Por Jana Viscardi
Sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020
Deborah Cameron é uma linguista que escreveu um livro chamado “Higiene Verbal”. Bem, na verdade, o livro se chama “Verbal Hygiene”, mas como ele não tem tradução para o português, eu a fiz eu mesma para os propósitos deste artigo.
A autora define o termo como uma “coleção heterogênea de discursos e práticas através das quais as pessoas tentam “limpar” a linguagem e fazer com que sua estrutura ou seu uso esteja em conformidade com seus ideais de beleza, verdade, eficiência, lógica, correção e civilidade”¹. Cursos de oratória que pretendem mudar a forma como você geralmente fala seriam um exemplo de “higiene verbal”. Os esforços televisivos para se “neutralizar” sotaques são outro exemplo. A tal da higiene verbal aparece também em muitas “críticas” à voz das mulheres, estejam elas narrando, apresentando ou discutindo algo.
A autora define o termo como uma “coleção heterogênea de discursos e práticas através das quais as pessoas tentam “limpar” a linguagem e fazer com que sua estrutura ou seu uso esteja em conformidade com seus ideais de beleza, verdade, eficiência, lógica, correção e civilidade”¹. Cursos de oratória que pretendem mudar a forma como você geralmente fala seriam um exemplo de “higiene verbal”. Os esforços televisivos para se “neutralizar” sotaques são outro exemplo. A tal da higiene verbal aparece também em muitas “críticas” à voz das mulheres, estejam elas narrando, apresentando ou discutindo algo.
Essas tentativas todas de controlar a forma como se fala nos mostram o quanto as pessoas tentam intervir na maneira como uma língua funciona na tentativa de estabelecer (e manter) um padrão, uma norma. O interesse nisso tudo é pensar quem é que costuma “vencer” a batalha pela higiene verbal ou quem se aventura a preconizar o que seria o padrão. A própria autora aponta que o interessante nisso tudo é justamente buscar compreender o que está por trás desses debates todos pela neutralização e padronização de uma língua e seus usos.
No que concerne as mulheres, são inúmeros os casos de “reclamações” e “críticas” que recebem pelas vozes que tem: ora porque falam alto demais, ou porque falam fino demais, ou grosso demais, ou baixo demais, ou “miado” demais.
Foi, inclusive, com essa “crítica” (sim, entre aspas, porque me pergunto se isso é mesmo uma crítica) que Pedro Bial brindou os ouvintes de uma rádio, ao trazer suas formulações sobre a narração de Petra Costa, diretora do filme “Democracia em vertigem”, indicado ao Oscar em 2020.
Vamos já fazer uma pausa aqui: este meu texto não tem o intuito de dizer a você que você deve amar ou odiar o filme. Que você deve ser acrítico a ele porque ele foi indicado ao Oscar. Atente: aqui, estou discutindo a forma como uma crítica específica foi endereçada. Se você gosta ou não do filme, é outra história.
Sobre a narração, Bial disse: “narração miada, insuportável, onde ela [Petra Costa, a diretora e narradora] fica choramingando o filme inteiro”. Observe os termos: miada, insuportável, choramingando.
Veja só, o argumento de Pedro Bial é um grande lugar comum e não diz nada sobre o filme, mas diz muito sobre machismo. É, eu sei, você não gosta dessa palavra, mas, observe: a voz das mulheres é, desde sempre, um lugar de “crítica” e, pasme, essa crítica afeta mulheres e homens. Veja, por exemplo, o caso da ativista Greta, em que as críticas foram direcionadas, e muito, à sua voz. Forma física e produção vocal aqui acabam se assemelhando bastante, porque são dois lugares da existência feminina que recebem atenção e crítica negativa, o tempo todo, em todo lugar.
Explico: o padrão de voz usado em público, supostamente eloquente e “palatável”, é o padrão de pitch baixo, a voz estereotipada masculina. Claro, se homens ocuparam esses espaços por tanto tempo, a voz também ganha o selo requerido de masculinidade para se entrar pro clubinho de quem fala bem. Há vários estudos que buscam compreender por que se “busca” esse tom de voz, inclusive.
Neste breve texto, não vamos adentrar neste universo, mas interessa dizer: as mulheres, quando entram em espaços antes ocupados apenas por homens, são correntemente criticadas pelas características de sua produção vocal que as distanciam do que, durante muito tempo, foi o socialmente aceito e ouvido corriqueiramente, em especial em espaços públicos de debates. O que escapa a Pedro Bial, no entanto, é que estamos em 2020, as mulheres fazem (e narram) filmes e, portanto, ele e seus iguais não são o único modelo possível de voz de narração que pode ocupar as produções nacionais.
Fica ainda pior a fala dele ao associar Petra a uma menina que fala com a mãe, reforçando mais um dos argumentos masculinos às mulheres, ao infantilizar seus posicionamentos e ideias.
Isso tudo não implica dizer que é preciso “gostar” de toda e qualquer narração – feminina e masculina. Mas vale a pena perceber que tipo de crítica é feita para homens e mulheres (incluindo aqui pensar o que se diz a homens com vozes ditas “afeminadas” e as constantes tentativas de reprimi-las ou “corrigí-las”). Pode ser que você ache uma narração pouco enfática, monotônica, ou sei lá o que mais. Achá-la estridente demais, ou miada demais, ou mole demais pode ter muito a ver com os padrões e com quem “pode” narrar ou falar em público.
Meu conselho ao Pedro Bial: venha para o século 21, quando esse tipo de crítica é impertinente e ultrapassada (e pode ser aprofundada e melhorada).
Meu conselho às mulheres e homens com vozes mais agudas ou menos “firmes” ou simplesmente distintas do padrão masculino convencional: toquem o foda-se, façam seus filmes, suas narrativas, suas palestras, suas falas públicas. Eles terão que nos ouvir. Aqui, no Oscar, no seu trabalho, no seu podcast ou no evento da família.
Jana Viscardi é doutora em Linguística pela UNICAMP, com passagem pela UniFreiburg, na Alemanha. Professora e palestrante, faz vídeos semanais sobre linguagem e comunicação (e otras cositas más) no canal do Youtube que leva seu nome.
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