“Se antes da Maria da Penha eu tinha cerca de 80 processos em cima da minha mesa, agora já cheguei a fechar o ano com 4 mil ações”
Por Rafaela Lara
21 dez 2016
Em um ano marcado por muitos casos de violência contra a mulher, a promotora de Justiça Gabriela Manssur, que coordena o Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica, do Ministério Público do Estado de São Paulo, afirmou a VEJA que o ativismo nas redes sociais fez diferença em 2016 ao denunciar as agressões e escancarar os atos dos agressores. A promotora analisa ainda que o empoderamento feminino e o fácil acesso à Justiça foram essenciais para que crimes como o estupro coletivo de uma menor de idade em uma favela no Rio à agressão da modelo Luiza Brunet viessem à tona e ganhassem enorme repercussão.
Por que as agressões contra as mulheres foram tão noticiadas neste ano? Os 10 anos da Lei Maria da Penha deram notoriedade aos casos de violência, mas acredito também que as mulheres estão muito mais conscientes de seus direitos por meio de campanhas e pelo ativismo na internet com os coletivos feministas nas redes sociais. A sociedade está se importando mais com esses casos justamente porque estamos falando sobre eles e combatendo-os diariamente.
O número de denúncias aumentou neste ano ou os crimes passaram a chocar mais a sociedade? O número de denúncias aumenta desde que a Lei Maria da Penha deu visibilidade aos crimes contra a mulher. Hoje em dia, elas denunciam seus parceiros cada vez mais jovens. Recebo mulheres que percebem desde cedo que estão em um relacionamento abusivo. Antigamente, demoravam muito para buscar a Justiça, acreditavam que o parceiro iria mudar. Atualmente, isso está escancarado, chegou ao conhecimento de todos o quanto as vítimas sofrem e, consequentemente, isso está nos chocando. O caso horrível do estupro coletivo no Rio atingiu a todos porque foi compartilhado nas redes sociais. Ainda assim, essa menina sofreu um julgamento social, muitas pessoas questionaram e julgaram seu comportamento, e isso só mostra que ainda temos muito a avançar nesse tema.
O empoderamento da mulher, pregado pelo feminismo, é um fator que contribuiu para a vítima denunciar seu agressor? Sim, está diretamente ligado. O empoderamento nada mais é do que saber dos seus direitos e ter o poder para torná-los válidos. O feminismo é a união das mulheres e é um conceito do qual não abro mão hoje em dia. O feminismo é contra o machismo e não contra os homens.
Por que parte da sociedade ainda tolera a violência contra a mulher? Para a sociedade, o poder ainda está nas mãos do homem e a mulher deve servir, ser submissa, obediente. Caso ela saia desse padrão, o homem acredita que deverá aplicar algum tipo de reprimenda, xingando, agredindo fisicamente e psicologicamente. Mas já foi pior. No nosso próprio Código Penal existia há pouco tempo o conceito de mulher honesta em crimes sexuais, os denominados crimes contra a honra. O que seria uma mulher honesta nesses casos? Quem julgaria a honestidade dessa mulher? Antigamente, se ela era casada precisava de uma autorização do marido para poder, por exemplo, abrir uma empresa ou fechar qualquer tipo de contrato.
Hoje o acesso à Justiça para mulheres vítimas de violência doméstica está mais democrático e fácil? O acesso à Justiça para mulheres em situação de violência foi um dos nossos grandes avanços ao longo desses anos. Se antes da Maria da Penha eu tinha cerca de 80 processos em cima da minha mesa, agora já cheguei a fechar o ano com 4 mil processos. A conscientização das mulheres e a informação deram mais coragem. A Justiça, em parceria com ONGs, associações, governo estadual, federal, municipal e Defensoria Pública, também teve de se adaptar para receber essa mulher vítima de violência doméstica, sem duvidar de sua palavra ou questionar a agressão.
Por que ainda se duvida tanto da palavra da vítima de agressão? A Lei Maria da Penha deu voz a essas mulheres. As que antes gritavam entre quatro paredes agora gritam nas ruas, mas precisamos saber quem está ouvindo essa voz. Eu acredito que precisamos de uma transformação do trato na hora da avaliar essa vítima. Ainda há uma inversão do ônus da prova: a mulher vítima de estupro precisa se justificar por ter sido estuprada e não o réu se defender do crime que cometeu. Nós jamais podemos julgar uma vítima de violência. Outro fator para a falta de credibilidade na palavra da mulher é o fato de a própria sociedade ainda acreditar que elas vão se utilizar da lei para prejudicar o homem com interesses pessoais ou patrimoniais. A sociedade duvida da palavra da mulher quando afirma que ela deu margem para a violência ou que estava mentindo. Se uma mulher denuncia o roubo de seu carro, por exemplo, ninguém vai questionar essa palavra, então por que questionar a palavra da mulher quando se trata de uma agressão? Isso é cultural.
Existe algum exemplo a ser seguido pelo Brasil? Sim, a Itália é um bom exemplo. Estive lá recentemente e percebi que é um país muito preocupado com a questão de violência contra a mulher. Nesse quesito, eles estão mais avançados que nós por adotarem uma legislação que dá total credibilidade, proteção e direito a indenização às vítimas. As mulheres são protegidas do início ao fim do processo, há um acompanhamento desde a denúncia na delegacia. Ela é informada de todos os atos processuais com uma linguagem acessível e há a garantia de indenização por danos morais e patrimoniais. Na Itália, por exemplo, policiais à paisana prendem em flagrante homens que se aproveitam das mulheres nos transportes públicos.
Se uma mulher for agredida, quem ela deve procurar e o que deve fazer de imediato? É importante denunciar no 180 e chamar na Polícia Militar ou a Guarda Civil Metropolitana, além de procurar sair de casa e se apoiar em outras pessoas. Buscar ajuda é fundamental. Se for uma violência que já está ocorrendo há certo tempo, é fundamental ir até a delegacia especializada e fazer a denúncia.
O fato de as delegacias da mulher não funcionarem 24 horas por dia não se torna um incentivo para a vítima desistir de denunciar o agressor? Sim, isso ainda é um problema grave. Por mais que tenhamos avançado, temos que avançar muito mais principalmente em relação ao atendimento nas delegacias de polícia. É importante um tratamento humanizado. Quando essa mulher chega à delegacia comum, ela acaba esperando por muito tempo ou é atendida de forma despreparada.
O caso de violência doméstica contra a modelo Luiza Brunet evidenciou que não são apenas as mulheres de baixa renda que sofrem com essas agressões. Há muitas vítimas ricas? A violência doméstica é um fenômeno que está em todas as classes sociais e se refere justamente ao comportamento de controle e poder que o homem exerce sobre a mulher. Nos últimos dois anos, as de classes mais altas estão denunciando também, elas usam os exemplos de mulheres que denunciaram e tomam coragem para fazer o mesmo. É óbvio que uma vítima pobre tem um caminho muito mais longo para percorrer até chegar à Justiça, mas o sofrimento é o mesmo.
Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgada em setembro deste ano, revelou que 30% dos homens acham que uma mulher merece ser violentada por causa da roupa que veste. O que pode mudar esse tipo de pensamento? A educação pode mudar isso. É fundamental abordar a questão de gênero e a Lei Maria da Penha nas escolas. É importante conscientizar os mais jovens sobre os direitos das mulheres e empoderar essas garotas desde cedo. Nossas meninas são educadas para se comportarem como se tivessem que obedecer a um padrão. É realmente muito bonito discursar que a mulher pode ser o que quiser, estar onde bem entender, mas é importante deixar claro que ela vai sofrer por conta disso. Ela precisa estar bem preparada para as consequências. É fundamental haver um preparo psicológico desde cedo.
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