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domingo, 18 de dezembro de 2016

“Ele me consumia, me apequenava”

Atleta que denunciou o técnico Miguel Ángel Millán relata sua história de abusos sexuais
AMAYA IRÍBAR
Madri 16 DEZ 2016
O técnico de atletismo Miguel Ángel Millán, investigado em Tenerife (Espanha) por supostos crimes de abuso sexual reiterados contra um menor, foi colocado em liberdade nesta quinta-feira, após ser formalmente acusado. Poucas horas depois, Eduardo, que hoje tem 19 anos e o denunciou em junho numa delegacia de polícia da localidade de La Laguna, decidiu contar sua história. Uma história em que descreve o algoz como alguém “carismático, culto, brilhante, intenso e manipulador”, a quem conheceu quando tinha 11 ou 12 anos e que o foi envolvendo em seu mundo até levá-lo para dormir consigo num hotel. Com quem manteve uma relação de admiração e amizade que custou a reconhecer como abusiva, e a quem agora deseja ver condenado.
“Quando comecei a treinar com Miguel eu teria 11 ou 12 anos. Meu irmão mais velho tinha começado antes com ele e, como vivia perto de casa, [o treinador] nos levava à pista de carro”, recorda esse aluno do segundo ano da faculdade de Física. O grupo era composto por cerca de dez atletas com perspectivas de chegar à elite esportiva. Afinal de contas, Millán havia desembarcado em Tenerife com a fama de ter forjado um medalhista olímpico (Antonio Peñalver, prata no decatlo em Barcelona-1992), e como tal era tratado nas ilhas Canárias, segundo o denunciante. “Mas eu não sentia tanta admiração esportiva por ele como treinador como sentia por todo o resto, porque falava de livros, de filmes, de música, das suas viagens… quando você o escuta falar, fica encantado”, diz.
O processo de aproximação do treinador com o atleta, que ainda era um pré-adolescente, foi gradual e muito sutil. “Ele começou a reparar mais em mim”, recorda Eduardo. Tudo mudou quando Millán fez uma viagem a Marrocos. “Ele nos enviou um email com os treinos, e na volta estava muito distante comigo. Chegou a me dizer que achava que éramos amigos, e que não entendia por que eu não tinha respondido. Isso me afetou muito. Escrevi um email para ele, e a partir daí a relação começou a se intensificar de forma exponencial, falávamos de assuntos cada vez mais íntimos.”
Começaram as mensagens através do WhatsApp e da rede social Tuenti, num tom cada vez mais íntimo. Eduardo a essa altura tinha 14 anos. “Ele insistia em que eu não deveria me importar em falar de tudo com ele”, conta. A confiança que o treinador transmitiu ao garoto era tal que Eduardo decidiu lhe contar que era homossexual. “Contei porque achei que, como amigo, poderia me entender e me ajudar. Foi justamente o contrário”, relata. “Ele me disse que o mundo estava cheio de gente má. Que não devia contar.”
Para o Eduardo de então, não havia nada de estranho nisso tudo. Nem sequer no fato de Millán ter mais de 60 anos, e ele não ter nem completado 16. Nem tampouco que lhe pedisse para apagar as mensagens todas as noites, argumentando que ninguém iria entendê-las. “Via isso como algo romântico. Acho que isso é o mais difícil de ver e entender num processo de abusos como este”, analisa agora.
Um hotel em Arona
O segredo é outra constante. “Não comentei nada com ninguém. Fui me deixando levar para o seu terreno, ele me consumia, me apequenava.” Aí começaram as massagens. “Em público ele nunca chegou a me tocar, nem sequer na sala de massagens que havia na pista, mas agora vejo que me dominava, que eu não tinha controle sobre mim mesmo.”
Foi num hotel de Arona, também nas Canárias. Era o ano de 2012. Eduardo não competia, mas viajou até lá para ver seu irmão e o resto do grupo com o qual treinava. Sua mãe e seu irmão voltaram antes para casa, e Miguel ofereceu que se alojasse em seu quarto. Eduardo aceitou. “Ele se ofereceu para me fazer uma massagem. Num dado momento percebi que ele me tocava. Fiquei paralisado, em choque, não conseguia me mover...”. Foi o primeiro episódio de abuso sexual. Repetiu-se em outras três ocasiões, sempre durante competições.
Embora nunca tenha rechaçado peremptoriamente as investidas de Millán, e este nunca tenha exercido qualquer forma de violência física – “Comigo não era preciso, porque me dominava com o simples fato de me dizer que já não éramos amigos” –, Eduardo viveu com esgotamento tais episódios, que se prolongaram durante um ano. Começou a faltar aos treinos, a arranjar desculpas, até que largou o atletismo. “Não me via com forças nem com capacidade para romper aquela situação”, contou. “Só no ano passado fui perceber que tudo isso não era normal”, admite agora. Tardou anos a conseguir verbalizar. E até poucos meses atrás não consegui construir um relato sobre o que havia lhe ocorrido. Agora deixa claro: “Quando decidi denunciar meu caso, queria que Miguel fosse punido pelo que me fez, não só com a prisão, mas também socialmente, e que isso não venha a ocorrer com mais nenhum menino. Agora também quero que se rompa o silêncio, que se fale dos abusos no esporte e que se aja”.

UMA INVESTIGAÇÃO QUASE FAMILIAR EM BUSCA DE OUTRAS VÍTIMAS

Num primeiro momento, o caso de Eduardo foi arquivado, depois que uma juíza colheu os depoimentos do acusador e de alguns pupilos de Miguel Ángel Millán que disseram não ter sofrido qualquer abuso. “Eu me senti muito sozinho. Foi muito duro”, relata.
“Não recebi nenhum apoio do pessoal da pista, dos meus colegas de treino, e o clube tampouco se colocou em contato comigo”, afirma. Ele chegou inclusive a considerar que não valia a pena seguir em frente com as denúncias. Mas, com ajuda de outra atleta mais velha que ele e do seu cônjuge, e com o apoio da família, se puseram a procurar outras possíveis vítimas que, com seu relato, permitissem à Justiça reabrir o caso.
Até agora, cinco homens que treinaram com Millán em diferentes épocas prestaram depoimento à polícia, afirmando terem vivido situações semelhantes em Tenerife, Múrcia (região de origem do técnico, que lá viveu até 1993) e Barcelona. Entre eles está um jovem de 26 anos que deixou o atletismo há bastante tempo e pede anonimato, porque é muito conhecido em sua profissão. Conheceu Millán através de um amigo, e o técnico o convenceu de que tinha vocação para o atletismo. Decidiu tentar a sorte e se mudou para Tenerife. “Millán se tornou uma figura paterna”, recorda agora.
Seu relato coincide com o de Eduardo em alguns aspectos. “Millán aproveita vazios emocionais, no meu caso foi a situação doméstica, que não era muito estável. Conseguiu que eu não me relacionasse com ninguém. Ele vai se metendo no seu mundo”, conta por telefone. E acrescenta: “Comigo fez todo o processo. Usa a palavra, leva você para o seu terreno, e depois começam as massagens, as bolinações, ele tira a roupa e fecha o quarto com chave… Era dia a dia, continuamente”, relata. “Uma das minhas noites mais sombrias foi numa comemoração na casa de Germán [o filho mais velho do treinador]. Fiquei lá para pernoitar e ele entrou no meu quarto, tentou me tocar, e eu fingi que estava dormindo. Começou a se masturbar… Agora vejo com perspectiva e penso: por que não bati nele?”
Na época, não denunciou o fato, mas não sabe explicar bem por quê. Foi o relato de Eduardo que o convenceu a falar. Não é o único.

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