Adultos violentavam adolescentes pobres em troca de chuteiras ou um pouco de dinheiro.
Há denúncias envolvendo as categorias de base de Independiente e River Plate
El País
CARLOS E. CUÉ
Buenos Aires
A promotora María Solead Garibaldi ainda se mostra chocada quando descreve como os abusadores por ela investigados conseguiam molestar de um garoto pagando tão pouco. “Davam-lhes 200 pesos [33 reais], uma cueca, uma carga no cartão SUBE [de transporte coletivo], e eles aceitavam. São crianças pobres, longe das suas casas, sem seus pais, muito vulneráveis”, conta ao EL PAÍS. Garibaldi comanda uma operação que já levou cinco abusadores para a prisão e está causando comoção em toda a Argentina ao revelar uma rede de exploração sexual de meninos a partir dos 14 anos nas categorias de base do futebol. Esse esporte é justamente a única maneira que milhares de crianças argentinas têm de escaparem da pobreza, quando deixam seus povoados natais e vão viver nos alojamentos dos grandes clubes, na esperança de triunfar. Era lá que os aliciadores os procuravam, sempre os mais pobres. Sete garotos denunciaram abusos no Independiente, o caso comandado pela promotora Garibaldi. Mas agora, além disso, surgiu outra denúncia de abusos nas categorias de formação do River Plate, apresentada por uma médica que trabalhou lá entre 2004 e 2011. O escândalo cresce, e pouco a pouco mais adolescentes parecem tomar coragem de denunciar a violência sexual.
O futebol domina quase tudo na Argentina. Por isso o impacto de uma notícia como essa é muito maior em um país onde a bola é religião e todas as crianças sonham em jogar nas categorias de base de seu clube. Milhares de pais estão aterrorizados com a ideia de que seus filhos, que vivem nos alojamentos dos clubes ou passam ali boa parte da semana, tenham sofrido abusos similares. Segundo a promotora Garibaldi, no entanto, os aliciadores só abordavam dos meninos especialmente desprotegidos.
“Durante a investigação vimos que os abusadores não conseguiam acesso aos adolescentes que tinham um poder aquisitivo mais alto ou algum empresário. Esses logo bloqueavam as investidas no Whatsapp ou nas redes sociais. Mas os outros, os mais pobres, aceitavam. Ofereciam a eles um pouco de dinheiro, uma viagem ao interior para visitar os pais ou chuteiras novas. São meninos que não têm meios de conseguir tudo isso. Os abusadores chamavam os rapazes para apartamentos especialmente reservados para isso e os molestavam. Pagavam entre 200 e 800 pesos [entre 33 e 130 reais], de acordo com o que faziam, aponta a promotora. Entre os detidos no escândalo há um árbitro, Martín Bustos, um famoso empresário de atores, Leonardo Cohen Arazi, um empresário de jogadores, Alejandro Carlos Dal Cin, e um organizador de campeonatos infantis, Juan Manuel Díaz Vallone.
O caso cresce
A investigação no Independiente, que o clube ajudou a levar adiante porque a primeira denúncia surgiu de seu próprio psicólogo, alarmado com o relato de um dos menores, já causou um grande impacto. Contudo, a chegada de uma nova denúncia no River Plate, de cujas categorias de base saíram algumas das estrelas do futebol mundial, como o atacante Gonzalo Higuaín, ampliou o escândalo. Este caso parece ainda menos avançado, porque não são as supostas vítimas que denunciam, e sim uma médica que trabalhou no clube e foi demitida em 2011. Ali os abusados seriam pelo menos três, dois garotos e uma garota. O River afirma estar à disposição da Justiça para esclarecer a denúncia, mas ainda não há dados concretos nem dos abusados, nem dos abusadores. O que parece bastante claro é que o mundo das categorias de base do futebol parece o lugar ideal para que os abusadores se aproveitem de meninos em situação de vulnerabilidade socioeconômica.
“Os garotos já consideravam o abuso quase natural. A maioria tem namorada, para eles era só dinheiro. Uma maneira de ter acesso a coisas inatingíveis como chuteiras novas. Agora, depois que tudo veio à tona, começam a perceber que foram vítimas. Essas pessoas sabem que eles são vulneráveis. Estão longe de seus pais, muitos nem têm dinheiro para ir vê-los. Os abusadores compartilhavam os números dos meninos que estavam mais dispostos”, conta Garibaldi.
O escândalo desatou todo tipo de rumores nas redes sociais, sem nenhum dado confiável sobre os possíveis mentores do esquema, mas a promotora insiste que os únicos abusadores confirmados são os detidos. Os garotos, pelo menos diante dela, não falaram de mais ninguém. A investigação acabou de começar e ela está convencida de que surgirão mais abusados e abusadores. “Tenho um quarto cheio de vídeos, CDs e pen drives que ainda não pudemos analisar. Vamos ver o que temos ali. E há muitos telefones que temos que cruzar. Ainda há muito a descobrir”, sentencia. O futebol argentino, que já teve vários escândalos de corrupção e violência entre torcedores, agora é o epicentro de um inédito escândalo de abusos sexuais.
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