por Ingrid Matuoka — publicado 08/03/2017
Graziela Schneider lança "A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética", com obras de onze autoras russas escritas há cem anos
Feminismo, trabalho, luta de classes, família, leis, religião e política eram alguns dos assuntos abordados pelas autoras russas
“Conscientemente ou por falta de familiaridade com o assunto, os opositores e as opositoras do movimento de libertação das mulheres o imaginam como uma luta direcionada contra os homens. Quanto às suas adeptas – que têm coragem de afirmar que a questão da liberdade da mulher, assim como a de outros cidadãos, é sempre atual e que não se pode privilegiar os direitos de uma parte da população em prejuízo da outra –, os opositores declaram‐nas feministas “radicais”, achando que entenderam alguma coisa”.
O trecho acima poderia facilmente ter sido escrito por alguma feminista em 2017, não fosse a assinatura da russa Anna Andréievna Kalmánovitch ao final, com a data de 110 anos atrás. Quem o recuperou foi Graziela Schneider, pesquisadora da USP na área de Literatura e Cultura Russa.
Este e outros 40 artigos compõem a obra A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética (Boitempo), uma coletânea de escritos de 11 mulheres russas sobre feminismo, trabalho, luta de classes, família, leis e religião à época de uma das maiores agitações sociais e políticas da Rússia, a Revolução de 1917.
Selecionados e organizados por Graziela, os textos são em sua maior parte inéditos, e trazem uma breve biografia das autoras. A pesquisadora estuda a cultura russa há cerca de vinte anos, e dedicou os últimos três às figuras políticas femininas da Rússia e suas reivindicações.
“Infelizmente, as questões que essas mulheres discutiam há cem anos ainda são muito atuais. Quiséramos nós que fossem textos meramente históricos”, diz Graziela.
CartaCapital: Qual a importância de ter a voz dessas mulheres em primeira pessoa?
Graziela Schneider: Na segunda metade do século XIX, homens russos começam a tocar em questões ligadas ao feminino. Por mais bem intencionados que fossem, tratavam os assuntos sempre a partir de um olhar masculino.
As mulheres, por sua vez, sempre escreveram, sempre estiveram lá, mas não eram publicadas ou não eram lidas. Esse é o ponto do livro, trazer problemas que eram ou ainda são fortes, sobre questões que pertencem a nós, mulheres, dessa vez a partir de uma voz e um olhar feminino. Foi inclusive por isso que optamos por uma equipe inteiramente de mulheres para produzir o livro.
CC: Por que as russas não são tão conhecidas e estudadas no Brasil?
GS: Também estou tentando pesquisar isso. Os russos são bastante lidos de maneira geral aqui, pelo menos na tradução direta, desde o final do século XIX. O que eu poderia dizer como tentativa de explicação é que, não apenas o mercado editorial, mas outras pessoas que poderiam decidir o que seria lido são homens. Isso começou a mudar só a partir dos anos 90.
Ou será possível que não exista nenhuma “Dostoiévska”, nenhuma grande autora russa? Não, não é possível. É só porque ainda estamos muito presas a decisões masculinas.
CC: As discussões levantadas pelas autoras no livro parecem muito atuais, como a questão da prostituição, maternidade e religião. Por que o debate mudou tão pouco mesmo cem anos depois?
GS: Selecionando o material, fiquei pensando nisso. E eu continuo, sem querer demonizar o ser masculino, achando que a ideia é a mesma: não deixam. Não somos permitidas, porque o problema não é por falta de luta, tanto no Brasil quanto em outros lugares. E aqui no país tem principalmente a ver com a falsa laicidade do Estado.
Infelizmente, as questões que essas mulheres discutiam há cem anos ainda são muito atuais. Quiséramos nós que fossem textos meramente históricos e que esses pontos já estivessem resolvidos. Quiséramos nós não falá-lo, mas a luta continua.
CC: De que forma o feminismo na Rússia mudou desde a Revolução de 1917?
GS: As mulheres conquistaram muitos direitos até a década de 30. Depois disso, deram a questão da mulher por resolvida. Ela já estava inserida no mercado de trabalho e tinha os mesmos direitos por lei que os homens. Desde então, essa questão foi menos tocada.
Hoje, diferentemente de como é no ocidente, em que a questão feminista é mais intensa, na Rússia ela é vista com outros olhos, em um aspecto quase negativo, muito associado ao socialismo.
Conversei com algumas mulheres russas e elas mostraram desconhecimento total desse material e uma espécie de desinteresse, mas depois de ler ficavam encantadas, viam a importância desses textos. Não estou concluindo que todas as russas têm esse distanciamento, mas o feminismo pode ter ficado sufocado.
CC: Alguma ideia de por que isso aconteceu?
GS: Estou pesquisando isso, mas ainda não tenho conclusões. Mas é quase como se elas sempre tivessem sido feministas e apenas não quisessem se denominar assim.
CC: Existem algumas versões sobre a origem do 8 de março. Em suas pesquisas, o que encontrou?
GS: A pesquisadora canadense Renée Cote descobriu que o episódio do incêndio na fábrica [de Nova York, em 1911] não tem relação direta com a data 8 de março, embora seja um marco inquestionável.
O 8 de março teria mais a ver com outros dois momentos: o da Revolução de Fevereiro, que na Rússia era dia 23 de fevereiro, mas no calendário ocidental era 8 de março, e depois, em 1921, durante uma reunião na Confederação Internacional das Mulheres Comunistas, quando foi decidido adotar essa data como algo simbólico, consolidando o dia das mulheres.
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