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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Cozinheiras falam sobre o machismo na profissão

Por Débora Lopes
Repórter
dezembro 13, 2016

Foi com uma simples frase que um participante do MasterChef Profissionais, programa da TV aberta que mostra a competição entre cozinheiros e cuja final acontece na noite desta terça (13), riscou o fósforo e acendeu o debate sobre machismo na cozinha durante uma prova em grupo. "Então, pega uma vassoura e varre o chão", proferiu Ivo Lopes para sua colega Dayse Paparoto, aparentemente insatisfeita com a distribuição das tarefas em equipe. Antes, com as mãos livres e disposta a ajudar, a cozinheira havia reclamado: "Você quer fazer o legume, o tomate, tudo".

Em vários momentos, a edição do programa mostrou algo que pareceu muito claro: homens querendo competir com homens. Para isso, o trabalho de Dayse, que está na final com um deles, foi constantemente desmerecido. "Trabalhar com mulher na cozinha é um pouco mais delicado. Vamos ser realistas. Ela acaba sendo um pouco mais 'frágil'", justificou o experiente Ivo, que traz no currículo 25 anos de cozinha e passagens por restaurantes renomados. Fora do programa, ambos trabalharam juntos no italiano Due Cuochi, em São Paulo, no qual Ivo era o chef.

Compartilhado mais de 100 mil vezes no Facebook, um vídeo editado do programa viralizou nas redes. Finalista ao lado de Dayse, o participante Marcelo Verde também profere críticas agressivas e aparentemente desnecessárias à colega. Soam como ódio. A maior parte dos usuários que compartilhou o vídeo apontou uníssona: machismo. E, então, outro tópico emergiu das águas trevosas pela qual navega a televisão nacional, nosso freak show particular: o que acontece entre pratos e panelas pelas cozinhas do Brasil?

Do MasterChef, a cozinheira Bianca Bertolaccini, não tem lembranças tão positivas. Com uma taça de chá de hibisco na mão e o cigarro na outra, conta, na varanda de seu apartamento em São Paulo, que o programa serviu como um pontapé para a profissão, mas que não o assiste. Produtora e atriz de teatro, ela participou da primeira edição, que era voltada para cozinheiros amadores. Ainda nas classificatórias, foi chamada de arrogante por Paola Carosella e trocou farpas com Henrique Fogaça, ambos chefs premiados e jurados da atração. Chorou em frente às câmeras e, apesar de ganhar o dólmã e entrar na competição, não sobreviveu muito tempo. No dia seguinte à eliminação, recebeu um telefonema da chef Bel Coelho. Foi aí que sua vida como cozinheira começou.

"O mundo é machista. Não é só a cozinha", pontua Bianca, entre uma tragada e uma espiada na focaccia que está repousando na forma antes de ir para o forno. "A cozinha tem uma herança francesa que, além de ser machista, é rude, hostil. Na verdade, não é um lugar para fracos." Para ilustrar a rotina, ela cita algumas atividades braçais, como picar 30 quilos de batata e filetar 30 quilos de peixe. "Gente fraca não aguenta o tranco. É muito foda. É muito punk, muito puxado. Você passa muito tempo em pé, tem de ter braço pra aguentar." Para Bianca, é aí, provavelmente, que mora o estigma do machismo, da mulher ser "frágil", como sugeriu o participante do MasterChef Profissionais.

Para afastar a ideia de fragilidade, a mulherada se vê trabalhando com muito afinco. "Você tem de dobrar os caras. Tem de provar que consegue carregar um saco de 30 kg e estar na mesma excelência e disposição das 7h às 21h. Pronta pra tudo e super atenta."

A profissional diz também que constantemente ouve de bocas masculinas que "mulher não aguenta". O que, culturalmente, é irônico — já que "falam que lugar de mulher é na cozinha."

Com as pontas dos dedos, Bianca salpica alecrim colhido de sua horta na focaccia que está preparando. O cheiro é de inspirar o estômago de qualquer repórter. "Existem pratos que pedem delicadeza, leveza. Mas não tem gênero. É um estado de espírito", fala. "É entender que aquele prato precisa de mais atenção. Pra fazer uma telha de caramelo, tem de ter paciência. Não é ser homem ou mulher."

Em 2014, a conceituada chef brasileira Helena Rizzo ganhou o prêmio internacional de "Melhor Chef Mulher" pelo ranking que elege os 50 melhores restaurantes do mundo, promovido pela revista inglesa The Restaurant. A divisão entre "melhor chef" e "melhor chef mulher" ainda é polêmica. A reportagem entrou em contato com a assessoria de Helena pra que ela comentasse o prêmio, mas a chef não quis se pronunciar.

Na cozinha em que trabalha, Bianca e outras funcionárias fizeram com que os homens no recinto não cantassem "aquela música lá, de levar madeirada". Ela se refere à letra de "Malandramente". "Não deixamos. Foi vetada. Não é legal."

Relações de abuso de poder e assédio são intensificadas na cozinha, um ambiente onde tudo é pra ontem e o cliente está posto à mesa, com fome e cheio de expectativas. "Todo mundo grita muito. É muito tenso", conta Bianca, desmistificando toda a aura angelical que imaginamos por trás dos pratos que chegam até nós.

O diploma em geografia ficou guardado na gaveta para que o avental entrasse em cena na vida de Marina Santos, 30, chef de cozinha do restaurante Chá Yê, em São Paulo. Em suas elaborações culinárias de rotina e pesquisa, é a comida brasileira quem fala mais alto. Farinha de milho ou de mandioca, feijão e abóbora são ingredientes indispensáveis.

Por ser uma mulher magra e de porte pequeno, ela relata as inúmeras "sugestões" masculinas que recebeu para se dedicar à confeitaria. "Mas sempre me interessei pela cozinha quente, no fogão, soltando os pratos principais, as entradas", diz. Para Marina, essa foi a primeira percepção machista que teve da área que encara profissionalmente há seis anos.

Durante a formação gastronômica, notou também que os louros foram sempre colhidos pelos homens. "Na história da evolução da cozinha, é impossível citar uma mulher há, pelo menos, um século", pondera. "Acho que isso de estarmos trabalhando na cozinha já é um crescimento. Hoje, posso citar várias chefs que me inspiram. A mulher conseguiu se inserir num trabalho cujo ambiente era antes extremamente masculino e machista."

Humilhação pode ser um sentimento constante na vida dos profissionais que se dedicam a preparar o alimento dos outros. Alguns chefs, afirma Marina, acreditam que gritar com seus funcionários ou humilhá-los fará com que se tornem profissionais melhores.

Depois de fechar seu La Brasserrie, em 2013, Erick Jacquin, chef francês radicado no Brasil, passou a compor a tríade de jurados do MasterChef. Reportagens da época sugeriam que seu temperamento na cozinha lhe rendeu R$ 1,5 milhão de reais entre dívidas e ações trabalhistas. Em entrevista, ele não nega que, durante ataques de fúria, arremessou pratos contra funcionários.

"Imagina uma mulher num ambiente assim?", questiona Marina.

Proprietária da Manje Culinária, empresa de catering e personal chef, a cozinheira Cintia Sanchez, 35, também participou da primeira edição do MasterChef Brasil, mas desistiu antes da possibilidade de ser selecionada. Na época, a rotina de seleção para o programa estava atrapalhando os cuidados com o filho pequeno. O que não a impossibilitou de pedir um estágio no Arturito, restaurante comandado por Paola Carosella. Jornalista por formação e com anos de experiência na área, ela conseguiu o estágio e, depois, realizou alguns trabalhos como freelancer para o Dalva e Dito, de Alex Atala. Foi o plot twist para mudar de profissão.

Cintia se considera "uma mulher atípica", por isso, acredita enfrentar menos preconceitos no ambiente de trabalho. "Eu era jogadora e sempre fui muito masculina. Não me incomodo. Vou lá e pego um saco de 50 kg de cebola. Mas uma amiga minha, que era uma pessoa pequena, sempre ouvia piadinhas."

A confeitaria também lhe foi "sugerida". Com uma resposta simbólica, Cintia rejeitou: "Gosto de ficar na linha de frente".

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