As redes sociais deram mais espaço às mulheres para discutir igualdade de direitos. Ao mesmo tempo, amplificaram críticas baseadas em senso comum contra o feminismo. A filósofa Djamila Ribeiro comenta uma a uma.
DW
08.03.2018
Meyre Brito
DW
08.03.2018
Meyre Brito
Em 2018 a luta pela igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres ainda está longe do fim em muitas partes do mundo, conforme mostram estudos de diversos órgãos internacionais. Na internet, ao discutir sobre esses temas, as mulheres precisam lidar com mais um inimigo: os trolls. Com frequência, debates em prol da igualdade e pelo fim da violência contra a mulher esbarram em uma enxurrada de comentários que relativizam as reivindicações feministas.
No dia internacional da mulher, a DW Brasil convidou a jornalista e filósofa Djamila Ribeiro a comentar os principais clichês antifeministas que se espalham pelas redes sociais. Mestre em Filosofia Política pela Unifesp, Djamila é considerada uma das maiores protagonistas do feminismo no Brasil na atualidade e já falou para plateias de universidades como Harvard e Oxford e tem palestras programadas em Londres e Frankfurt.
"As mulheres ganham menos porque escolhem áreas mal remuneradas. A maioria não opta, por exemplo, por engenharia."
Djamila Ribeiro: A pessoa que diz isso está desinformada. É um senso comum que não faz uma ligação histórica. Desde muito cedo, existe toda uma imposição para a mulher fazer o trabalho doméstico. Além disso, tem uma construção de que mulheres não são boas nessas áreas. Na verdade, não existem as mesmas oportunidades sociais. E quando as mulheres acabam não ocupando essas áreas, eles querem naturalizar essa diferença em vez de entender que existe uma opressão anterior que as impede de ter as mesmas oportunidades de acesso a esses espaços. As mulheres ganham 30% a menos do que os homens, mesmo ocupando a mesma função. Quando falamos de desigualdade salarial, falamos sobretudo de mulheres que estão ocupando os mesmo cargos e ganhando menos, mesmo muitas vezes tendo mais escolaridade.
"O que está em jogo em cargos de chefia é a capacidade. Não tem que ser contratado quem é mulher, mas quem é melhor."
Então, como a grande maioria dos cargos de chefia é ocupada por homens, eles querem dizer com isso que são naturalmente superiores e que as mulheres não têm capacidade para ocupar esses espaços? É preciso entender como as desigualdades estão postas como gênero. Não somos nós quem estamos falando. Pesquisas mostram que o fato de ser mulher significa que vamos ter uma imposição maior de trabalhos domésticos, vamos receber menos. Então, se não forem criados espaços para que a mulher possa mostrar a sua capacidade, só vamos ter um ambiente masculino. Estive na Noruega no ano passado. Eles têm uma lei de cotas de 40% para mulheres em cargos de chefia nas companhias nacionais. O político que criou essa cota é do partido conservador. Um dos argumentos dele foi: se não criássemos essa cota, só iríamos contratar os homens que jogam golf comigo nos finais de semana. É isso que os homens não entendem: você acaba vivendo num mundo de privilegiados sem a convivência com pessoas diversas e acaba assumindo naturalmente que aquelas pessoas são as únicas capazes de assumir tais espaços.
"O feminismo quer destruir os papéis tradicionais dos gêneros e dos valores da família nuclear. Quando o pai e a mãe são trabalhadores bem sucedidos e ocupados, não sobra ninguém para cuidar bem das crianças."
A gente ainda precisa do homem para ter filhos, ainda não engravidamos por vírus, então, por que a responsabilidade da criação do filho tem de ser mais da mulher? Essa função deveria ser distribuída igualmente entre homens e mulheres. Colocar isso como uma função da mulher é mais uma maneira de naturalizar um lugar que não tem nada de natural. Naturalizar isso é imbecilizar o homem, colocá-lo no lugar de uma pessoa que não pode ser responsável por outro ser humano. Me recuso a imbecilizar o homem dessa maneira. As feministas não estão impondo nada. As feministas estão lutando pelo direito à escolha. Se a mulher quiser ser dona-de-casa, não é um problema. O problema é quando a mulher sequer tem a opção de dizer se quer ou não algo. O problema é que, na verdade, a mulher não tem as mesmas oportunidades. Se ela decidir por trabalhar, deveriam existir creches suficientes para acolher as crianças.
"A justiça tem privilegiado mulheres em disputas legais do tipo custódia das crianças em caso de divórcio."
Na maioria das vezes, a criança acaba ficando com a mãe justamente por conta de toda essa construção de que a mulher tem de cuidar do filho. Num país onde cerca de cinco milhões de crianças sequer têm o nome do pai na certidão de nascimento. Os homens abrem mão da função de ser pai porque entendem que ela é majoritariamente da mulher. Aí, quando a Justiça decide dar a custódia da criança à mulher, eles se vitimizam.
"As 'feminazi' pregam o ódio ao homem."
Comparar o feminismo ao nazismo já mostra o distanciamento histórico da pessoa. Comparar o assassinato de pessoas que foram mandadas vivas às câmaras de gás com um movimento que luta pela igualde de direitos é uma ignorância. Não pregamos ódio aos homens de forma alguma, pregamos é que se acabe o ódio às mulheres em uma sociedade em que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada e, a cada cinco, uma mulher é agredida. É justamente ao contrário, lutamos para que a mulher possa viver em uma sociedade onde a violência não seja a regra.
"Elas dançam 'funk da Valesca', desfilam seminuas e depois reclamam de serem vistas como objetos."
A mulher tem o direito de fazer o que quiser com seu corpo, desde que seja da vontade dela. Se a mulher sensualizar, ela não está necessariamente se objetificando, mas está se divertindo. Ser objetificada é exatamente o contrário: é quando somos colocadas nesses papéis sem a nossa vontade. Quando andamos na rua e somos assediadas ou quando estamos em determinados espaços e somos tratadas de uma maneira reduzida ao nosso corpo. O homem só se incomoda com o prazer feminino quando é a mulher que tem o poder sobre isso, quando ela age assim sem se preocupar com o que vão pensar dela. Já quando ela é colocada para consumo masculino, como por exemplo, em revistas, eles não se incomodam. O incômodo não é com a mulher como objeto em um país onde os homens consomem pornografia absurdamente, mas sim com a decisão dela de agir como quiser.
"Foi estuprada porque provocou."
Quem diz isso desconhece os dados. Como feministas, temos de lutar contra o machismo e contra o ‘achismo'. ‘Achar coisas' sobre fatos históricos é permanecer no senso comum e, inclusive, na burrice. Estamos falando de pesquisas: a cada 11 minutos uma mulher é estuprada pelo simples fato de ser mulher, pelo simples fato de estar na rua, no transporte público, indo trabalhar. Não é a roupa que determina isso, mas justamente o olhar do homem ao tratar a mulher como propriedade. É um argumento que primeiro culpabiliza a mulher e que, segundo, animaliza o homem.
"Em casos de assédio sexual, quando é quase impossível para um acusado provar sua inocência, a Justiça está favorecendo a mulher."
Então eles precisam mostrar dados, pesquisas. Senão é só 'mimimi machista'. Na verdade, as pesquisas mostram que na grande maioria dos casos o que acontece é que mulheres são vitimadas pelos homens. Para usar um argumento desses, é preciso apresentar dados. Segundo a campanha "Chega de Fiu-fiu", da ONG Think Olga, as mulheres começam a sofrer assédio aos 11 anos de idade ao andar na rua, elas sequer têm o direito ao espaço público.
"As feministas querem trocar chefe por chefa, mas não pensam em trocar jornalista por jornalisto. Por que mudar a língua?"
As pessoas não se questionam que a linguagem é totalizante do masculino. Se estudarmos o próprio [Ludwig] Wittgenstein, filósofo austríaco, ele dizia que a linguagem cria formas de vida. Ela não é meramente um amontoado de palavras. Não nos questionamos por que se houver um homem numa sala com cinco mil mulheres, a flexão de gênero vai ser para o masculino. Não percebemos o quanto a linguagem é pensada de forma a criar o mundo. E quem pensa esse mundo? Geralmente, é o homem branco, europeu. Mas precisa ser feito com inclusismo.
Não concordo com essa coisa da letra "X" no lugar do "A" porque se tornam palavras ininteligíveis. Prefiro usar palavras neutras, como "pessoas" ou "eles e elas", do que usar uma linguagem que sobretudo dificulta o entendimento pra quem tem algum tipo de deficiência. Isso também dificulta o diálogo com quem não é da militância e acabar por não acompanhar sobre o que estamos falando. Mas é necessário, sim, repensar a linguagem não apenas na questão ortográfica, mas como algo que cria formas de vida e que faz com que a gente pense o mundo a partir de uma perspectiva.
"Para competir com os homens, algumas mulheres estão se 'masculinizando', perdendo a identidade."
Muitas mulheres, sobretudo de outras gerações, elas se viam obrigadas a se "masculinizar" — bem entre aspas esse "masculinizar" — para poderem ser respeitadas num ambiente corporativo ou num cargo de chefia. Como "femininas", elas acabavam sendo discriminadas. Muitas usaram isso como uma defesa. Agora, essa é uma maneira "construída como masculina", porque isso de masculino e feminino é construído. Essa é mais uma tentativa de uniformizar as mulheres, de nos colocar num lugar de apenas uma expressão, de um feminino. Um lugar que, dentro dessa lógica machista, é um feminino submisso, um feminino muitas vezes fútil, mais uma vez, dentro dessa visão machista. Essa é mais uma tentativa de nos impor qual é o feminino que eles querem para nós, qual é o feminino que os agrada. E isso não nos interessa.
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