por The Observer — publicado 28/12/2016
Mulheres usam a força da poesia como antídoto à carnificina nos países do Oriente Médio
A cidade síria de Alepo desmancha-se em ruínas, atacada por bombas russas, pela artilharia do governo e por armas químicas. No calor da batalha, tropas turcas e combatentes curdos enfrentam-se em sua antiga guerra, embora ambos devessem lutar contra um inimigo comum, o Estado Islâmico, que avança sobre os massacrados e torturados civis de Alepo e de outras comunidades sírias e curdas.
O Oriente Médio continua implodindo, mas em pleno caos surge outra força, poética e literária, de forma quase incrível. E surge nos versos de duas mulheres, parte de uma escola emergente de poesia, Bejan Matur e Maram al-Masri, respectivamente curda e síria.
Elas são as mais ilustres e conhecidas desta nova geração de mulheres poetas, seus versos se combinam para criar uma paisagem verbal devastadora, mas ricamente composta, que é ao mesmo tempo épica e intensamente humana. Crua e lírica, atual, mas embebida das memórias de sua gente, imediata e eterna.
A poesia de Masri resume de maneira vívida a fragilidade humana em uma sociedade brutal. Seus versos não poupam a verdade das alegrias e crueldades do amor. A poesia de Matur é mais mística, sublima o político e politiza o sublime, situa a perambulação de seu povo dentro de uma meditação filosófica sobre o significado e o vazio da existência.
Enquanto o verso de Masri é moderno, o de Matur evoca os românticos S. T. Coleridge e Emily Brontë. Ambas registram, com força e humanidade, o turbilhão da guerra.
“Só por meio da poesia posso alcançar meus próprios horizontes”, diz Matur. Conversamos em um café em Cork, Irlanda, depois de falarmos sobre seu trabalho na biblioteca da cidade. Ela conta que toda a sua poesia até agora foi escrita em turco, e não em seu curdo nativo, a língua proibida, falada só em casa com a família.
Mas na biblioteca declamou seus primeiros poemas em curdo. “Minha mãe me corrigiu. Ela indicou, por exemplo, as diferentes palavras curdas para ‘dar a volta’ e ‘voltar’. Então lá estava minha mãe, que não sabe ler, sendo minha editora!” Hoje Matur reflete sobre essas origens.
“Tínhamos uma vida feliz, mas limitada, mesmo quando criança eu tinha consciência disso. Sou curda e você aprende cedo que os outros não consideram ou aceitam que a terra onde você nasceu é sua.”
Matur nasceu, em 1968, na antiga cidade hitita de Maras. “Fui uma menina que adorava livros.” Seu tempo de estudante no fim dos anos 1980 foi dominado pela perseguição de Saddam Hussein e o ataque com gás a amigos curdos do outro lado da fronteira, no Iraque, e a perseguição na Turquia à cultura curda e sua expressão política. Como aluna de direito em Ancara, “os estudantes curdos eram suspeitos e detidos por suas atividades, e eu era uma entre eles.”
Presa durante 12 meses, entre 1988-1989, sob suspeita de participação no movimento insurgente, Matur explica como começou a escrever poemas no confinamento. Foram 28 dias numa solitária.
“Fiquei na escuridão absoluta, em um lugar onde não existia o tempo. Naquela cela escura começaram os interrogatórios. É assim que seu mundo é tirado de você. E, quando os interrogatórios pararam, eu pensei, ‘não posso tentar contar o tempo nesta escuridão atemporal, preciso encontrar outro meio de sentir que estou viva’. Foi assim que comecei a escrever poesia. Na minha cabeça, para trazer de volta à vida uma existência que eles tentavam apagar. Meus poemas são sobre a reconstrução de um ser despedaçado. Comecei a me concentrar nesse meio de sobrevivência. Em nossa tradição oral, as palavras tinham ritmo, uma espécie de música. Elas me deram equilíbrio no escuro. Eu não era mais deles.”
Depois de ficar detida por oito meses, ela foi liberada por um tribunal. “Mas, quando cheguei aos portões da prisão e vi que meu pai me esperava, a polícia me prendeu de novo, por nada. Eles queimaram toda a poesia que eu havia escrito. Quando fui finalmente libertada, voltei à cadeia por mais quatro meses, deprimida, desmoronada, quebrada. Eu queria morrer.”
Findo esse pesadelo, Matur falou em uma conferência da Anistia Internacional e pela primeira vez encontrou “energia para contar a minha história”. Ela escreveu o que se tornou um best seller desafiador na Turquia, Olhando Atrás da Montanha, uma coletânea de vozes curdas reunidas de maneira simples e inteligente.
Matur escreve poesia há vários anos, seu primeiro livro foi publicado em 1996 e ganhou muitos prêmios, e depois houve outros mais. Um primeiro volume de sua poesia, In the Temple of a Patient God (No Templo de um Deus Paciente), foi publicado em inglês, em 2003.
“Ler Bejan Matur é caminhar por um deserto varrido pelo vento, cheio de ossos, corpos partidos e pedras manchadas de vermelho por deuses ausentes”, escreveu Maureen Freely no prefácio. “É uma paisagem assombrada, desolada e fragmentada.” Então, de forma inescapável, há a guerra. “Não são obras autobiográficas. Matur escreve sobre um povo, não sobre uma pessoa.”
Maram al-Masri fica à mesa, na calçada de um café em Paris, enquanto entro para pagar a conta. Quando volto, seus olhos estão marejados. “Olhe para ele”, diz sobre um belo rapaz na foto em seu telefone. “Acaba de ser morto. Por assassinos do regime de Assad. Um jornalista e fotógrafo. Mais um, também um amigo. Acontece todos os dias, toda vez que eu checo as notícias da Síria.”
Seu nome era Khaled al-Issa, “um homem amável, bom profissional, suave, gentil. É como uma tortura prolongada. Esperar, saber, não saber, perguntar-se: quem será o próximo de meus amigos e parentes? E todas as outras pessoas, todos os dias”.
Só mais tarde me conta que seu próprio filho, que ela não vê há 13 anos, estava entre os rebeldes quando as manifestações começaram. “Eu perguntei a ele: ‘Você aderiu à revolução?’ E ele disse ‘sim’, e eu fiquei muito feliz. Teria me sentido mal se ele dissesse não.”
“Alepo é a vingança final contra a cidade que foi o berço da revolução pacífica, um genocídio contra todos os que não abandonam tudo o que têm e os túmulos de suas famílias. Eu sigo cada momento. Eles dizem que a poesia é uma arma. Por que poemas devem ser armas? Se forem, simplesmente nos levam de volta à guerra. A poesia deveria ser uma antiarma.”
A poesia de Masri é complexa, torturada, é uma poesia de guerra da diáspora, daqueles que não estão lá, dispersos pelo limbo. Há um poema sobre como Somos os exilados/ vivemos com as pílulas da sedação/... Dormimos abraçados a nossos celulares/ à luz de nossas telas. Mais tarde, belisca o jantar.
“Posso sentir os sedentos, os famintos, como se eu estivesse vivendo com eles, apesar de estar aqui.” Ela ocupa um pequeno quarto em Montparnasse, “quase sem luz natural, mas eu gosto desse bairro. A metade de mim está aqui, a outra metade está lá. É uma espécie de vida dupla”.
Masri nasceu em Latakia. Uma ávida leitora e escritora quando criança, seus pais falavam francês e ela estudou literatura inglesa na Universidade de Damasco. Começou a publicar poesia em revistas de todo o mundo árabe nos anos 1970. Nos 80, mudou-se para a França e passou a viver entre seu país natal e o adotivo. Em 1987, publicou um primeiro volume, seguido dez anos depois de um livro singular, A Red Cherry on a White-Tiled Floor (Uma Cereja Vermelha sobre um Piso de Ladrilhos Brancos).
São poemas de amor com uma diferença, o que ajudou Masri a reivindicar o prêmio Adonis, que leva o nome do mais famoso poeta vivo em língua árabe. O livro não trata de desilusões amorosas, mas de paixão. Fala de adultério e mentiras, na verdade a submissão às mentiras: Dê-me suas mentiras/ eu as lavarei/ e as guardarei na inocência do meu coração/ e as tornarei fatos.
“Antes da guerra, a mulher em mim era meu universo, minha fonte de inspiração. Eu me tornei frágil, e paguei um preço. Foi como você se desnudar na frente das pessoas. O advogado do meu marido usou meus poemas contra mim no processo de divórcio. O juiz concordou que minha poesia não era compatível com o meu casamento, com a mente de uma esposa boa e fiel.”
Carta Capital
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