Não é novidade que as mulheres, ao adentrar no campo da maternidade, são colocadas em dois eixos opostos: deusas da criação ou demônias desnaturadas. No final das contas, o que geralmente temos na dada representação é o de vítima do patriarcado, da imagem de perfeição, imaculada e um tanto bíblica, que ao não ser alcançada, é massacrada. Se a arte imita a vida e a vida imita a arte, precisamos saber o resultado dessas influências. Será que as mães no cinema ainda são romantizadas e cheias de clichês?
Existe uma abrangência muito grande ao abordar o tema, afinal, cinema não se resume a Hollywood. Mas fato é que boa parte das produções acabam se expandindo a partir da gigante indústria norte americana, resultando em fórmulas um tanto hegemônicas de representação. De uma maneira ou de outra, as associações entre ficção e realidade sempre pairam sobre as mentes dos espectadores e com certeza o assunto maternidade já entrou nos níveis de comparação.
Existe uma abrangência muito grande ao abordar o tema, afinal, cinema não se resume a Hollywood. Mas fato é que boa parte das produções acabam se expandindo a partir da gigante indústria norte americana, resultando em fórmulas um tanto hegemônicas de representação. De uma maneira ou de outra, as associações entre ficção e realidade sempre pairam sobre as mentes dos espectadores e com certeza o assunto maternidade já entrou nos níveis de comparação.
Porém, no mundo tangível, as mães não podem se cansar de ouvir palpites, de terem suas escolhas questionadas o tempo todo, de julgamentos - inclusive dos próprios filhos -, de serem compreensivas, amáveis, dedicadas, pacientes, sorridentes, de trabalhar fora e dentro de casa. Não faz muito tempo que, se reclamavam da maternidade, eram repreendidas ou rechaçadas. Ainda são, aliás.
Aos poucos, as matriarcas vão se rebelando contra essa aura angelical, jogando a real, abrindo o coração e fechando feridas. O acolhimento, a empatia e a sororidade de outras mulheres são fundamentais na missão de assumir a verdade, proporcionando um caminho sem volta a partir de agora. Na sétima arte e na imensa gama de filmes familiares, o caminho é de livre interpretação e criação, mas poderia colaborar mais com essa conquista.
A gente sabe, é complicado ser Susan Sarandon nos papéis de Michaela (“O Óleo de Lorenzo”) e Jackie (“Lado a Lado”), dedicados a duas mães batalhando contra enfermidades, por exemplo. Ou Björk como a guerreira Selma, em “Dançando no Escuro”, e Julia Roberts como Erin Brockovich, que extrapola a barreira fictícia, porque essa mulher existiu mesmo. São frágeis e, ao mesmo tempo, poderosas. Há uma beleza em ver os dramas, os sacrifícios e as superações das mães-coragem no cinema porque sabemos da existência delas fora das telonas e as admiramos. Mas nem todas são assim, não estão próximas da perfeição e nem precisam entrar na cobrança de abdicar de si mesmas para cuidar do outro.
“Não existe uma linha evolutiva, mas acho que houve representações interessantes e não interessantes em diferentes momentos da história do cinema”, contou ao Hypeness Luísa Pécora, criadora e editora do site Mulher no Cinema. “Há espaço para muita melhora no que diz respeito à representação da mulher de forma geral, o que sem dúvida se aplica também ao caso específico das mães, que são para muita gente o tipo mais ‘sagrado’ de mulher“. Para ela, a questão não é a discussão de caráter das personagens, mas sim torná-las mais complexas e bem desenvolvidas, deixando de lado os extremos entre mãe-boa e mãe-má, que podem ser caricatas ou simplesmente repulsivas mesmo.
Resiste uma ideia de que as personagens femininas em geral, e as mães em particular, têm de ser simpáticas aos olhos do público. Mas só a variedade de representação combate o estereótipo.
Pode parecer simples, mas mostrar que mães são, acima de tudo, mulheres com vontades, sonhos, carreiras, entre outras coisas, é fundamental para o imaginário popular. Ainda estamos num momento em que mães se tornam seres invisíveis até mesmo em seu próprio universo. Não são notadas como humanas, cidadãs do mundo, mas só como mãe mesmo, devidamente colocadas numa caixinha. Mãe não é prioridade, é quem prioriza. Com sorte, consegue desfrutar da fila preferencial em algum estabelecimento. E mãe quase sempre não tem escolha, de nada. Quando tem, sempre será julgada por isso. Em vários países, ela não pode nem escolher se vai ou não ter um filho caso engravide.
Com exceção dos documentários, a imagem projetada no meio cinematográfico (e também literário) por vezes respinga na realidade e é exatamente por isso que não podemos viver de contos de fadas. Cadê os momentos de frustração destas mulheres por não conseguirem seguir seus sonhos ou por não ter um parceiro que realmente cumpra o papel de pai? Cadê o puerpério, que muita gente ainda nem sabe o que é? A depressão pós-parto? A violência obstetrícia? As mães ainda choram baixinho, sem colo para ampará-las.
Há tanta complexidade na função, tanta intensidade, que não condiz com temas rasos. E todos esses assuntos são imensamente importantes de serem abordados, para que se sintam cada vez mais confortáveis, acolhidas, ouvidas e representadas. Porque “mãe é mãe”, mas todas elas são plurais.
Se tudo isso parece feio e triste, não pode fazer parte desse momento mágico que é dar a luz, né. Errado! As pessoas simplesmente precisam saber como lidar com questões femininas, para criar empatia e tirar a visão maternal infantil que cobre seus rostos. Os filhos, quando em idade mais avançada, também não devem ser poupados de informações. São coisas que fazem, ou deveriam fazer, parte da educação mesmo, porque no fundo, se você não for mãe ou uma pessoa muito interessada no tema maternidade, estará fadado à ignorância em relação a este universo tão particular e poderoso.
Mães fora da caixa
Dentro das produções cinematográficas dos últimos 10 anos, vale recordar de Tilda Swinton em “Precisamos Falar Sobre Kevin“. Atuando como Eva, deixa de lado a carreira e suas ambições ao ter uma gravidez indesejada. A partir de então tem uma relação difícil e decepcionante com o primeiro filho, que é um futuro psicopata. A medida em que o menino cresce e a rejeita, nem o diálogo era possível, as tentativas eram exaustantes. No fundo da história, ela estaria sofrendo as consequências por não se conectar com o filho cruel.
Desde a infância do garoto, a responsabilidade e culpa pelo comportamento bizarro dele acaba recaindo sobre Eva, como uma punição. Mas no final de tudo, é ela que permanece ao lado de Kevin, no horror e na tristeza, porque as alegrias foram muito passageiras. Depois de uma descarga emocional tão grande, deveria ir correndo para a terapia, mas nem esse apoio ela tem. Ao menos espera-se que as pessoas notem o quão desesperador é estar em sua pele, numa situação que foge completamente de seu controle.
Já Uma Thurman deu vida à Eliza na “comédia”, com muitas aspas, “Uma Mãe em Apuros“. O que era para ser engraçado e supostamente bonitinho é a imagem da mãe multitarefas, politicamente incorreta, de pernas para o ar, numa bagunçada rotina cosmopolita. Ela tenta conciliar os afazeres familiares, domésticos e profissionais, porém tem de se desdobrar o tempo inteiro com os imbróglios do dia a dia. Mesmo bem humorado, é no imenso caos e vazio que mora a melancolia da história, porque na verdade acaba refletindo no quão solitária é uma mãe solo. Detalhe: ela tem marido, que por acaso é pai de seus dois filhos, mas sequer parece estar lá. Eliza é carregada de falhas e, por isso, desagrada. Mas ao mostrá-las, acaba ganhando empatia do público que se identifica com ela.
Dirigida por Jason Reitman, o mesmo de “Juno“, que também tem seus méritos, “Tully” é uma das obras primas mais brilhantes da atualidade. Na comédia dramática, vemos Charlize Theron num papel genial e angustiante. Mãe de dois filhos e com a terceira pronta para pular da barriga a qualquer momento, Marlo revela os desequilíbrios constantes da tarefa materna, numa montanha russa de emoções. Em alguns momentos, nós como espectadores também queremos explodir, simplesmente, para nos livrarmos da carga babélica em cena.
No meio da história entra Tully, uma babá que faz questão de ajudar Marlo nas funções maternas e do lar, sempre incentivando o autocuidado, o olhar para si mesma. Não houve a necessidade de romantizar nem um pouquinho a situação para mostrar que, apesar de tudo, ela é sim uma excelente mãe. O filme consegue ser bom do começo ao fim, mas o desfecho da história é tão surpreendente que fica impossível não pensar em todas as questões acerca da maternidade e, principalmente, do quão fundamental é ter apoio.
Luísa comenta sobre outros bons exemplos do cinema recente na construção das personagens femininas. “Acho muito bonita a forma como Lady Bird mostra a complexidade da relação de mãe e filha de modo que a todo momento você consegue entender as duas, ainda que não concorde com elas”. O argentino Minha Amiga do Parque, dirigido pela Ana Katz, também entra na lista. “Conta a história de uma mulher que cuida sozinha do bebê bem pequeno enquanto o marido trabalha em outro país. Um dia, no parque, ela faz amizade com uma mulher de outro contexto, inclusive social, e que representa para ela um mundo diferente, uma possibilidade de aventura. Acho que é um filme que mostra bem as diferentes emoções damaternidade“.
Há também os longas que juntam uma porção de tipos de mães, para que elas não necessariamente se comparem, mas se unam nas dores e delícias da maternidade. “Perfeita É a Mãe!“, “O Maior Amor do Mundo” e “O que esperar quando você está esperando” são alguns exemplos de comédias leves, sem dramalhões, mas com doses de verdade.
Enquanto isso, o filme independente “Mother of George“, do nigeriano Andrew Dosunmu, mostra outro lado: a cobrança para ser mãe e a ausência de fertilidade. Nesse caso, acompanhamos o sufocante e doloroso dilema de Adenike para não apenas ser reprodutora, mas gerar um filho homem, conforme manda a tradição da etnia do marido, Adenike. A pressão é alimentada pela família, especialmente pela sogra, Ma Ayo Balogum. Impossível não debater sobre legado do patriarcado, derramado sobre as mulheres como um câncer.
Na cultura pop, quem marcou um bocado de gente enquanto esteve no ar foi Lorelai Gilmore, da série Gilmore Girls, que serviu de referência para várias outras mulheres ao redor do mundo, pois não abdicou de si mesma e ainda assim construiu uma amizade com a filha Rory, fruto de uma gravidez adolescente. Luísa recorda que “ela continuava sendo também uma pessoa, um ser humano com sonhos, ambições, sexualidade, namorados“. O protagonismo feminino foi vanguardista para a TV na época, colocando os devidos méritos na série que rompeu certos padrões.
Os laços entre ambas se assemelha mais ao de algumas pessoas reais, acionando a memória afetiva e empatia das espectadoras. Ao mesmo tempo, segue a linha da expectativa da própria sociedade em relação a uma mãe e filha, criando uma idealização. Ou seja, se você não teve esse tipo de ligação com a sua mãe, pode acabar desapontada.
Porém, do outro lado está Emily, a mãe de Lorelai e avó de Rory. Ela se destacou como uma personagem mais “fora dos eixos” esperados, com quem a filha divide conflitos mais intensos, mantendo uma ligação passiva agressiva. Na retomada da série, feita pela Netflix, as duas enfim vão para a terapia para amenizarem suas tensões e se curar dos abusos emocionais, mostrando que as personagens também evoluíram na busca de uma coexistência saudável. “Acho que parte do apelo da série estava no fato de ela ser centrada em dois convívios muito distintos entre mãe e filha. Isso ajudava a mostrar a complexidade desta relação e o quanto ela pode ser variada. Não há um tipo único de mãe ou de mulher, e é sempre interessante quando a produção audiovisual reflete isso“, argumentou Luísa.
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