Por mais que a gente tente se distanciar, há uma emoção irremovível que nos liga a seres humanos especiais para nós
IVAN MARTINS
21/12/2016
Antes de encerrar o ano, admitamos algo que pode nos trazer alívio: certos sentimentos são temporariamente insolúveis, e temporariamente pode significar um monte de tempo.
Por mais que a gente tente se distanciar, há uma emoção irremovível que nos liga a seres humanos especiais para nós. O tempo passa, experiências maiores ou melhores se sucedem, mas a conexão com eles permanece. A gente pode lutar ou aceitar graciosamente. Hoje, no melhor espírito natalino, eu recomendo: aceite, é melhor.
Vi outro dia um filme do Woody Allen – Café society – em que um casal passa a vida encantado um pelo outro, embora venham a se casar com outras pessoas. Isso é um sentimento insolúvel. No filme, ele ilumina a vida de duas pessoas com a luz suave da nostalgia, passivamente. Na vida real, talvez se possa fazer alguma coisa a respeito, embora sem ilusões.
Não adianta sair correndo pela décima vez atrás de quem não quer você. Ou se aproximar de novo de pessoas que sabidamente lhe fazem mal. Num caso desses – agudo e doloroso –, talvez seja melhor admitir a força do sentimento, notar que ele está lá e ficar quieto. Ninguém deveria avançar em direção à própria ruína emocional.
Mas há casos em que o carinho de uma pessoa pela outra existe claramente. Ele pode ter ficado largado no caminho por incompreensões, ressentimentos e medos. Mas está lá, palpável. Nesses casos, em que a ternura é benigna, talvez valha a pena criar coragem, admitir o óbvio, estender a mão e perguntar, como na música de Roberto Carlos: “Como vai você?”.
Negar um afeto espontâneo é ignorar a nossa humanidade. Recusar um sentimento bom é rechaçar uma parte essencial de nós. Fingir que algo tão denso não existe significa recusar a nossa própria sensibilidade – uma ruptura profunda conosco, que não pode produzir bons resultados.
Nos últimos dias, tenho achado o mundo tão assustador, tão deprimente que fui tomado pela urgência de resgatar o que há de melhor nele. Isso quer dizer afetos. Num tempo de enorme incerteza, em que tudo que é sólido se desmancha no ar, não se pode virar as costas a quem a gente ama e desprezar quem nos quer bem. Há que olhar nos olhos dos sentimentos insolúveis e sorrir.
Como se faz isso?
Convidando para conversar. Telefonando. Comprando um presente. Almoçando, jantando, rindo. Deixando fluir o sentimento represado e reconhecendo a sua existência. Permitindo, ao mesmo tempo, que ele seja menos egoísta, menos possessivo. O amor, admitamos, tem aspectos terríveis. Reduz o mundo a uma única pessoa e cria uma bolha espessa em torno dos casais. Os sentimentos insolúveis têm de ser mais generosos, e são. Eles ajudam a brotar o que há de melhor em nós. Ao menos criam essa possibilidade.
Essa não é uma ideia minha, veja bem.
De Buda a Freud, passando pelo Prem Baba, todo mundo que entende de seres humanos dirá que é impossível ser feliz sem admitir os sentimentos que nos habitam. E o amor, mesmo tisnado de mágoa e ressentimento, é um sentimento fundamental. Está lá, nos alicerces, pulsando. Integra nossas mais secretas aspirações. Não é possível dar um passo em qualquer direção ignorando sua existência.
Por isso eu digo, vá a ele. Admita e acolha o sentimento, assim como o ser humano que o inspira e o devolve a você. Refaça as pontes. Restabeleça as possibilidades de troca. O sentimento insolúvel tem um componente de esperança, mas não é uma ilusão. Se for bem entendido, não vai machucá-lo. Ele é uma energia vital que pode ser transformada em outra coisa, um monte de coisas boas – a começar por um abraço e um sorriso, que podem dar ao ano terrível que se encerra uma nota verdadeiramente alegre.
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