07.03.18
Ainda eram os anos 1990 quando o jornalista Xico Vargas (1945–2015) publicou na revista Veja Rio uma reportagem mostrando a rotina de guerra dos cirurgiões do hospital Souza Aguiar, à época dotado de uma capacidade inédita: lidar com ferimentos por balas de fuzil. A rotina da guerra havia invadido o centro cirúrgico. A história das habilidades extraordinárias desses médicos me voltou à memória lendo Psychopathologie des violences collectives – essai de psychologie géopolitique clinique (Psicopatologia das violências coletivas – ensaio de psicologia clínica geopolítica), de Françoise Sironi, ainda sem tradução no Brasil, publicado na França pela editora Odile Jacob.
Se os médicos da rede pública carioca precisaram desenvolver novas técnicas para enfrentar aquilo que só haviam ouvido falar que existia em zonas de guerra, é porque os traumas produzidos pela experiência cotidiana na cidade do Rio de Janeiro exigem de fato habilidades muito específicas. Hoje uma outra guerra é travada na rede pública de saúde: mulheres que chegam aos hospitais em processo ou com sequelas de abortamento e estão sendo denunciadas à polícia e, em pelo menos 75 casos acompanhados pela Defensoria Pública, presas.
O livro de Sironi trabalha com uma ideia cara a quem vive no Rio de Janeiro: as violências da nossa história coletiva têm impacto sobre a psicologia singular dos indivíduos e produzem sofrimentos psíquicos, psicopatologias e sociopatologias carregadas de consequências individuais e coletivas. A autora está pensando num ponto de encontro entre sofrimento psíquico e política e no que nos acontece, como sociedade, quando o trauma é coletivo. Exemplos não faltam à escritora francesa: as mortes nas guerras europeias são, para ela, fonte importante de pesquisa e debate.
Já eu gostaria de fazer Sironi se encontrar com uma realidade muito específica do Rio de Janeiro, a atuação das forças policiais, termo com o qual pretendo englobar todas as esferas de poder militar que nos cercam e nos constrangem. Numa primeira leitura, é muito fácil conectar os diagnósticos da psicóloga francesa com os tanques do Exército que estão todos os dias em pelo menos dois lugares: as áreas mais pobres da cidade e as capas de jornais. A convivência com o “cenário de guerra”– as aspas são indicação de que compartilho muitas das críticas a essa denominação – facilita a associação com os relatos do livro sobre os traumas provocados por guerras como Vietnã, Argélia, Afeganistão, Iraque ou Balcãs.
Contrariando o que escreveu a russa Svetlana Aleksiévitch, autora de A guerra não tem rosto de mulher (Companhia das Letras, tradução de Cecília Rosas), há no Rio de Janeiro uma guerra muito específica que tem o rosto das mulheres que recorreram ao serviço de saúde em situação de abortamento e acabaram presas.
A pena prevista no artigo 124 do Código Penal para uma mulher que provocou a interrupção da própria gestação é de um a três anos de prisão. Há também penas previstas para médicos ou auxiliares de saúde que tenham participado do procedimento, para companheiros ou cônjuges que tenham imposto a realização do abortamento e para acompanhantes em clínicas clandestinas. Dos processos analisados pela Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em 20 deles as mulheres chegaram à rede pública de saúde com complicações – a maioria resultado de ingestão de chás abortivos ou medicamentos mal administrados – e foram denunciadas pelo próprio hospital aos quais precisaram recorrer.
Saindo dos números para o perfil individual de cada uma dessas mulheres, o estudo da Defensoria mostra que são mulheres principalmente negras, de baixa escolaridade, na maioria jovens e solteiras, subempregadas ou desempregadas. É dirigida a essas mulheres a guerra contra a descriminalização do aborto, com todas as suas idas e vindas no Legislativo e no Judiciário, seus retrocessos formais servindo de pano de fundo para justificar a solução penal para um trauma social, se eu quiser aqui retomar o argumento de Françoise Sironi e classificar como traumática toda violência que, em nome da política, é praticada pela polícia.
Se por um lado tivemos um governador capaz de afirmar que as mulheres pobres eram “fábrica de marginais” (se depois ele foi capaz muitos outros absurdos é outro problema), por outro temos essas mesmas mulheres pobres, já constrangidas pela situação precária em que vivem, sendo denunciadas e presas quando recorrem, em situação de extrema vulnerabilidade física e emocional, à rede pública de saúde (há registro de apenas um caso de denúncia em hospital particular). A maternidade, essa categoria tão mistificada na vida cultural e social, é fonte dos traumas de guerra, seja para as inúmeras mães que perderam seus filhos assassinados pela polícia, seja por aquelas mulheres que, diante da decisão de não querer ter um filho, o único dispositivo estatal que se lhe apresenta é essa mesma polícia.
Carla Rodrigues é professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ. Fez especialização, mestrado e doutorado em Filosofia na PUC-Rio e pós-doutorado no IEL/Unicamp. É coordenadora do laboratório de pesquisa Escritas - filosofia, gênero e psicanálise.
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