Gênero e desigualdades – limites da democracia no Brasil (Boitempo Editorial), recém-publicado pela cientista política Flávia Biroli (UnB), cumpre um papel histórico de registro do que diversos movimentos de mulheres está fazendo no Brasil contemporâneo, com maior ou menor sucesso, com mais ou menos risco de vida. Seguindo a proposição do filósofo Peter Sloterdijk, que costuma me animar na leitura: livros são como cartas endereçadas aos amigos e amigas com quem compartilhamos ideias, propostas, e estabelecemos diálogos que vão nos constituindo. O livro de Biroli é destinado a amigas, termo aqui entendido como uma ampla rede de mulheres que está construindo os fluxos e refluxos da política no país nos últimos quarenta anos. Depois do assassinato da vereadora Marielle Franco – que completa um mês no próximo dia 14 – Gênero e desigualdades precisa ser lido como um trabalho atravessado pelo embate entre os movimentos de mulheres negras e a pauta de reivindicações das feministas brancas.
Os cinco capítulos estão divididos em temas concernentes às lutas recentes das mulheres: Divisão sexual do trabalho; cuidado e responsabilidades; família e maternidade; aborto, sexualidade e autonomia; feminismos e ação política. São temas discutidos pelo menos desde o final dos anos 1960, e não por acaso a autora remonta ao histórico trabalho da socióloga marxista Heleieth Saffioti (A mulher na sociedade de classes, primeira edição em 1969 da tese defendida na USP). Podemos localizar aí o início da interseccionalidade no feminismo no Brasil, ainda que pensada, nesse primeiro momento, apenas entre gênero e classe. A entrada em cena política do marcador de raça se dá principalmente a partir de pesquisas de outra marxista, a socióloga Lélia Gonzalez, cuja obra torna impertivo pensar a subalternidade das mulheres negras em relação às brancas e as estruturas de dominação internas ao campo feminista.
Aqui, o livro de Biroli atualiza o debate quando diz que, embora todas as estatísticas indiquem que na divisão sexual do trabalho se definem dificuldades num ambiente em que se produzem vantagens e desvantagens para homens e mulheres, não é possível “pressupor que os privilégios estão sempre entre os homens, e as desvantagens e as formas mais acentuadas de exploração, entre as mulheres”. O trabalho precarizado encontra seu maior percentual entre as mulheres negras (39%) e depois nos homens negros (31,6%), para só então alcançar as mulheres brancas (27%) e por fim os homens brancos (20%). Os números reforçam a pauta histórica do movimento de mulheres negras e reatualizada com o assassinato de Marielle Franco, cuja morte reivindica uma tomada de posição política de todas as mulheres, mas sobretudo exige um gesto político das mulheres brancas em relação às negras. Em especial em relação às jovens negras, muitas das quais são a primeira geração da família a não confirmar o percurso do serviço doméstico subalterno como única forma de ingresso no mercado de trabalho, e por isso mesmo apresentam uma demanda de igualdade a ser reconhecida plenamente, sem ressalvas ou recuos. O gesto de cada uma de nós, feministas brancas, é necessário a partir de uma tomada de posição individual.
Nesse ponto, o livro de Biroli fornece um argumento fundamental para pensar outro embate com o qual nos deparamos na política hoje. Seu trabalho mostra o problema da distribuição da responsabilidade estatal, coletiva, das famílias e a responsabilidade privada e individual. A autora chama a atenção para o fato de que responsabilização individual é uma lógica da política neoliberal ligada à precarização da vida, ao desmonte de estruturas de apoio coletivo, à alocação crescente de responsabilidades individuais ali onde antes havia suporte público no seu sentido mais amplo (estatal, comunitário etc).
Minha proximidade com este problema abordado por ela vem do fato de que tenho tentado tomar a política feminista não apenas pelos seus conteúdos – mais direitos, mais justiça, menos desigualdade, hierarquia – mas também como paradigma de modo de fazer política, o que significa lutar pelos processos, não apenas pelos resultados. É essa dupla tarefa que, me parece, caracteriza as posições no amplo espectro progressista que, por comodidade ou falta de palavra melhor, nos acostumamos a chamar de esquerda, embora o termo não estabilize nem confira homogeneidade a nenhuma categoria muito bem definida.
Se é verdade que a forma de fazer as coisas também é em si política, então pode ser fundamental interrogar discursos de acusação individuais que acabam por substituir análises de contextos históricos e dos mecanismos sociais e econômicos de produção de desigualdade. Se queremos, como argumenta Nancy Fraser, que os feminismos sejam mais do que uma mudança cultural, então talvez seja necessário refinar nossas escolhas tanto dos adversários quanto dos aliados, assim como nossos métodos. Como pensar responsabilidade sem cair na lógica da responsabilização individual apregoada pelos sistemas de discriminação que estamos tentando enfrentar? Pergunta retórica, sem intenção de resposta, ecoando em mim desde que Flávia Biroli lançou o livro no Rio de Janeiro.
Quando Flávia começou a organizar o lançamento carioca, a vereadora Marielle Franco estava viva e participaria, com ela e comigo, de uma mesa redonda em torno das questões propostas no livro. Daríamos continuidade a uma conversa que havia começado na edição de janeiro do jornal Le Monde Diplomatique, no qual nós três assinamos artigos sobre a potência dos movimentos feministas contemporâneos, com ênfase na força revolucionária das mulheres e na dificuldade de reconhecimento que os feminismos são constitutivos da política, não uma parte específica, regional ou menor. A execução de Marielle confirma a hipótese de forma trágica, conferindo valor de verdade ao subtítulo do livro de Biroli – limites da democracia no Brasil – e ao mesmo tempo nos abrindo uma chance inédita de refazer alianças estratégicas tão necessárias.
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