ele mereceu” dito com gosto por Wahlberg, esta informação tão forte sem dúvida remodela toda a disposição do filme, que a princípio surge como mais um capítulo da parceria do ator com o diretor Peter Berg em torno de histórias de justiçamento – é o quinto projeto consecutivo da dupla desde 2013, quando trabalharam juntos em “O Grande Herói”. É claro que continuam presentes as noções de vigilantismo e justiça com as próprias mãos dos outros frutos da parceria (que inclui ainda “Horizonte Profundo”, “O Dia do Atentado” e “22 Milhas”), mas se o longa circula estes temas e a própria premissa de uma maneira diferente é por conta desta primeira revelação, que acrescenta aos códigos morais um viés de modelo de conduta imperfeito e longe do ideal de heroísmo tradicional.

Ajuda neste propósito recém-adquirido que ao contrário de seus antecessores “Troco em Dobro” também trabalhe com um gênero de pólos menos definidos, das histórias policiais típicas da região de Boston onde a lei e o crime se confundem habitualmente. Spenser não chega a ser corrupto, mas seu comportamento violento o leva a uma posição oposta a de seus companheiros na polícia, os quais passam a hostilizá-lo depois de cumprir a pena pela agressão contra o chefe a ponto de intimá-lo a deixar a cidade – numa cena, aliás, que gera uma participação um tanto inesperada do rapper Post Malone. Disposto a atender o pedido, o ex-oficial acaba por adiar os planos quando um antigo colega é assassinado e responsabilizado por um crime que não cometeu, o que o leva a conduzir uma investigação própria em parceria do amigo Henry (Alan Arkin) e o recente colega de quarto Hawk (Winston Duke).

Embora o mistério sirva de guia para todos os eventos registrados, o que mais desperta interesse na narrativa é a forma como os ideais em teoria absolutos do protagonista chocam constantemente com aqueles ao seu redor. É neste ponto que o tema da “nova masculinidade” brota nos entornos de um filme para lá de procedural pois, além do velho clichê de justiça em respeito à viúva do inocente falecido e da resolução com a ex-namorada (Iliza Shlesinger, sem muito a fazer além de criar humor em momentos mais sérios), é o relacionamento com Hawk que Berg usa para tornar evidente as falhas do comportamento de Spenser. É a “broderagem educativa”, disfarçada aqui de reintrodução à sociedade graças ao histórico na cadeia do personagem e feita enquanto o ex-policial ensina o companheiro a lutar no ringue – Hawk quer ser um lutador esportivo, afinal, e Henry mantém uma academia de luta onde Spenser passa a trabalhar.

O filme acrescenta aos códigos morais um viés de modelo de conduta imperfeito e longe do ideal de heroísmo tradicional

Seria um procedimento um tanto banal se estes gestos subjetivos permanecessem atrelados à figura do protagonista, mas como produto orgulhoso de um subgênero definido esta relação de aprendizado acaba valendo também para o próprio público-alvo enquadrado pela produção. Se o grande desafio do machão de hoje é se reeducar ao progresso dos tempos sem perder a pose “máscula”, “Troco em Dobro” termina por ser ideal a este perfil de espectador por oferecer uma solução que não comprometa as partes essenciais deste: Wahlberg apanha seguidas vezes de diversos grupos e nem sempre seus planos acontecem como planejado, mas os momentos pessoais de superação de seu personagem estão atrelados a uma postura que o permite conseguir justiça sem se render aos instintos destrutivos – e há um quê de Boston nesta mistura, dado que, além do clímax, a situação onde ele tenta convencer o vilão a “jogar limpo” e se entregar passa por negociações muito particulares da região.

Todo este discurso positivo não torna “Troco em Dobro” em um bom filme, porém, até porque mais do que nunca todos os “melhores momentos” da produção parecem ser colaterais dentro da narrativa de Berg. Talvez pelo caráter episódico do projeto (que como o epílogo indica uma busca pela serialização a todo custo), o déficit de atenção da mão do diretor chega ao limite aqui, alimentada ainda pela duração extensa que se tornou padrão nestas produções nichadas da Netflix: cenas se acumulam de forma desordenada na montagem, personagens vão e voltam sem qualquer motivo aparente e o longa a partir destes dois fatores desanda a partir da metade, quando precisa reenquadrar o crime como motivação principal da história – coitado de Marc Maron, seu personagem é arremessado para dentro dos acontecimentos apenas para criar o contexto a esta ré manual do roteiro. 

Berg usa o relacionamento com Hawk para tornar evidente as falhas do comportamento de Spenser

Mesmo a ação sofre com este caos de montagem, pois ainda que o longa explicitamente recorra a atos físicos cada vez maiores para denotar a curva dos eventos, sua brutalidade é a única característica além do humor que se mantém como condutor de um plano a outro. Nesta hora, nada sintetiza melhor a pane que a sequência onde Spenser persegue um carro logo depois de uma ida estratégica ao banheiro, uma cena cujo clímax termina com ele atacado por um cachorro de uma casa qualquer – ela ou talvez aquela na qual ele enfrenta um grupo de colegas, outro momento que por coincidência também acontece num banheiro público.

“Troco em Dobro” não deixa de ser outra história de vigilantismo de Berg e Wahlberg, afinal, cuja inspiração é atribuída a um desencanto com o sistema e a procura de uma permanência de valores. Mas enquanto esta lógica continua em processo de decadência e rumo à paródia, a recorrência da reunião da dupla ao longo dos últimos anos e os diferentes gêneros escolhidos permitem aos filmes que escapem das morais rígidas de seus realizadores e trafeguem por temáticas paralelas, capazes de oxigenar nem que por alguns segundos a estrutura concebida. E mesmo que estes temas no fim incorram em uma reconfiguração de ideais banal aos olhos dos espectadores mais experientes, existe aí uma negociação de valores que não deixa de possuir, em si, algum valor.

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