Por Rômulo de Andrade Moreira
Foram publicadas no Diário Oficial da União de quarta-feira (4/4) duas novas leis, uma delas alterando a chamada Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), e a segunda modificando a lei que trata das atribuições investigatórias da Polícia Federal (Lei 10.446/02). As alterações merecem alguma análise. É o que faremos, conjuntamente, a seguir:
Foram publicadas no Diário Oficial da União de quarta-feira (4/4) duas novas leis, uma delas alterando a chamada Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), e a segunda modificando a lei que trata das atribuições investigatórias da Polícia Federal (Lei 10.446/02). As alterações merecem alguma análise. É o que faremos, conjuntamente, a seguir:
A primeira nova lei, mudando o Capítulo II do Título IV da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), acrescentou-lhe a Seção IV, com a seguinte epígrafe:
“Seção IV
Do Crime de Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência
Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.
§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.
§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis”.
Até esta alteração legislativa, a sanção prevista para o descumprimento das medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha era a decretação da prisão preventiva, nos termos do artigo 313, III do Código de Processo Penal, não sendo cabível a responsabilidade criminal do indiciado ou do acusado pelo crime de desobediência, pois, havendo sanção já prevista para a recalcitrância (a decretação da prisão preventiva), não subsistiria a responsabilidade penal, salvo se houvesse ressalva expressa na lei, como ocorre, por exemplo, nos artigos 218 e 219 do Código de Processo Penal, relativamente à testemunha faltosa.
Assim, se a lei processual penal já estabelecia a decretação da prisão preventiva em caso de não cumprimento da medida protetiva de urgência, não era possível a responsabilização criminal do agente pelo crime de desobediência. Tal exegese decorre da aplicação do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, considerado que é como ultima ratio.
Mutatis mutandis, vejamos a jurisprudência:
“Não ocorre o crime do art. 330 do Código Penal, na conduta da vítima, previamente cientificada, que deixa injustificadamente de comparecer à audiência de oitiva, fato que apenas a sujeita à condução coercitiva, nos termos do art. 201, parágrafo único do Código de Processo Penal, que não ressalva a possibilidade de cumulação com o reconhecimento do crime de desobediência” (TACRSP - RJDTACRIM 28/84).
“Não se justifica o processo penal por desobediência, uma vez que a lei prevê remédio específico para a punição da mesma” (TASP - RT 368/265).
“Para a configuração do crime de desobediência não basta o fato material do não cumprimento da ordem legal dada pelo funcionário competente. É indispensável que, além de legal a ordem, não haja sanção especial para o seu não cumprimento” (TACRIMSP – AC – rel. Chiaradia Netto – RT 399/283).
Também no Superior Tribunal de Justiça:
“Para a configuração do delito de desobediência não basta apenas o não cumprimento de uma ordem judicial, sendo indispensável que inexista a previsão de sanção específica em caso de seu descumprimento. Precedentes” (5ª Turma – Habeas Corpus 68.144/MG – relator ministro Gilson Dipp – j. 24/4/2007 – DJU 4/6/2007, p. 394).
O mesmo se diga em relação ao tipo penal previsto no artigo 359 do Código Penal — desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito —, considerando que há determinadas medidas protetivas de urgência consistentes na suspensão de direitos, como suspensão da posse ou restrição do porte de armas (artigo 22, I da Lei Maria da Penha).
É bem verdade que a nova lei, expressamente, não excluiu a aplicação de outras sanções cabíveis; nada obstante, entendemos que se fez referência à possibilidade de decretação da prisão preventiva, além da responsabilidade penal pelo novo delito.
É evidente que denunciar o descumpridor da medida protetiva de urgência por dois ou três crimes — descumprimento de medidas protetivas de urgência, desobediência e desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito — parece-nos um inaceitável bis in idem.
Assim, doravante, além da possibilidade da decretação da prisão preventiva (se não for o caso, evidentemente, da substituição da medida protetiva de urgência por outra mais eficaz, visto que “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”, devendo sempre ser decretada “em último caso”, nos termos do artigo 282, parágrafo 4º e 6º do Código de Processo Penal), será possível que o Ministério Público ofereça denúncia pelo crime tipificado no artigo 24-A da Lei 11.340/06, ainda que se trate de medida determinada por um juiz cível, o que será raríssimo, tendo em vista se tratar de competência de um juiz penal.
Neste caso, observa-se que não se trata de infração penal de menor potencial ofensivo, nada obstante a pena máxima ser igual a dois anos, pois, nos termos do artigo 41 da mesma Lei Maria da Penha, não se aplica aos crimes praticados em situação de violência doméstica ou familiar o disposto na Lei 9.099/95.
Portanto, incabível serão a transação penal, a composição civil dos danos, a suspensão condicional do processo, a lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência, sendo possível, outrossim, a lavratura do auto de prisão em flagrante e a instauração de inquérito policial (artigos 69, 74, 76 e 89 da Lei 9.099/95).
Trata-se, ademais, de um crime de ação penal pública incondicionada, cujo procedimento será o sumário, disciplinado nos artigos 531 a 536 do Código de Processo Penal, aplicando-se, por analogia, o artigo 538 do Código de Processo Penal.
A nova lei afastou, igualmente, a possibilidade de aplicação do artigo 322 do Código de Processo Penal, pois, na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança, não mais a autoridade policial, como é permitido nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos, nos termos do artigo acima citado.
Já a outra nova lei, a 13.642/18, acrescentou o inciso VII ao artigo 1º da Lei 10.446/02, que regulamenta o inciso I do parágrafo 1º do artigo 144 da Constituição Federal, dispondo sobre a atribuição da Polícia Federal para investigar infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme.
De agora em diante, poderá o Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo da responsabilidade dos demais órgãos de segurança pública arrolados no artigo 144 da Constituição, especialmente as polícias militares e civis dos estados, também proceder à investigação de “quaisquer crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres”.
Por fim, observa-se que a Lei 10.446/02 trata apenas de atribuição da Polícia Federal, e não de competência da Justiça comum federal, cujo tratamento encontra-se no artigo 109 da Constituição. Portanto, salvo hipótese de incidência de um dos incisos deste artigo — por exemplo, os seus incisos V e V-A —, a competência para o processo, julgamento e execução continuará sendo, em regra, da Justiça comum estadual.
Rômulo de Andrade Moreira é procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia e professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador (Unifacs).
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