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domingo, 15 de setembro de 2019

Uma cientista pela Amazônia



09 SET 2019

Em tupi-guarani, Moju quer dizer “rio das cobras”. É também o nome de um município de 80 mil habitantes no nordeste do Pará, a 61 quilômetros de Belém. Abriga, em sua maioria, áreas de floresta. Ali vivem também povos indígenas e uma comunidade quilombola. A maioria dos moradores vive do plantio de açaí e da cultura da mandioca. Os fazendeiros extraem madeira e dendê. Nos últimos meses, Moju vem ardendo, não só pelas chamas que devastam a mata, mas também pelos ventos que aniquilam sonhos.

Com quase 10 mil quilômetros quadrados, Moju tem 210 escolas. Nelas funciona uma rede de apoio à pesquisa científica para crianças e adolescentes fundada nos anos 90 chamada Clube da Ciência,que se estende a todo estado. Coordenada por professores da rede pública, incentiva os alunos a fazer pesquisa científica onde, graças a falta de estrutura, menos se espera que ela possa prosperar. Estima-se que 1800 crianças já passaram pelo projeto. Sem nenhum incentivo financeiro público ou privado, os experimentos costumam ser feitos nos quintais das casas dos alunos.
Na semana passada, conheci uma professora de química que luta para manter de pé um laboratório sem ventilação e com substâncias vencidas para que seus alunos possam pesquisar – e sonhar com um futuro promissor para si próprios e para suas comunidades. Danielle Siqueira nasceu e cresceu em Moju, tem 38 anos e ela mesma frequentou o Clube de Ciências quando estudante. Isso porque sua mãe, a também professora Rachel Siqueira Pereira, foi uma das acadêmicas por trás da iniciativa. “Quando eu era pequena sentia muita falta dela, mas sempre soube que era um grande projeto”.
Há alguns anos, Rachel chamou a filha e contou-lhe um sonho. Um homem em um jaleco branco, dentro de um laboratório, colocava uma moeda de ouro em sua mão. “Ela entendeu como um prenúncio de que um dia a ajuda financeira que tanto pedia viria e por isso nunca desistiu de batalhar pelo Clube”, conta Dani, que a exemplo da mãe, formou-se em pedagogia, fez mestrado em química e hoje dá aulas nos Ensinos Fundamental e Médio em Moju. Mãe de quatro filhos,  também é “aquilombada”, como diz em suas próprias palavras. “Tenho raízes lá, mas meu marido é quem nasceu na comunidade”.
A mãe de Danielle, Rachel, morreu subitamente de um infarto no começo de 2017. A tristeza e o luto serviram de combustível para a filha dar continuidade ao projeto. Naquele mesmo ano, entrava na sua sala de aula um presente do destino, uma adolescente chamada Francielle Barbosa. “A Fran fazia experimentos desde pequena. Chamei ela para fazer um projeto porque me sentia em dívida com a família dela”, conta Dani e explica: quando criança, Fran ganhou uma bolsa de iniciação científica do CNPQ, entidade ligada ao ministério da educação de estímulo à pesquisa. Para poder recebe-la, precisava organizar seus documentos e mandar as informações pela internet. “Ficamos sem sinal e ela perdeu a bolsa. O avozinho dela, que a cria, vinha sempre me perguntar dos R$ 100 que seria de muita ajuda. Quando ela chegou no Ensino Médio, vi uma oportunidade”.
Com a mentoria da professora, Fran desenvolveu um tijolo a partir da semente do açaí, um baita problema ambiental na região. Descartadas em grandes quantidades, os caroços assoriam rios e chegam até a causar explosões por causa dos gases da decomposição. Para que a menina pudesse apresentar o projeto em uma feira de ciências na USP, onde ganhou 13 prêmios e uma bolsa para conhecer o MIT, Danielle fez ela própria um empréstimo. Hoje, Fran também faz parte de reuniões na ONU Mulheres.
Fran nasceu em um bairro pobre de Maju chamado Paraíso. Para fazer o experimento, carrega ela própria as sementes de açai em um carrinho de mão. Depois, joga o material no chão e, com a ajuda da irmã mais nova, pisoteia-o. No mesmo chão de terra batida, faz uma fogueira com a pasta. Dali sai o material que compõe tijolos e chamou a atenção dos pesquisadores de Harvard, onde ela esteve este ano para contar do projeto.
Professora e aluna sonham com um futuro de pesquisa acadêmica, uma carreira ameaçada pelos recentes cortes na educação no Brasil*.
“Fazemos Ciência com muito pouco material e sem nenhum dinheiro. Meu laboratório não tem exaustor, por exemplo”, me disse Dani, em um café que tomamos na semana passada em São Paulo, onde ela estava para acompanhar Fran em mais uma maratona científica. "Mas a Ciência é um movimento, não se faz sozinho. Tenho muito medo do que está por vir", diz.
Durante a conversa, Dani frisou que o Clube de Ciência oferece uma perspectiva de futuro para as crianças, as tira da vulnerabilidade e impede até mesmo que sejam alvos de exploração sexual. Falou ainda que boa parte da pesquisa que os alunos desenvolvem só pode ser feita com a floresta de pé. O incentivo à pesquisa é, além de um caminho de desenvolvimento social, uma maneira de manter a Amazônia preservada. No fim da conversa, pergunto para Dani se há algum projeto que já tenha estudado as cobras dos rios de Moju. Com um sorriso, ela diz que não conhece, mas que é uma boa ideia. Juntas, torcemos para que ela possa colocar esse plano em prática antes que as chamas do obscurantismo invadam a região.
*Na semana passada, o ministro da Ciência e Tecnologia disse que já não tem mais dinheiro para pagar bolsas de pesquisa científica este mês. Para fechar as contas do mês, vai remanejar R$ 82 milhões. Para outubro, não há pagamento garantido. Em 2019, a Capes, fundação ligada ao Ministério da Educação responsável pelo fomento da pós graduação no Brasil, cortou 11.800 bolsas. No CNPQ há uma ameaça do não pagamento das 80 mil bolsas que a instituição concede. Os pesquisadores já falam em apagão na ciência. Para saber mais sobre os impactos dos cortes para o país, ouça o podcast do jornal O Globo.

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