Estudos abrangem dois vieses: o quantitativo – com levantamento em estados e municípios brasileiros – e o qualitativo, que objetiva identificar os feminicídios ocorridos em Porto Alegre com base em inquéritos policiais
UFRGS
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27 de outubro de 2017 · Reportagem: Camila Raposo
O Brasil é o quinto país em que mais se matam mulheres, com uma taxa de 4,8 homicídios para cada 100 mil – atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). De acordo com o Mapa da Violência, entre 1980 e 2013, 106.093 mulheres foram assassinadas no país, num ritmo crescente ao longo do tempo. O número de vítimas passou de 1.353 em 1980 (quando a taxa era de 2,3 por 100 mil) para 4.762 em 2013 – um aumento de 252%. O relatório traz dados gerais, não especificando as circunstâncias em que os crimes ocorreram, mas, com base em levantamentos realizados no Brasil e em outros países, estima-se que entre 60% e 70% das mulheres assassinadas tenham sido vítimas de feminicídios – crimes de ódio baseados em gênero: ou seja, foram mortas unicamente pelo fato de serem mulheres. Mas, afinal, quem são elas?
Ter a resposta a essa pergunta é um passo importante para o combate a esse tipo de crime. Como salienta a professora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRGS Stela Meneghel, é preciso que os profissionais da segurança e da saúde sejam capazes de identificar mulheres em risco e intervir rapidamente quando necessário. Conforme a professora da Universidad Nacional de Colombia Dora Munevar, citada em um dos artigos do qual Meneghel foi coautora, para fazer frente aos feminicídios, é preciso realizar as ações de nomear, visibilizar e conceituar as mortes violentas de mulheres. É preciso também dispor de informações fidedignas para o monitoramento dos feminicídios em um território.
Para colaborar com essa questão, Meneghel e seu grupo de pesquisa vêm, nos últimos anos, realizando uma série de estudos que buscam identificar onde ocorrem os assassinatos baseados em gênero e quais os fatores que colaboram para a vulnerabilização das mulheres. Entre eles, destacam-se os levantamentos das mortes femininas por agressão nos estados, nos municípios brasileiros de mais de 400 mil habitantes e nas microrregiões do Rio Grande do Sul e uma pesquisa qualitativa com vistas a identificar os feminicídios na cidade de Porto Alegre.
Os levantamentos consistiram em pesquisas quantitativas realizadas com base no Sistema de Informações sobre Mortalidade do Datasus. Como nem o sistema nem os atestados de óbito informam se houve feminicídio ou trazem informações sobre o responsável pelo crime, os pesquisadores optaram por trabalhar com o total de homicídios femininos como um indicador da quantidade de feminicídios. Os dados foram correlacionados com uma série de indicadores demográficos, socioeconômicos e de saúde.
Os levantamentos indicaram que, entre 2003 e 2007, ocorreram quase 19,5 mil mortes de mulheres por agressão no país – o que dá um índice de 4,1 para cada 100 mil. A maioria era solteira e com baixa escolaridade, e mais da metade, negra. Aproximadamente 20% eram crianças ou jovens com menos de 20 anos, e cerca de um terço das mortes ocorreu na casa da vítima, o que indica que foram causadas por alguém próximo e que provavelmente se tratam de feminicídios. Espírito Santo, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Pernambuco foram os estados que apresentaram maiores taxas de homicídios de mulheres.
No mesmo período, o Rio Grande do Sul apresentou média de mortes femininas por agressão menor que a do país – 3,1 óbitos para cada 100 mil. As microrregiões que apresentaram os maiores coeficientes de mortalidade feminina por agressão foram Frederico Westphalen (6,2), Ijuí (5,6), Vacaria (5,2), Campanha Meridional (4,7), Passo Fundo (4,2), Cruz Alta (4,1) e Porto Alegre (4,1).
Já os dados relacionados às capitais e às cidades brasileiras com mais de 400 mil habitantes se referem a dois períodos: 2007 a 2009 e 2011 a 2013. Foram incluídos 58 municípios, que representam 1% dos municípios brasileiros, 33% da população feminina e 39% das mortes de mulheres por agressão. No primeiro triênio a taxa média de homicídios foi de 4,5 óbitos por 100 mil mulheres, e no segundo, de 4,9/100 mil. Assim como no levantamento dos estados, houve predomínio de mulheres negras – cujo risco de homicídio é duas vezes maior que o das brancas –, solteiras (70,3%), jovens (72% está na faixa etária dos 10 a 39 anos) e com baixa escolaridade. 22% das mulheres morreram dentro de suas próprias casas. O estado do Espírito Santo apresenta os municípios com as maiores taxas nacionais: Serra (14,2/100 mil entre 2011 e 2013) e Vila Velha (10,3/100 mil no mesmo período).
Entre as principais relações encontradas nos três recortes está a associação dos homicídios masculinos com os femininos. Ou seja, em locais com alto índice de assassinatos de homens, também morrem mais mulheres. “A gente encontrou essa associação, entre as mortes femininas e as masculinas, que era algo muito discutido ainda na literatura. Alguns diziam que não tinham nada a ver esses fenômenos. Eles são diferentes, sim, mas onde há mais violência estrutural, violência urbana, violência na comunidade, enfim, onde há mais homicídios masculinos, também há mais feminicídios”, explica Meneghel. Conforme explica a professora, a taxa de homicídios masculinos é um indicador da violência urbana e social associada a desigualdades sociais e econômicas, ao papel fraco do Estado e a ações ineficazes de segurança pública, e o levantamento corrobora a percepção de que as violências apresentam-se intrinsecamente ligadas. Ou seja, onde a sociedade é mais violenta, as mulheres são mais penalizadas.
Vale ressaltar, entretanto, que homens e mulheres não morrem da mesma forma. Os homicídios masculinos ocorrem, em sua maioria, na rua, e seus assassinos também são homens. Suas mortes ocorrem em situações como brigas, assaltos e conflitos relacionados ao tráfico, enquanto as mulheres são assassinadas, principalmente, em decorrência de violências íntimas que permeiam relações interpessoais entre homens e mulheres. Se, por um lado, é verdade que os homicídios femininos correspondem a somente cerca de 10% do total de homicídios, os assassinatos de mulheres constituem um problema social cuja magnitude não pode ser minimizada, uma vez que suas mortes são, na maioria, baseadas na desigualdade entre os gêneros.
Nas pesquisas realizadas no âmbito dos estados e das grandes cidades também foi observado que em regiões com alto percentual de evangélicos pentecostais é maior o número de mortes femininas por agressão. É claro que, como se trabalham com médias, não é possível fazer uma relação direta ou afirmar que as mortes sejam causadas pelos evangélicos. Entretanto, como explica Meneghel, os evangélicos pentecostais estão em locais onde a população é mais pobre e o Estado se faz menos presente. Muitos desses locais também são regiões de fronteira marcadas por conflitos. Além disso, ressalta a professora, os evangélicos pentecostais compartilham valores bastante conservadores em relação ao papel da mulher, com uma divisão sexual patriarcal que reforça a posição de subordinação da mulher à autoridade masculina.
Já no Rio Grande do Sul, foi constatada forte relação entre os índices de internação hospitalar por alcoolismo e os homicídios de mulheres. Novamente, não é possível fazer relações diretas, mas o dado pode indicar que a violência contra as mulheres é maior em regiões com elevado consumo de álcool, bem como que o abuso de álcool e a agressão possam estar associados a condicionantes comuns.
Feminicídios em Porto Alegre
Como falado anteriormente, os levantamentos trabalham com dados gerais relacionados à mortalidade feminina por agressão, não sendo possível dizer, exatamente, quantos desses casos consistem em feminicídios. Para aprofundar o entendimento de quantas e quem são, de fato, as mulheres que vêm morrendo em razão de seu gênero, os pesquisadores resolveram estender o trabalho e realizar uma pesquisa qualitativa que identificasse os feminicídios ocorridos em Porto Alegre.
Os dados foram coletados a partir da leitura de inquéritos policiais de mulheres assassinadas entre 2006 e 2010. Os feminicídios foram categorizados caso a caso com base na análise das informações que constam nos inquéritos, o que incluía a caracterização da vítima, os depoimentos do agressor e das testemunhas e os resultados da investigação, entre outras questões. Os critérios para a classificação dos crimes como feminícidios englobaram assassinatos de mulheres perpetrados por parceiro íntimo atual ou passado; mortes com violência sexual, incluindo assassinatos de prostitutas em seu local de trabalho; mortes em que houve mutilação genital ou desfiguramento do rosto da vítima; uso desproporcional de meios letais; e execuções relacionadas ao tráfico, nas quais se considerou que o fato de ser mulher potencializou o crime. Sobre este último aspecto, Meneghel comenta que muitas vezes, o corpo das mulheres é utilizado como território de vingança, com crimes cometidos em esfera pública por gangues, máfias ou outros tipos de grupos armados, envolvendo execução, mutilação e violência sexual. A violência contra as mulheres é utilizada, nesses casos, como demonstração de poder, e seus corpos são marcados como mensagens para a sociedade.
“Muitas autoridades consideram que os feminicídios são apenas os íntimos – aqueles perpetrados pelo marido, pelo ex-marido, pelo companheiro, pelo namorado, durante ou após o relacionamento. Porém, atualmente, tem-se trabalhado com um conceito mais amplo: o feminicídio é a morte de uma mulher devido à sua condição de ser mulher, à sua condição de gênero. Há execuções que são feminicídios, porque se referem a uma briga entre homens, por exemplo, mas a mulher é assassinada como retaliação, para demonstrar poder”, salienta a pesquisadora.
A professora conta que os debates acerca da classificação dos casos eram constantes no grupo de pesquisa. “Quando se está estudando um assunto, sempre há uma tendência de tu forçares tua opinião. Então a gente fazia muito o debate pró e contra. Sempre fazíamos as discussões e nos perguntávamos: ‘Será que é mesmo? Se fosse um homem, ele teria sido assassinado nessa circunstância?’”, comenta. Os dados foram coletados entre 2010 e 2013. Segundo a pesquisadora, esse foi o primeiro estudo brasileiro que calculou a proporção de feminicídios entre o total de homicídios de mulheres.
Apesar de os dados do Datasus indicarem que, no período analisado, cerca de 200 mulheres haviam sido assassinadas na cidade, somente foram disponibilizados 89 inquéritos aos pesquisadores. Duas explicações foram dadas a eles sobre essa questão: a primeira era de que muitas das mortes poderiam ter ocorrido em outros municípios, o que não se confirmou, uma vez que o grupo de pesquisa se certificou de que os 200 casos se referiam, sim, ao local de ocorrência do fato. A segunda explicação é a de que as investigações ainda estavam em andamento até o fim do período da coleta de dados – que ocorreu ao menos três anos após os crimes –, ainda que em termos jurídicos, o inquérito deva ser encerrado em um prazo de 10 dias se o indiciado tiver sido preso em flagrante ou estiver preso preventivamente ou no prazo de 30 dias quando estiver solto.
Dos 89 casos analisados, 64 foram classificados como feminicídios, representando 72% do total – um panorama similar ao encontrado em outros países, como Costa Rica, Estados Unidos e Canadá. Em 78% dos feminicídios, o agressor era conhecido da vítima, e 43% deles foram perpetrados por parceiros ou ex-parceiros — maridos, namorados, noivos ou ficantes. Outro dado importante se refere ao histórico de violência anterior – presente em 83% dos feminicídios e em nenhum dos outros tipos de homicídio. Em metade dos casos, a mulher já havia registrado boletim de ocorrência contra o agressor.
Esse dado reforça o conceito de que a violência contra a mulher é um evento de caráter crônico. “Antigamente se falava no ciclo de violência contra a mulher. Hoje, a gente tem trabalhado com o conceito de contínuo. Não é ciclo, que vem e volta, mas uma situação de aumento gradativo. Por exemplo, faz 20 anos que o homem começou a desqualificar a mulher, então, passou a xingá-la, e depois começou a bater. É uma violência que começa e vai aumentando. A gente viu isso nas histórias dos inquéritos e em outros estudos sobre violência”. O feminicídio seria, então, a etapa final desse contínuo.
A maioria das mulheres foi assassinada em sua própria casa (67% dos feminicídios e 48% dos outros crimes), e, das 21 mortes que ocorreram em ambientes públicos, 10 apresentaram violência sexual e 10 foram execuções de mulheres em ambientes de tráfico, em situações em que o fato de ser mulher foi determinante para a morte. Proporcionalmente, também morrem mais mulheres jovens por feminicídio do que nos demais homicídios femininos, já que 84% das vítimas de feminicídios tinham menos de 40 anos, enquanto nos demais casos esse índice foi de 56%. O estudo também apontou uma sobremortalidade de mulheres negras em todos os tipos de homicídios. Apesar de representarem cerca de 20% da população feminina de Porto Alegre, elas foram as vítimas em 23% dos feminicídios e 60% dos demais assassinatos. A presença de arma no domicílio também se revela um risco para a ocorrência de homicídios. Metade dos feminicídios e 72% dos demais tipos de homicídios foram provocados por armas de fogo.
O alto índice de assassinatos de prostitutas também chamou a atenção dos pesquisadores. Conforme Menghel, dos 89 casos de mortes por agressão registrados no período da pesquisa, 11 foram de mulheres que exerciam a prostituição. “Alguns desses casos foram crimes de ódio, com violência sexual, desmembramento do corpo e marcas de violência física. Isso nos deixou muito sensibilizados. Há artigos que dizem que, na Europa, o risco de uma mulher prostituta, principalmente quando trabalha na rua, sofrer um feminicídio é 50 vezes maior que o da população em geral. Aqui deve ser muito maior que 50, por esse número tão grande que encontramos”, conta a professora, que, junto de seu grupo, planeja escrever um artigo que aprofunde essa questão.
Problema de segurança pública
“Nos tocou muito fazer esse trabalho. É Importante porque mostra que feminicídio não é só de parceiro íntimo. Tem todas essas outras situações que ficam desconsideradas, inclusive pela polícia”, conta Meneghel, exemplificando que o delegado com quem inicialmente negociaram a entrada na delegacia dizia que não havia feminicídios em Porto Alegre.
Outro ponto que ela ressalta é o baixo percentual de indiciamento dos casos analisados. “Alguns poderiam ter sido mais investigados, no nosso entender. A gente não entrou no campo jurídico, mas a gente viu que tinha inquérito de somente uma página: era o boletim de ocorrência, a declaração de óbito e mais nada. Alguns também diziam que não foi possível encontrar testemunhas, que predomina a lei do silêncio.”
Os feminicídios, conta a professora, são uma mostra das relações de poder que existem na sociedade. “Grupos que têm mais poder e mais privilégios não querem mudar, porque isso significa perda de privilégios. Então, historicamente, os feminicídios não têm sido punidos no país. E daí tem todas as alegações – ciúmes, estado violento de paixão, descontrole, crimes de honra –, todo esse palavreado antiquado e moralista que significa manter os assassinos impunes. E se eles são ricos, a impunidade é ainda maior”, enfatiza.
E também problema de saúde pública
“Uma morte feminina precoce por agressão é um problema de saúde pública e de direitos humanos”, enfatiza Meneghel. A violência contra a mulher, alias, é considerada um problema de saúde pública pela Organização Mundial da Saúde desde 1990. Portanto, como explica a pesquisadora, os profissionais da área precisam de ferramentas que os permitam trabalhar na identificação e na prevenção de situações de risco.
Alguns fatores, conforme demonstram as pesquisas na área, atuam como agravantes e aumentam a probabilidade de a mulher ser vítima de feminicídio, como situações em que o homem não aceita a separação, histórico de violência e o fato de o homem ter porte de armas, por exemplo. “Outra coisa é a ameaça de morte. Existe um consenso popular de que cão que ladra não morde, de que, se ameaçou, é porque não vai fazer nada. Mas, na realidade, a gente vê que grande parte das pessoas que ameaçam executa ou tenta executar. É uma situação de risco, sim”, destaca a professora.
Ela conta que até existem algumas experiências organizadas e bem sucedidas no país para atendimento e prevenção de situações de violência contra a mulher, mas ainda são poucas. “Uma das coisas que é importante é que sempre se tenha um protocolo de perguntas. Antigamente, havia a ideia de que não se falava de certos temas, como o suicídio e a violência contra a mulher. Mas, na realidade, tem que perguntar. Na dúvida, pergunta”, enfatiza.
“O que acontece também é que alguns locais têm uma demanda tão grande de trabalho, como nos pronto-atendimentos, que o profissional, acaba nem perguntando. Ainda, muitas vezes, os profissionais de saúde não têm o que fazer, então até preferem nem ficar sabendo. Teria que ter mais suporte, mais retaguarda para os trabalhadores que estão na ponta. Muitas vezes a pessoa detecta a situação e não tem para onde enviar a mulher”, complementa. Um exemplo, segundo Meneghel, é o fato de que só existe uma casa de passagem em Porto Alegre. “Isso é só pra inglês ver, para fazer de conta que tem. Teria que ter pelo menos uma em cada gerência distrital”.
Artigos científicos
MENEGHEL, Stela Nazareth et al. Feminicídios: estudo em capitais e municípios brasileiros de grande porte populacional. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 9, set. 2017.
MENEGHEL, Stela Nazareth; PORTELLA, Ana Paula. Feminicídios: conceitos, tipos e cenários. Ciênc. saúde coletiva, vol.22, n.9. 2017.
MARGARITES, Ane Freitas; MENEGHEL, Stela Nazareth; CECCON, Roger Flores. Feminicídios na cidade de Porto Alegre: Quantos são? Quem são?. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 20, n. 2, jun. 2017.
LEITES, Gabriela Tomedi; MENEGHEL, Stela Nazareth; HIRAKATA, Vania Noemi. Homicídios femininos no Rio Grande do Sul, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologiav. 17, n. 3, set. 2014.
MENEGHEL, Stela Nazareth et al. Femicídios: narrativas de crimes de gênero. Interface, vol.17, n.46. 2013
MENEGHEL, Stela Nazareth; HIRAKATA, Vania Naomi. Femicídios: homicídios femininos no Brasil. Revista de Saúde Pública, v. 45, n. 3, jun. 2011.
Ter a resposta a essa pergunta é um passo importante para o combate a esse tipo de crime. Como salienta a professora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRGS Stela Meneghel, é preciso que os profissionais da segurança e da saúde sejam capazes de identificar mulheres em risco e intervir rapidamente quando necessário. Conforme a professora da Universidad Nacional de Colombia Dora Munevar, citada em um dos artigos do qual Meneghel foi coautora, para fazer frente aos feminicídios, é preciso realizar as ações de nomear, visibilizar e conceituar as mortes violentas de mulheres. É preciso também dispor de informações fidedignas para o monitoramento dos feminicídios em um território.
Para colaborar com essa questão, Meneghel e seu grupo de pesquisa vêm, nos últimos anos, realizando uma série de estudos que buscam identificar onde ocorrem os assassinatos baseados em gênero e quais os fatores que colaboram para a vulnerabilização das mulheres. Entre eles, destacam-se os levantamentos das mortes femininas por agressão nos estados, nos municípios brasileiros de mais de 400 mil habitantes e nas microrregiões do Rio Grande do Sul e uma pesquisa qualitativa com vistas a identificar os feminicídios na cidade de Porto Alegre.
Os levantamentos consistiram em pesquisas quantitativas realizadas com base no Sistema de Informações sobre Mortalidade do Datasus. Como nem o sistema nem os atestados de óbito informam se houve feminicídio ou trazem informações sobre o responsável pelo crime, os pesquisadores optaram por trabalhar com o total de homicídios femininos como um indicador da quantidade de feminicídios. Os dados foram correlacionados com uma série de indicadores demográficos, socioeconômicos e de saúde.
Os levantamentos indicaram que, entre 2003 e 2007, ocorreram quase 19,5 mil mortes de mulheres por agressão no país – o que dá um índice de 4,1 para cada 100 mil. A maioria era solteira e com baixa escolaridade, e mais da metade, negra. Aproximadamente 20% eram crianças ou jovens com menos de 20 anos, e cerca de um terço das mortes ocorreu na casa da vítima, o que indica que foram causadas por alguém próximo e que provavelmente se tratam de feminicídios. Espírito Santo, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Pernambuco foram os estados que apresentaram maiores taxas de homicídios de mulheres.
No mesmo período, o Rio Grande do Sul apresentou média de mortes femininas por agressão menor que a do país – 3,1 óbitos para cada 100 mil. As microrregiões que apresentaram os maiores coeficientes de mortalidade feminina por agressão foram Frederico Westphalen (6,2), Ijuí (5,6), Vacaria (5,2), Campanha Meridional (4,7), Passo Fundo (4,2), Cruz Alta (4,1) e Porto Alegre (4,1).
Já os dados relacionados às capitais e às cidades brasileiras com mais de 400 mil habitantes se referem a dois períodos: 2007 a 2009 e 2011 a 2013. Foram incluídos 58 municípios, que representam 1% dos municípios brasileiros, 33% da população feminina e 39% das mortes de mulheres por agressão. No primeiro triênio a taxa média de homicídios foi de 4,5 óbitos por 100 mil mulheres, e no segundo, de 4,9/100 mil. Assim como no levantamento dos estados, houve predomínio de mulheres negras – cujo risco de homicídio é duas vezes maior que o das brancas –, solteiras (70,3%), jovens (72% está na faixa etária dos 10 a 39 anos) e com baixa escolaridade. 22% das mulheres morreram dentro de suas próprias casas. O estado do Espírito Santo apresenta os municípios com as maiores taxas nacionais: Serra (14,2/100 mil entre 2011 e 2013) e Vila Velha (10,3/100 mil no mesmo período).
Entre as principais relações encontradas nos três recortes está a associação dos homicídios masculinos com os femininos. Ou seja, em locais com alto índice de assassinatos de homens, também morrem mais mulheres. “A gente encontrou essa associação, entre as mortes femininas e as masculinas, que era algo muito discutido ainda na literatura. Alguns diziam que não tinham nada a ver esses fenômenos. Eles são diferentes, sim, mas onde há mais violência estrutural, violência urbana, violência na comunidade, enfim, onde há mais homicídios masculinos, também há mais feminicídios”, explica Meneghel. Conforme explica a professora, a taxa de homicídios masculinos é um indicador da violência urbana e social associada a desigualdades sociais e econômicas, ao papel fraco do Estado e a ações ineficazes de segurança pública, e o levantamento corrobora a percepção de que as violências apresentam-se intrinsecamente ligadas. Ou seja, onde a sociedade é mais violenta, as mulheres são mais penalizadas.
Vale ressaltar, entretanto, que homens e mulheres não morrem da mesma forma. Os homicídios masculinos ocorrem, em sua maioria, na rua, e seus assassinos também são homens. Suas mortes ocorrem em situações como brigas, assaltos e conflitos relacionados ao tráfico, enquanto as mulheres são assassinadas, principalmente, em decorrência de violências íntimas que permeiam relações interpessoais entre homens e mulheres. Se, por um lado, é verdade que os homicídios femininos correspondem a somente cerca de 10% do total de homicídios, os assassinatos de mulheres constituem um problema social cuja magnitude não pode ser minimizada, uma vez que suas mortes são, na maioria, baseadas na desigualdade entre os gêneros.
Nas pesquisas realizadas no âmbito dos estados e das grandes cidades também foi observado que em regiões com alto percentual de evangélicos pentecostais é maior o número de mortes femininas por agressão. É claro que, como se trabalham com médias, não é possível fazer uma relação direta ou afirmar que as mortes sejam causadas pelos evangélicos. Entretanto, como explica Meneghel, os evangélicos pentecostais estão em locais onde a população é mais pobre e o Estado se faz menos presente. Muitos desses locais também são regiões de fronteira marcadas por conflitos. Além disso, ressalta a professora, os evangélicos pentecostais compartilham valores bastante conservadores em relação ao papel da mulher, com uma divisão sexual patriarcal que reforça a posição de subordinação da mulher à autoridade masculina.
Já no Rio Grande do Sul, foi constatada forte relação entre os índices de internação hospitalar por alcoolismo e os homicídios de mulheres. Novamente, não é possível fazer relações diretas, mas o dado pode indicar que a violência contra as mulheres é maior em regiões com elevado consumo de álcool, bem como que o abuso de álcool e a agressão possam estar associados a condicionantes comuns.
Feminicídios em Porto Alegre
Como falado anteriormente, os levantamentos trabalham com dados gerais relacionados à mortalidade feminina por agressão, não sendo possível dizer, exatamente, quantos desses casos consistem em feminicídios. Para aprofundar o entendimento de quantas e quem são, de fato, as mulheres que vêm morrendo em razão de seu gênero, os pesquisadores resolveram estender o trabalho e realizar uma pesquisa qualitativa que identificasse os feminicídios ocorridos em Porto Alegre.
Os dados foram coletados a partir da leitura de inquéritos policiais de mulheres assassinadas entre 2006 e 2010. Os feminicídios foram categorizados caso a caso com base na análise das informações que constam nos inquéritos, o que incluía a caracterização da vítima, os depoimentos do agressor e das testemunhas e os resultados da investigação, entre outras questões. Os critérios para a classificação dos crimes como feminícidios englobaram assassinatos de mulheres perpetrados por parceiro íntimo atual ou passado; mortes com violência sexual, incluindo assassinatos de prostitutas em seu local de trabalho; mortes em que houve mutilação genital ou desfiguramento do rosto da vítima; uso desproporcional de meios letais; e execuções relacionadas ao tráfico, nas quais se considerou que o fato de ser mulher potencializou o crime. Sobre este último aspecto, Meneghel comenta que muitas vezes, o corpo das mulheres é utilizado como território de vingança, com crimes cometidos em esfera pública por gangues, máfias ou outros tipos de grupos armados, envolvendo execução, mutilação e violência sexual. A violência contra as mulheres é utilizada, nesses casos, como demonstração de poder, e seus corpos são marcados como mensagens para a sociedade.
“Muitas autoridades consideram que os feminicídios são apenas os íntimos – aqueles perpetrados pelo marido, pelo ex-marido, pelo companheiro, pelo namorado, durante ou após o relacionamento. Porém, atualmente, tem-se trabalhado com um conceito mais amplo: o feminicídio é a morte de uma mulher devido à sua condição de ser mulher, à sua condição de gênero. Há execuções que são feminicídios, porque se referem a uma briga entre homens, por exemplo, mas a mulher é assassinada como retaliação, para demonstrar poder”, salienta a pesquisadora.
A professora conta que os debates acerca da classificação dos casos eram constantes no grupo de pesquisa. “Quando se está estudando um assunto, sempre há uma tendência de tu forçares tua opinião. Então a gente fazia muito o debate pró e contra. Sempre fazíamos as discussões e nos perguntávamos: ‘Será que é mesmo? Se fosse um homem, ele teria sido assassinado nessa circunstância?’”, comenta. Os dados foram coletados entre 2010 e 2013. Segundo a pesquisadora, esse foi o primeiro estudo brasileiro que calculou a proporção de feminicídios entre o total de homicídios de mulheres.
Apesar de os dados do Datasus indicarem que, no período analisado, cerca de 200 mulheres haviam sido assassinadas na cidade, somente foram disponibilizados 89 inquéritos aos pesquisadores. Duas explicações foram dadas a eles sobre essa questão: a primeira era de que muitas das mortes poderiam ter ocorrido em outros municípios, o que não se confirmou, uma vez que o grupo de pesquisa se certificou de que os 200 casos se referiam, sim, ao local de ocorrência do fato. A segunda explicação é a de que as investigações ainda estavam em andamento até o fim do período da coleta de dados – que ocorreu ao menos três anos após os crimes –, ainda que em termos jurídicos, o inquérito deva ser encerrado em um prazo de 10 dias se o indiciado tiver sido preso em flagrante ou estiver preso preventivamente ou no prazo de 30 dias quando estiver solto.
Dos 89 casos analisados, 64 foram classificados como feminicídios, representando 72% do total – um panorama similar ao encontrado em outros países, como Costa Rica, Estados Unidos e Canadá. Em 78% dos feminicídios, o agressor era conhecido da vítima, e 43% deles foram perpetrados por parceiros ou ex-parceiros — maridos, namorados, noivos ou ficantes. Outro dado importante se refere ao histórico de violência anterior – presente em 83% dos feminicídios e em nenhum dos outros tipos de homicídio. Em metade dos casos, a mulher já havia registrado boletim de ocorrência contra o agressor.
Esse dado reforça o conceito de que a violência contra a mulher é um evento de caráter crônico. “Antigamente se falava no ciclo de violência contra a mulher. Hoje, a gente tem trabalhado com o conceito de contínuo. Não é ciclo, que vem e volta, mas uma situação de aumento gradativo. Por exemplo, faz 20 anos que o homem começou a desqualificar a mulher, então, passou a xingá-la, e depois começou a bater. É uma violência que começa e vai aumentando. A gente viu isso nas histórias dos inquéritos e em outros estudos sobre violência”. O feminicídio seria, então, a etapa final desse contínuo.
A maioria das mulheres foi assassinada em sua própria casa (67% dos feminicídios e 48% dos outros crimes), e, das 21 mortes que ocorreram em ambientes públicos, 10 apresentaram violência sexual e 10 foram execuções de mulheres em ambientes de tráfico, em situações em que o fato de ser mulher foi determinante para a morte. Proporcionalmente, também morrem mais mulheres jovens por feminicídio do que nos demais homicídios femininos, já que 84% das vítimas de feminicídios tinham menos de 40 anos, enquanto nos demais casos esse índice foi de 56%. O estudo também apontou uma sobremortalidade de mulheres negras em todos os tipos de homicídios. Apesar de representarem cerca de 20% da população feminina de Porto Alegre, elas foram as vítimas em 23% dos feminicídios e 60% dos demais assassinatos. A presença de arma no domicílio também se revela um risco para a ocorrência de homicídios. Metade dos feminicídios e 72% dos demais tipos de homicídios foram provocados por armas de fogo.
O alto índice de assassinatos de prostitutas também chamou a atenção dos pesquisadores. Conforme Menghel, dos 89 casos de mortes por agressão registrados no período da pesquisa, 11 foram de mulheres que exerciam a prostituição. “Alguns desses casos foram crimes de ódio, com violência sexual, desmembramento do corpo e marcas de violência física. Isso nos deixou muito sensibilizados. Há artigos que dizem que, na Europa, o risco de uma mulher prostituta, principalmente quando trabalha na rua, sofrer um feminicídio é 50 vezes maior que o da população em geral. Aqui deve ser muito maior que 50, por esse número tão grande que encontramos”, conta a professora, que, junto de seu grupo, planeja escrever um artigo que aprofunde essa questão.
Problema de segurança pública
“Nos tocou muito fazer esse trabalho. É Importante porque mostra que feminicídio não é só de parceiro íntimo. Tem todas essas outras situações que ficam desconsideradas, inclusive pela polícia”, conta Meneghel, exemplificando que o delegado com quem inicialmente negociaram a entrada na delegacia dizia que não havia feminicídios em Porto Alegre.
Outro ponto que ela ressalta é o baixo percentual de indiciamento dos casos analisados. “Alguns poderiam ter sido mais investigados, no nosso entender. A gente não entrou no campo jurídico, mas a gente viu que tinha inquérito de somente uma página: era o boletim de ocorrência, a declaração de óbito e mais nada. Alguns também diziam que não foi possível encontrar testemunhas, que predomina a lei do silêncio.”
Os feminicídios, conta a professora, são uma mostra das relações de poder que existem na sociedade. “Grupos que têm mais poder e mais privilégios não querem mudar, porque isso significa perda de privilégios. Então, historicamente, os feminicídios não têm sido punidos no país. E daí tem todas as alegações – ciúmes, estado violento de paixão, descontrole, crimes de honra –, todo esse palavreado antiquado e moralista que significa manter os assassinos impunes. E se eles são ricos, a impunidade é ainda maior”, enfatiza.
E também problema de saúde pública
“Uma morte feminina precoce por agressão é um problema de saúde pública e de direitos humanos”, enfatiza Meneghel. A violência contra a mulher, alias, é considerada um problema de saúde pública pela Organização Mundial da Saúde desde 1990. Portanto, como explica a pesquisadora, os profissionais da área precisam de ferramentas que os permitam trabalhar na identificação e na prevenção de situações de risco.
Alguns fatores, conforme demonstram as pesquisas na área, atuam como agravantes e aumentam a probabilidade de a mulher ser vítima de feminicídio, como situações em que o homem não aceita a separação, histórico de violência e o fato de o homem ter porte de armas, por exemplo. “Outra coisa é a ameaça de morte. Existe um consenso popular de que cão que ladra não morde, de que, se ameaçou, é porque não vai fazer nada. Mas, na realidade, a gente vê que grande parte das pessoas que ameaçam executa ou tenta executar. É uma situação de risco, sim”, destaca a professora.
Ela conta que até existem algumas experiências organizadas e bem sucedidas no país para atendimento e prevenção de situações de violência contra a mulher, mas ainda são poucas. “Uma das coisas que é importante é que sempre se tenha um protocolo de perguntas. Antigamente, havia a ideia de que não se falava de certos temas, como o suicídio e a violência contra a mulher. Mas, na realidade, tem que perguntar. Na dúvida, pergunta”, enfatiza.
“O que acontece também é que alguns locais têm uma demanda tão grande de trabalho, como nos pronto-atendimentos, que o profissional, acaba nem perguntando. Ainda, muitas vezes, os profissionais de saúde não têm o que fazer, então até preferem nem ficar sabendo. Teria que ter mais suporte, mais retaguarda para os trabalhadores que estão na ponta. Muitas vezes a pessoa detecta a situação e não tem para onde enviar a mulher”, complementa. Um exemplo, segundo Meneghel, é o fato de que só existe uma casa de passagem em Porto Alegre. “Isso é só pra inglês ver, para fazer de conta que tem. Teria que ter pelo menos uma em cada gerência distrital”.
Artigos científicos
MENEGHEL, Stela Nazareth et al. Feminicídios: estudo em capitais e municípios brasileiros de grande porte populacional. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 9, set. 2017.
MENEGHEL, Stela Nazareth; PORTELLA, Ana Paula. Feminicídios: conceitos, tipos e cenários. Ciênc. saúde coletiva, vol.22, n.9. 2017.
MARGARITES, Ane Freitas; MENEGHEL, Stela Nazareth; CECCON, Roger Flores. Feminicídios na cidade de Porto Alegre: Quantos são? Quem são?. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 20, n. 2, jun. 2017.
LEITES, Gabriela Tomedi; MENEGHEL, Stela Nazareth; HIRAKATA, Vania Noemi. Homicídios femininos no Rio Grande do Sul, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologiav. 17, n. 3, set. 2014.
MENEGHEL, Stela Nazareth et al. Femicídios: narrativas de crimes de gênero. Interface, vol.17, n.46. 2013
MENEGHEL, Stela Nazareth; HIRAKATA, Vania Naomi. Femicídios: homicídios femininos no Brasil. Revista de Saúde Pública, v. 45, n. 3, jun. 2011.
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