Diretor disseca o procedimento e a figura do herói na esperança de encontrar humanidade no acontecimento
por Virgílio Souza
⚠️ AVISO: Contém spoilers
Em uma tarde fria de inverno no início de 2009, as vidas de mais de cento e cinquenta passageiros e tripulantes de um voo da US Airways foram salvas pelas mãos do piloto Chesley Sullenberger e de seu colega, Jeff Skiles. Poucos minutos após sair do aeroporto La Guardia, em Nova York, a aeronave foi atingida por pássaros e os motores começaram a falhar. Duzentos e oito segundos depois, porém, o capitão completou uma tarefa que parecia impossível e aterrissou sem vítimas fatais em pleno rio Hudson.
O êxito foi tratado como milagre mundo afora. Os nova-iorquinos, em especial, pareciam ter encontrado no episódio não apenas um instante de alegria diante da crise econômica que se agravava, como também um contraponto positivo, mesmo que momentâneo, para os atentados terroristas de alguns anos antes. “Voar não era mais divertido, tinha deixado de ser algo americano”, afirmava o escritor Roger Angell, pedindo ainda que o presidente recém-eleito Barack Obama desse a Sully o cargo de “Secretário dos Feitos Incríveis”.
Pouco antes de o incidente completar seu oitavo aniversário, Clint Eastwood apresenta uma interpretação que traz elementos suficientes para renovar o interesse nos acontecimentos daquela época. De imediato, seu filme se desvia de outras produções recentes de temática similar, ao menos na superfície. “Sully: O Herói do Rio Hudson” e “O Voo” (de 2012, talvez a referência mais próxima), por exemplo, têm origens e pretensões radicalmente diferentes.
Na trama narrada por Robert Zemeckis, o personagem de Denzel Washington convivia com vícios diversos e mantinha relações complicadas com as pessoas ao seu redor. Aqui, o protagonista de Tom Hanks é construído como uma figura livre de rejeições, como o cidadão-modelo que o intérprete sugere. A proposta não é, portanto, desconstruir a figura do herói, mas encontrar o fator humano em sua performance na cabine, algo que a história e a rigidez da burocracia por vezes abandonam pelo caminho.
Escrito por Todd Komarnicki, o roteiro tem como ponto de partida um momento já posterior ao pouso, quando o piloto tenta fazer sentido do ocorrido e não ser sufocado pela repercussão do caso. Por um lado, a decisão de dar início à trama no centro do furacão é proveitosa, porque tira do espectador seu tempo para reagir ou se preparar para o impacto. Por outro, deixa a estrutura mais vacilante, uma vez que se obriga a recuar e avançar no tempo seguidas vezes sem que haja necessariamente laços diretos entre dois momentos do passado e do presente — a volta à juventude do capitão, por exemplo, é o trecho mais frágil do longa.
A PROPOSTA NÃO É DESCONSTRUIR A FIGURA DO HERÓI, MAS ENCONTRAR O FATOR HUMANO EM SUA PERFORMANCE NA CABINE
De todo modo, uma boa porção do ato inicial é dedicada a acompanhar a primeira fase de interrogatórios de Sully e Skiles (Aaron Eckhart). A câmera do fotógrafo Tom Stern, habitual colaborador de Eastwood, cria uma divisão elegante entre pilotos e investigadores que sugere mais a demarcação de posições diferentes do que antagonismo propriamente dito. O primeiro grupo aparece em inferioridade numérica e sob ataque, mas seguro de suas ações; o segundo se porta de maneira incisiva, gerando desconforto após cada sugestão de que houve erro humano. Ao menos nesse instante, porém, as duas partes buscam a mesma coisa: certezas.
O HEROÍSMO DE SULLY ESTÁ NAS PEQUENAS COISAS, EM UMA REAÇÃO SILENCIOSA DIANTE DA TELEVISÃO
O fato de conhecermos Sully no momento mais agitado de sua vida seria tentador para a maior parte dos cineastas de Hollywood, dispostos a experimentar uma série de recursos para sinalizar essa confusão. Diferente de todos eles, Eastwood faz uma aposta simples, mas garantida, no talento de Hanks. A câmera se movimenta sem pressa e com fluidez pelos cenários, sempre atenta a seu rosto, certa de que ele poderá entregar algo especial a qualquer momento — uma franzida de testa que seja. E ele entrega. Em certos momentos, é como se o diretor aguardasse pacientemente um detalhe na performance do ator antes de definir sua abordagem.
A discrição não é um exercício simples, mas ambos conhecem as recompensas que acompanham essa aparência relaxada em termos de composição. Quando não discursa ou responde à imprensa, Sully é visto entre corridas pela madrugada e longas pausas em quartos de hotel. Seu heroísmo está nas pequenas coisas, em uma reação silenciosa diante da televisão que mostra seu feito em um bar ou no plano breve numa ponte em que a iluminação faz seu corpo andar para um lado e sua sombra, para o outro.
Na mesma linha, a pressão sobre o piloto não precisa de grandes exclamações para se manifestar. Eastwood povoa os quadros mais abertos, deixando até o espectador atordoado com a quantidade de objetos em tela, e usa as transições com imagens aéreas da cidade para informar sobre a gravidade de uma possível queda ali, mais do que simplesmente localizar o incidente ou a trama geograficamente. Alguns deles, mesmo que distantes em tom e conteúdo, produzem sensação de continuidade, como podemos ver abaixo.
“SULLY” É UM CONVITE A PARAR E OBSERVAR O QUE PODERIA TER SIDO, O QUE FOI E O QUE LEVOU A SER
Tudo isso é realmente impressionante, mas ainda não cobre o principal mérito da direção. Acima de qualquer coisa, “Sully” é um convite a parar e observar o que poderia ter sido, o que foi e o que levou a ser. Para tanto, o filme nos faz escutar a caixa preta do avião, acompanhar as conversas do piloto dia após dia, ver e ouvir seus medos. São atividades rotineiras que engrandecem a trajetória do personagem sem que grandes arroubos narrativos sejam necessários.
Nesse sentido, a opção por dividir a aterrissagem em três momentos não poderia ser mais certeira. A cada nova encenação do ocorrido, novos detalhes de ordem prática aparecem. A importância do fator humano, porém, permanece em todas as representações do incidente. Os passageiros oferecem rostos com os quais podemos nos identificar, os agentes de resgate indicam o envolvimento da cidade, o controlador de tráfego transmite a impotência dos atores externos e as comissárias de bordo agem em ritmo próprio, seguindo o protocolo e criando uma melodia desesperadora (“Head down, stay down!”) na tentativa de evitar o pior.
A OPÇÃO POR DIVIDIR A ATERRISSAGEM EM TRÊS MOMENTOS NÃO PODERIA SER MAIS CERTEIRA
A despeito do comprovado sucesso coletivo, as ações tomadas dentro do cockpit seguem em debate. Simulações de computador insistem em atribuir responsabilidade a Sully e, assim, fazem com que ele também se questione. Isso leva Eastwood a tomar sua decisão mais corajosa: dissecar o procedimento na esperança de encontrar humanidade, algo que a máquina não pode compreender nem explicar.
Todo o terceiro ato consiste em acompanhar esses testes quase na íntegra. Inicialmente filmado da maneira mais impessoal possível (uma câmera posicionada atrás da cabine, sem identificar os pilotos, é o suficiente), o simulador passa a aceitar cada vez mais a influência dos tripulantes (o tempo de resposta reduzido, a falta de dados, a responsabilidade por 155 almas). Quando respostas mais esclarecedoras começam a surgir, elas parecem ser guiadas, dirigidas por Sully. No limite, a sensação é de que ele, como Eastwood, estava no controle desde o início — o mundo ao seu redor é que precisava de um pouco mais de humanidade para perceber.
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