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quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Flávio Urra levou 300 condenados por violência doméstica a repensar atitudes machistas

25 SET 2019 
Numa quarta-feira à noite, 20 condenados pela Lei Maria da Penha discutem violência em uma sala de Santo André, no ABC paulista. Um dos apenados relata as brigas a que assistiu entre os pais quando ele era criança. Descreve a pancadaria, fica emocionado e chora. Os que ouvem aplaudem, legitimando as lágrimas do companheiro. Um outro cidadão conta a humilhação sofrida dias antes. Fora xingado de “lixo”, várias vazes, pela ex-esposa, enquanto entregava o filho, com quem havia passado o fim de semana. Sob a saraiva de insultos da mulher, que ele um dia feriu, manteve-se em silêncio. Não contra-atacou, apenas chorou na frente do menino e dela. O moderador quis saber o que os colegas acharam. “Ele foi covarde?”, questionou. As respostas: “Não foi”; “Teve uma atitude digna”; “Agiu como homem”. Ao dono da história, perguntou como se sentira com as ofensas da ex-mulher, e ele confessou: “A vontade era revidar. Precisei me conter muito, mas entendi que seria mais um ato de violência da minha parte”. 

Todos os participantes sentados ali sofreram condenações de no máximo 2 anos de prisão. O juiz converteu em pena alternativa, que significa frequentar obrigatoriamente o grupo “E Agora José?”. Estão sob custódia do estado, são fiscalizados pela central de penas da Secretaria da Administração Penitenciária e, para evitar o regime fechado, precisam se empenhar. A dinâmica adotada tem o propósito de desencadear reflexões e mudança – como descreve o mentor do projeto, Flávio Urra, 57 anos, sociólogo, mestre em psicologia social e finalista na categoria Eles por Elas.
Ao chegar, o apenado passa por duas entrevistas individuais, em 2 semanas, e conta o que aconteceu. “É o machismo bruto e consolidado. Ele denota poucos recursos internos para elaborar um pensamento próprio sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. Cometeu violência que nem achava que fosse violência”, conta Flávio. As desculpas são as mesmas: apenas segurou o braço com força para a mulher não bater nele; jogou cerveja no rosto dela em um momento de nervosismo; mandou um “zap” com palavrões porque a esposa sumiu. Na sua cabeça, crime é roubo cometido por políticos e assassinato. O que acontece em casa é só uma discussão. Como todos, sente-se injustiçado: afirma ser honestos, trabalhador, pai de família que, infelizmente, foi prego em flagrante.
"O homem mata e morre para provar que é homem. Para defender o machismo interno, é capaz de acabar com a mulher, os filhos. Às vezes sabe trocar fralda, lavar louça, mas acha que isso o faz menor. Não abre mão da lógica que o constituiu. Tentamos quebrar tudo. Mostramos que ele pode ser sensível, ter dor, abrir-se, encontrar outra forma de reagir diferente de violência"
Flávio Urra
Na terceira semana, já mais calmo, é preparado para entrar no grupo e interagir ao longo de vinte reuniões. A rodada inicial prevê a divisão em cinco turmas. Cada uma diz o que sabe sobre formas de violência contra a mulher, em diferentes momentos: quando criança, ao andar na rua, no ambiente de trabalho, na exposição da mídia, na relação amorosa e na velhice. As ideias brotam. Entre elas – e recorrentemente – surge a celeuma: “Afinal, por que os homens matam? Os facilitadores levam pesquisas, estudos, relatam descobertas de grupos de anteriores... “Nós, recebemos informações femininas, conteúdos ditos pelas mães, irmãs, esposas. Mas pesam muito mais os nossos espaços de socialização. O bar, o vestiário do futebol e a arquibancada são ambientes excessivamente machistas”, explica a eles. “Há homens que têm práticas femininas, como o cuidar, porém se comportam como macho para que ninguém duvide da sexualidade deles. O medo é não parecer homem o suficiente.”  
Os facilitadores, que trabalham em dupla, admitem que também protagonizaram experiências ruins. “Só não fomos denunciados, mas cometemos muitos atos machistas”, revela o psicólogo mineiro, casado e pai de dois homens. “Resolvemos enfrentar a violência em vez de praticá-la”. Na conversa, é ressaltada a mudança que eles estão implementando, individualmente. Algo bom para o enriquecimento pessoal e imprescindível para não voltarem a cometer crimes. “Sempre alertamos que um deslize pode gerar nova denúncia e, consequentemente, prisão.” Os autores de violência percebem que muitas coisas jogam contra eles. E se não derem meia-volta, continuarão perdendo. “Comento que a masculinidade tóxica leva à pornografia e à solidão. Lembro que 90% dos assassinados no Brasil são homens. Os acidentes de carro acontecem muito mais com eles. A grande massa da população carcerária, e também a de rua, é masculina”, diz. “Eles entendem que a vida que levaram até aquele momento não foi nada fácil. E seguir nela não trará felicidade”.
Quando termina esse período, que se estende por 5 meses, o homem vai para uma sessão individual em que os técnicos avaliarão seu discurso. Depois, haverá mais três encontros. “É um jeito de monitorá-lo, ver se regrediu, como age sem o grupo e que mudanças apresentou em casa”, conta Flávio. O processo todo dura um ano e oito meses. Para conduzi-lo, o programa conta com uma equipe masculina de onze facilitadores voluntários. São psicólogos, assistentes sociais, sociólogos, além de um matemático e um economista. Para Flávio, estar só entre homens leva a avanços mais rápidos. 
Desenvolvido desde 2014, o programa fez parte de uma política pública municipal, que a atual gestão de Santo André não se interessou em manter. Flávio desligou-se da prefeitura, mas não deixou a ação morrer. A ONG Entre Nós – Assessoria, Educação e Pesquisa, da qual é um dos fundadores, assumiu o “E Agora José?”. O grupo ocupa atualmente uma sala na Defensoria Pública. Homens que não são réus nem condenados também passam por oficinas conduzidas pela equipe de Flávio. São pais, namorados, maridos que querem tornar-se pessoas melhores. O desejo deles é aprender com a mulher, trocar de lugar com ela para compreendê-la e também conhecer a si próprio. “Toda vez que o homem se aproxima do feminino, ele é mais feminino que macho. E o ganho é de todos nós”, garante.

O impacto de Flávio
Em Santo André, dos 300 condenados que concluíram o processo de reflexão proposto por “E Agora, José?” apenas dois reincidiram. A metodologia é replicada nas cidades paulistas de Diadema, Suzano e Poá. Facilitadores capacitados pelo programa vão implantar o grupo em São Vicente (SP), Juiz de Fora (MG) e Salvador. A ONG Serviços Assistenciais Senhor Bom Jesus dos Passos, que administra uma moradia com 400 idosos na capital paulista, usa o método com os senhores que assediam colegas e trabalhadoras da instituição. Na Fundação Casa de Diadema, o trabalho com os jovens que cometem infração inclui discussões sobre misoginia, racismo e LGBTfobia. “Os discursos do macho precisam ser combatidos. Eles constroem a convivência pelas vias mais violentas”, afirma Flávio Urra.

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