Reconhecida como grande poetisa norte-americana e figura influente da cultura afroamericana, lutou pelos direitos civis e pela igualdade depois de superar um trauma na infância
El País
ALBERTO LÓPEZ
4 ABR 2018
Quando uma pessoa pode contar que, ao longo da vida, foi poetisa, atriz, cantora, bailarina, escritora, cozinheira, jornalista, condutora de bondes e até prostituta… só resta concluir que teve uma vida completa. Se a isso acrescentamos que escreveu sete autobiografias, teve uma indicação para o prêmio Pulitzer, três para o Grammy e mais de meia centena de títulos honoríficos, podemos fazer uma ideia de quem foi e o que representou Maya Angelou, mais conhecida como a doutora Angelou, apesar de nunca ter tido um título universitário, por sua influência na cultura afroamericana nas últimas décadas.
E tudo o que conseguiu, incluindo transformar-se em defensora dos direitos civis e da igualdade, foi a partir da superação pessoal: depois de um abuso sexual na infância, sofreu um mutismo patológico que durou quase cinco anos.
Maya, apelido derivado de “My” (meu) ou “Mya sister” (minha irmã), que ganhou do seu irmão mais velho, foi uma respeitada porta-voz das pessoas de raça negra e das mulheres e produziu obras consideradas uma defesa da cultura negra. Não era isenta de polêmica – sempre houve tentativas de censurar seus livros nas livrarias norte-americanas –, mas seus trabalhos são recorrentes nas escolas e universidades do mundo todo. As obras mais importantes de Angelou foram rotuladas como autobiografias de ficção, muitos críticos, no entanto, as qualificam como uma tentativa de desafiar a estrutura comum das autobiografias, criticando, mudando e expandindo o gênero, já que seus livros focam em assuntos como o racismo, a identidade, a família e as viagens.
Marguerite Annie Johnson, seu nome verdadeiro, nasceu em St. Louis, Missouri, em 4 de abril de 1928. Foi a segunda filha de um porteiro e nutricionista da marinha e de uma enfermeira. Quando Angelou tinha três anos e seu irmão quatro, a separação de seus pais fez os dois irmãos viajarem sozinhos de trem para o Arkansas, onde morariam com a avó paterna, Annie Henderson, que era uma exceção nas duras condições econômicas dos afroamericanos na época porque prosperara financeiramente durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial graças a uma loja de artigos de primeira necessidade.
A avó, com sua força e independência, foi um grande modelo e uma fonte de inspiração para Maya. A menina logo perceberia o que significava ser negra em uma sociedade racista. “Era horrível ser negra e não ter controle sobre minha vida”, escreveu em sua primeira autobiografia, Eu Sei Porque o Pássaro Canta na Gaiola. Naquele período de sua infância, sentiu a ausência da mãe dolorosamente.
Quatro anos depois, seu pai, sem prévio aviso, mandou os dois irmãos de volta para a mãe em St. Louis. Aos tinha oito anos, Maya foi violentada pelo namorado de sua mãe. Contou para o irmão e este contou para o resto da família. O homem foi julgado e declarado culpado, mas só foi condenado a um dia de prisão. Quatro dias depois de sair da cadeia foi assassinado, provavelmente pelos tios de Angelou, e Maya permaneceu muda durante quase cinco anos acreditando que “minha voz o havia matado; eu matei aquele homem porque disse seu nome. E depois pensei que nunca mais voltaria a falar, porque minha voz poderia matar qualquer um...”
Foi durante esse período de silêncio que Maya Angelou desenvolveu a memória extraordinária, o amor pelos livros e pela literatura e a grande habilidade de observar e escutar o mundo que a rodeava. De volta à casa da avó, uma professora e amiga da família, a senhora Flowers, a ajudou a recuperar a fala e lhe apresentou Charles Dickens, William Shakespeare, Edgar Allan Poe, Douglas Johnson e James Weldon Johnson, escritores que, ao lado de artistas feministas de raça negra como Frances Harper, Anne Spencer e Jessie Fauset, teriam influência em sua vida e em sua carreira.
Aos 14 anos, Maya Angelou e seu irmão voltam a morar com a mãe, desta vez em Oakland, Califórnia, e começa uma vida rica em experiências e aventuras. Durante a Segunda Guerra Mundial, Angelou cursou a Escola de Trabalho Social da Califórnia e, antes de se formar, trabalhou como condutora de bondes e foi a primeira mulher negra a ter esse trabalho em São Francisco. Três semanas depois de terminar a escola, aos 17 anos, deu à luz seu filho e se viu obrigada a aceitar numerosos trabalhos para sustentá-lo, entre eles trabalhar como prostituta ou administrar um bordel.
Em 1950 Maya se casou com Tosh Angelos, um músico grego amador, mas o casamento durou poucos anos. A carreira de Angelou se voltou para o palco depois que ela estudou dança e teatro. Fez uma turnê por 22 países da Europa cantando a ópera ‘Porgy and Bess’ e atuou em várias peças dentro e fora da Broadway, entre elas ‘Cabaret for Freedom’, que escreveu com Godfrey Cambridge. Em Paris conheceu o esquivo James Baldwin, figura emblemática da literatura negra e que também marcaria sua vida na defesa dos direitos civis dos negros.
Ganhou a confiança de Martin Luther King e trabalhou com o ativista sul-africano Vusumzi Make, o que lhe permitiu acompanhar de perto o processo da independência dos estados africanos. Viveu no Cairo e em Acra, onde foi editora do jornal ‘The Arab Observer’, escreveu artigos para o ‘The Ghanaian Times’ e apareceu na programação da Ghana Broadcasting Corporation. Ali conversou com Malcolm X, conheceu Nelson Mandela e se adaptou tanto ao mundo acadêmico como aos meios de comunicação, experiências que utilizou depois de sua volta aos Estados Unidos.
Em meados dos anos 1960, Maya Angelou desenvolveu sua escrita e confirmou seu compromisso com o ativismo social e a promoção dos direitos civis. Incentivada por amigos como James Baldwin, Angelou começou a escrever sua primeira autobiografia, a aclamada ‘I Know Why Caged Bird Sings’ (Eu Sei Porque o Pássaro Canta na Gaiola), sobre seus primeiros anos de vida, que lhe valeu uma indicação para o National Book Award em 1974. Em 1979, Angelou a adaptou para um roteiro de televisão e produziu os volumes seguintes de sua autobiografia até 2002.
Desde o final da década de 1960, a talentosa Maya Angelou dedicou sua energia a uma ampla variedade de projetos. Foi nomeada pelos presidentes Ford e Carter para diferentes comissões culturais, escreveu com frequência para a televisão e o cinema, obteve uma indicação para o Emmy por seu papel em ‘Roots’ em 1977, continuou aparecendo nas telas, por exemplo na série ‘Raízes’ e até compôs canções para Roberta Flack. Em 1973 se casou de novo, desta vez com Paul du Feu, ex-marido de uma feminista australiana, e por isso foi criticada pelos radicais negros.
Em 1979 fez amizade com uma desconhecida apresentadora de Baltimore, Oprah Winfrey, que se tornou sua discípula por admirar sua capacidade de sobrevivência e sua habilidade de conquistar seu espaço em mundos até então reservados para os homens brancos. Anos mais tarde, Winfrey, já rainha da televisão norte-americana e criadora de seu próprio Clube do Livro, foi um grande apoio para Maya Angelou.
Em 1981, Angelou e du Feu se divorciaram. Ela voltou para o sul dos Estados Unidos porque sentia que precisava se reconciliar com seu passado. Apesar de não ter um título universitário, aceitou ser professora de Estudos Americanos na Universidade de Wake Forest, Carolina do Norte, onde foi um dos poucos docentes contratados em regime integral. A partir desse momento, Angelou se considerou “uma professora que escreve”.
Em 1993, Maya recitou ‘On the Pulse of Morning’ na cerimônia de posse de Bill Clinton, algo que não acontecia desde 1961, quando Robert Frost recitou na posse de John F. Kennedy. Isso lhe trouxe mais fama e também mais reconhecimento a seus trabalhos anteriores. A gravação do poema lhe rendeu um Grammy. Em junho de 1995, apresentou um segundo poema em público, intitulado ‘A Brave and Startling Truth’ (Uma Verdade Corajosa e Surpreendente), para comemorar o 50º aniversário da ONU.
Maya estreou como diretora de cinema com ‘Down in the Delta’ em 1998. Também escreveu vários livros infantis, ensaios, artigos e contos em várias publicações periódicas e, em 2006, apoiada em sua amizade com Oprah Winfrey, começou a apresentar um programa de rádio chamado ‘Oprah and Friends’. Anos antes havia dedicado à apresentadora sua coleção de ensaios Wouldn't Take Nothing for My Journey Now (Não Levaria Nada para Minha Viagem Agora).
Em 2000, Angelou recebeu do presidente Clinton a Medalha Nacional das Artes e, em 2002, a Hallmark apresentou a ‘Coleção de Mosaicos da Vida de Maya Angelou’, uma série de cartões de felicitação com seus versos, enquanto ela levava adiante seus planos de escrever um livro de receitas e dirigir outro longa-metragem, além de fazer palestras onde fosse requisitada.
No final de 2010, Angelou doou seus escritos pessoais e lembranças da carreira ao Centro Schomburg para a Pesquisa da Cultura Negra no Harlem. A doação consistiu em mais de 340 caixas nom notas escritas a mão em cadernos de folhas amareladas para sua primeira autobiografia, correspondência de fãs e correspondência pessoal e profissional.
Em 2013, aos 85 anos, Angelou publicou a sétima autobiografia, intitulada ‘Mom & Me & Mom’ (Mamãe & Eu & Mamãe), enfocada na relação com sua mãe.
Maya Angelou faleceu em 28 de maio de 2014. Tinha 86 anos e foi encontrada por sua enfermeira e cuidadora. Apesar do estado de saúde frágil, que a obrigara a cancelar aparições públicas, Angelou estava trabalhando em um novo livro, uma autobiografia sobre suas experiências com líderes nacionais e mundiais.
Durante o funeral na Universidade de Wake Forest, seu filho recordou que, apesar das constantes dores derivadas de sua carreira de bailarina e das crises respiratórias, Angelou escreveu quatro livros durante os últimos dez anos de vida.
As condolências pelo falecimento de Angelou chegaram de todos os setores e de todas as partes do mundo, desde artistas até líderes mundiais, incluindo Bill Clinton e Barack Obama. Na semana seguinte à morte de Angelou, sua primeira autobiografia, Eu Sei Porque o Pássaro Canta na Gaiola, ocupou o primeiro lugar na lista de mais vendidos da Amazon.
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