Carta Forense
02/04/2018 por Humberto Fabretti
02/04/2018 por Humberto Fabretti
É possível apontar dois modelos (ou sistemas) processuais penais: o inquisitivo e o acusatório. O modelo acusatório é o mais antigo, remontando às repúblicas grega e romana, e tem como características estruturais a atuação imparcial do juiz que deve se manter afastado das partes e da produção probatória em verdadeira situação de passividade; as atividades de acusador e julgador são exercidas por pessoas distintas; o processo é público e permite o exercício do contraditório e ampla defesa. O modelo acusatório foi utilizado praticamente até o século XII, quando passa a ser substituído pelo modelo Inquisitivo, especialmente por conta da Inquisição da Igreja Católica. Entre as características do sistema Inquisitorial destacam-se: o juiz não é imparcial e passivo, pois atua de ofício e age também como acusador; o processo é secreto, sem contraditório e ampla defesa; e tem por finalidade a busca de uma falaciosa “verdade real” que justifica toda atuação do juiz-inquisidor. Com o fim da Inquisição e formação dos Estados Modernos, o modelo Inquisitorial puro passa a ser flexibilizado, sendo que durante a fase investigativa as características inquisitórias prevalecem, mas na fase processual, além do contraditório e da ampla defesa, a função de acusação passa a ser exercida por órgão diverso do juiz - o Ministério Público -, mas sem que o juiz perca completamente os seus poderes instrutórios/probatórios de atuar de ofício, sendo que esse sistema passa a ser chamado de Misto ou Bifásico, e tem como seu principal expoente o Código Napoleônico de 1808. Porém, apesar de parecer um grande avanço, adverte Luigi Ferrajoli, o Código de Napoleão é “um monstro, nascido da união do processo acusatório com o inquisitivo, que foi chamado de processo misto”, no que é complementado por Aury Lopes Junior: “Ora, ou alguém imagina que Napoleão aceitaria o tal sistema bifásico se não tivesse certeza de que era apenas um `mudar para continuar tudo igual´?”.
O Código de Processo Penal Brasileiro de 1941 também adotou esse modelo “misto”, pois apesar da previsão de um órgão acusador independente (ainda que o juiz também pudesse iniciar de ofício o processo penal), da possibilidade de contraditório e ampla defesa, ainda deixou o juiz com uma enorme liberdade para atuar de ofício não só na produção de prova (justificando tal possibilidade numa pretensa necessidade de se encontrar a “verdade real”) como para determinar prisões cautelares, tanto na fase investigativa quanto na fase processual.
Ocorre que com o advento da Constituição Federal de 1988, houve uma patente definição pelo modelo acusatório, ao se fazer previsão das garantias processuais, no artigo 5º, como estado de inocência, contraditório e ampla defesa, juiz natural etc., bem como pela previsão do Ministério Público nos arts. 129 e seguintes.
Sendo assim, passou a haver um abismo entre o modelo processual penal constitucional (acusatório) e o modelo processual penal previsto no Código de Processo Penal. A jurisprudência começou a interpretar, em alguns pontos, o Código de Processo Penal à luz da Constituição Federal, mas vários aspectos típicos do modelo inquisitório, especialmente a possibilidade do juiz produzir provas de ofício (art. 156 do CPP) e decretar prisões de ofício (art. 311 do CPP), tanto na fase investigativa quanto na fase processual, continuaram a ser utilizados, embora incompatíveis com o sistema acusatório.
Pouco a pouco o legislador infraconstitucional foi conformando o processo penal ao sistema acusatório previsto na Constituição, mas sempre de maneira tímida. Assim, com as reformas de 2011 (Lei nº 12.043), houve mudanças nas prisões cautelares, mas ainda se manteve a possibilidade de o juiz produzir provas de ofício e determinar a prisão preventiva de ofício, embora somente na fase processual (art. 156 do CPP com redação pela 12.043/11), não podendo mais fazê-lo sem provocação do MP ou da Autoridade Policial na fase pré-processual.
Surge aqui o primeiro conflito com a Lei Maria da Penha, que em 2006, previu no art. 20 que o juiz poderia determinar a prisão preventiva do agressor em qualquer fase do inquérito policial e da instrução criminal. Ainda, com a reforma das cautelares havidas no Código de Processo Penal (Lei 12.043/11), a prisão preventiva no âmbito da Lei Maria da Penha também passou a se submeter aos limites instituídos no art. 313 do Código de Processo Penal:
Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva:
I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;
II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal;
III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;
Sendo assim, ainda nos termos da Lei Maria da Penha, o agressor somente poderá ter sua prisão preventiva decretada se o crime for doloso com pena privativa de liberdade superior a 4 anos (inciso I), ou se já tiver sido condenado por outro crime doloso, independentemente da pena, com sentença transitada em julgado (inciso II), ou se for para garantir a execução das medidas protetivas, também independentemente da pena, mas sempre de maneira subsidiária às medidas protetivas que tem que ser aplicadas antes e terem sua execução frustrada (inciso III). Mais, de acordo com Código de Processo Penal, somente poderá ser a prisão preventiva decretada de ofício pelo magistrado no curso de ação penal, e não mais na fase pré-processual, pois o art. 20 da Lei Maria da Penha teria sido revogado pelo art. 313 do Código de Processo Penal que tratou de forma genérica e ampla da prisão preventiva e posteriormente à Lei Maria da Penha.
Porém, esta não nos parece ser, ainda, a forma mais correta de se interpretar e aplicar as prisões preventivas. Isto porque o sistema acusatório desenhado na Constituição Federal é absolutamente incompatível com a figura de um juiz que age de ofício, principalmente em desfavor de uma das partes ao determinar sua prisão preventiva sem que esta seja requerida pelo órgão responsável pela acusação. Quando o juiz determina a prisão preventiva de ofício, confunde-se com a figura do acusador, que é quem tem legitimidade para requerer a prisão cautelar do acusado. E ao agir de ofício, o juiz, necessariamente, rompe com a sua imparcialidade, pedra angular de todo o sistema acusatório.
E tal entendimento não significa, de forma alguma, diminuição da necessária proteção às mulheres e demais vítimas cotidianas de violência doméstica, mas apenas garantir que o processo se desenvolva dentro dos limites constitucionais. Isto porque, da mesma forma que a vítima tem o direito de ser protegida (e deve ser protegida), o acusado tem direito de ser julgado por um juiz imparcial, e a única forma possível de se garantir ambos os direitos é pela separação absoluta entre o julgador e acusador. E essa eficiência na proteção da vítima é muito mais facilmente alcançada com investimentos nas Varas Especializadas e nas suas equipes multidisciplinares do que com a flexibilização de garantias processuais. Destaca-se que não se advoga aqui a proibição das prisões preventivas, mas apenas que essas somente podem ser determinadas pelo juiz quando requeridas pelo Ministério Público ou representadas pela Autoridade Policial, mas nunca de ofício. Entendimento contrário, com todo respeito, fere de morte a imparcialidade judicial e o sistema acusatório.
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