Nova biografia da autora que faria 104 anos na semana que passou busca desmistificá-la
El PAÍS
ANDRÉ DE OLIVEIRA
São Paulo
Carolina Maria de Jesus está em eventos literários, em debates públicos, em peças de teatro, no cinema, em letras de música, vira e mexe também na imprensa. Só que Carolina já esteve em ainda mais evidência. Seu livro de estreia, Quarto de Despejo, quando lançado, vendeu 10 mil cópias em cerca de uma semana. Só em São Paulo. Naquela época, 1960, foi alçada do dia para noite a figura única, requisitada por todos. Viveu dias intensos, foi traduzida em mais de duas dezenas de línguas, chegou a Europa, Ásia, América Latina. Depois acabou saindo de cena, morreu em 1977, em relativo esquecimento. Na semana em que ela completaria 104 anos, o movimento de resgate de sua obra e vida surge como uma forma de ocupar um lugar que a escritora conquistou, mas que o tempo – e certa dose de descaso – fez esquecer.
O lançamento do livro Carolina: uma biografia, editado pela Malê, na última quinta-feira, 15, em São Paulo, e no próximo dia 20, no Rio, junta-se aos esforços de rediviva por qual a obra da escritora tem passado nos últimos dez anos. Para seu autor, o jornalista Tom Farias, a principal intenção é humanizar a figura de Carolina de Jesus, tentando desvinculá-la do mito. A história mais conhecida é de que no final da década de 1950, o jornalista Audálio Dantas topou com Carolina na favela do Canindé, zona norte de São Paulo, e depois de uma breve conversa, ficou sabendo que aquela mulher negra, que trabalhava na maior parte do tempo como catadora de papel, e que criava sozinha três filhos pequenos, era autora de dezenas e dezenas de cadernos. Entre eles, um diário extensíssimo, que, editado por Dantas, virou o livro Quarto de Despejo.
O cotidiano da vida no Canindé – o verdadeiro quarto de despejo do título do livro – narrado por Carolina de Jesus é esquálido, violento, permeado por doenças, alcoolismo e fome, a fome que, logo de início, é definida como a escravidão dos tempos modernos. Mas também é cheio de suas reflexões sobre o Brasil e a vida da mulher negra. No Brasil, o relato literário recebeu críticas e comentários de escritores e intelectuais como Sérgio Milliet, Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira. No exterior, Carolina foi recebida com entusiasmo por Pablo Neruda e Octavio Paz. Agora, com a nova biografia, Farias pretende colocar luz sobre o que aconteceu antes do sucesso de O Quarto de Despejo na vida de Carolina. “É claro que o papel do Audálio foi fundamental para tudo que aconteceu com ela, mas o livro não foi um mero acaso, mas algo que ela perseguiu durante vinte anos”, diz.
Para Farias, que reconstruiu a história da autora usando as mais de 5.000 páginas do acervo da escritora – espalhado em diferentes locais –, a partir de entrevistas com pessoas que conviveram com ela e, por fim, por meio de pesquisa em jornais e revistas, Carolina, ao contrário do que se pensa, não nasceu intelectualmente em 1960, com a publicação de seu livro. Assim, a biografia revela textos e matérias de jornais em que Carolina de Jesus já aparecia em 1940. “Ela fazia uma ronda pelas redações e rádios, apresentava-se como 'Carolina Maria, a poetisa negra', e ia oferecendo seus textos para publicação. Muitas vezes, era olhada de forma enviesada, tratada com desdém, mas teve alguns sucessos. E, quando não teve sua produção publicada, acabou virando, algumas vezes, pauta dos jornalistas”, conta.
Uma das descobertas do biógrafo, por exemplo, foi que Carolina muito provavelmente chegou a viver também no Rio de Janeiro entre 1940 e 1942, quando apareceu como personagem de uma reportagem do jornal A Noite. Descrita pelo repórter como alguém de olhos com brilho singular, “sintomático das pessoas de espírito inquieto e perscrutador”, diz em um tom bem humorado que para viver honestamente na antiga capital do país teve de trabalhar como cozinheira, mas que, querendo ver se era capaz de fazer bons quitutes, como fazia bons versos, descobriu que na cozinha “a inspiração falhou miseravelmente!”.
Com o lançamento de Quarto de Despejo, em 1960, Farias diz que a recepção calorosa do livro veio acompanhada também de alguns narizes tortos, que, ao longo do tempo, foram minando a projeção de Carolina. “Ela passou a ser conhecida como língua de fogo, defendia em entrevistas a reforma agrária, fazia elogios à revolução cubana e, praticamente sem estudos formais, despertou inveja do status-quo. Os livros subsequentes foram praticamente ignorados e ela, depois de ter conseguido sair da favela, morando no bairro de classe média de Santana, isolou-se em uma chácara na região de Parelheiros [extremo sul de São Paulo]”, conta. A história de Carolina, para além de seu sucesso, é mesmo um resumo da desigualdade brasileira.
“Em certo ponto, Carolina percebeu que, em suas próprias palavras, tinha virado um artigo de consumo, alguém que era vista com curiosidade e isso a deixou deprimida”, diz Farias. Nascida em Sacramento, no estado de Minas Gerais, em 1914, num local que ainda recendia (e de fato vivia) a lógica da escravidão, Carolina Maria de Jesus sempre se enxergou como uma criadora e perseguiu essa imagem. Tom Farias defende que sua biografia e todo movimento em torno da autora busca colocá-la exatamente neste lugar. Sem nunca esquecer que seu livro mais famoso foi dos maiores best-sellers do Brasil e hoje circula por 46 países, em 16 idiomas, tem três edições em Cuba, quatro no Japão, despertou um projeto de filme nos Estados Unidos – abortado quando a autora morreu – sendo um testemunho literário exato da vida de uma mulher negra.
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