Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

MULHER À BEIRA DO TEMPO, CLÁSSICO DA UTOPIA FEMINISTA

3 DE ABRIL DE 2017

Ano passado li um romance muito interessante, um clássico da utopia feminista: Woman on the Edge of Time, de Marge Piercy, publicado em 1976. Não sei se tem tradução pro português, apesar de eu já ter visto o título Mulher [e mulheres também] à Beira do Tempo pipocando aqui e ali.

A trama não começa como utopia, muito pelo contrário. A protagonista, Connie, mulher hispânica de 37 anos, é internada à força num sanatório psiquiátrico. Enquanto está presa, lembra-se do seu passado. Tinha 20 anos quando sua mãe morreu. Conta a narração: "Aos quinze, aos dezessete anos, ela havia gritado com sua mãe como se o papel da mulher mexicana que nunca se sentara com sua família, que comia depois como uma empregada, fosse algo que sua mãe tivesse inventado". 

Sua mãe aceitava calada as traições do marido e apanhava sem reclamar. Depois de parir cinco filhos e ter quase morrido com o último, tiveram que remover seu útero. Seu marido então a xingava de velha seca e dizia que ela não era mais mulher, pois havia perdido sua utilidade como fêmea, que é ter filhos. 

Connie se recorda de, com quinze anos, discutir com sua mãe:
"Não vou crescer para ser como você, mama. Para sofrer e servir. Nunca para viver a minha própria vida. Não vou!"
"Você vai fazer o que as mulheres fazem. Você vai pagar sua dívida para a sua família através do seu sangue. Que você ame os seus filhos tanto quanto eu amo os meus."
"Você não ama nós meninas do mesmo jeito que você ama os meninos! É tudo pro Luis e nada pra mim, sempre foi assim."
"Nunca erga sua voz pra mim. Vou contar para o seu pai." [...]
"Vou conseguir uma bolsa e fazer faculdade. Não vou me deitar e ser enterrada na rotina da família, família, família! Estou tão cansada dessa palavra, mama! Nada na vida que não seja ter filhos e cozinhar e cuidar da casa. Mamacita, acredite em mim, me escute -- eu te amo! Mas eu vou viajar. Eu vou ser alguém!"
"Não há nada para uma mulher ver que não seja encrenca."

A Connie internada no manicômio de fato "viaja". Começa a conversar com Luciente, uma jovem que vem do futuro (aproximadamente 2137). Nesta utopia, parece que o mundo regrediu. Somos informadxs, sem muitos detalhes, que as cidades grandes não deram certo. As pessoas agora vivem em vilas agrárias auto-sustentáveis, sem crimes ou preconceitos. Usa-se energia solar. A linguagem foi modificada para que os pronomes de gênero não existam mais (usa-se “per”, de person, em vez de he ou she). A reprodução é controlada, e uma criança só nasce quando alguém morre. 

O modo que esse mundo do futuro arranjou para acabar com as diferenças de gênero foi acabar com a reprodução. Agora sexo é só por prazer, e ninguém é de ninguém. Reprodução é através de proveta, em úteros artificiais, mas cada criança tem três “mães”, homens e mulheres. Todos amamentam. Ainda existem homens e mulheres, mas as diferenças são mínimas, e a aparência da maioria é andrógina. 

As crianças pertencem à comunidade, não a indivíduos (o pesadelo dos reaças). Não há escolas. As crianças aprendem no dia a dia. Tudo é resolvido coletivamente em reuniões. Pessoas usam uma espécie de computador portátil para se comunicar e guiar. A ciência é desenvolvida, mas empregada apenas quando há benefícios para todos. Não há conceito de propriedade. Não existem carros. É quase um paraíso hippie. É interessante porque Connie não gosta desse mundo. Pra ela, parece o México pobre da sua infância. Ela também, ao pensar no futuro, imaginava montes de naves espaciais e viagens rotineiras à Marte. Mas não. A utopia futurista, de acordo com Marge Piercy, é um mundo sem pobreza e preconceito.

Porém, em Mulher à Beira do Tempo, esta utopia não está definida. Há capitalistas lutando para reverter a situação, e as pessoas devem prestar serviço militar para defender sua utopia.

Há um momento em que Connie vai parar num futuro alternativo, uma total distopia. Nele, ela conhece uma mulher que é o estereótipo físico da feminilidade, alterada por cirurgias para acentuar suas características sexuais. com todas as curvas realçadas. Neste mundo, Gildina é uma “fem”. Ela vive presa no subterrâneo num quarto sem janelas, só com imagens holográficas. Nunca viu o céu, até porque no subterrâneo ele não existe -- só há poluição e gases tóxicos. 

As pessoas ricas, uma minoria, moram em cima, e vivem muitos anos. As pobres têm seus órgãos usados como transplantes e morrem antes dos 40. Comem alimentos com sabor artificial, que vem em tabletes. As mulheres são mantidas em cativeiro sexual, constantemente usando drogas. Para se distrair, essas mulheres miseráveis assistem filmes pornôs em casa cujo roteiro é sexo, estupro, tortura e mutilação. 

O foco de Mulher à Beira do Tempo não é essa distopia, que dura poucas páginas. É a utopia mesmo. No entanto, caso o sonho do mundo perfeito não estivesse agradando o suficiente, é só ver a distopia para se dar conta da alternativa. E lamento que, hoje, boa parte das mulheres estejam mais próximas da distopia do que da utopia sonhada por Piercy. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário