Carta Forense
02/04/2018 por Alice Bianchini
02/04/2018 por Alice Bianchini
A Lei 12.403/11 alterou o art. 311 do CPP para não mais admitir a decretação da prisão preventiva pelo juiz de ofício na fase policial. Tendo em vista que o art. 20 da Lei Maria da Penha, que é anterior, permite expressamente tal possibilidade (prisão preventiva de ofício na fase policial), uma parte da doutrina entendeu que estaria revogado o art. 20 nesse ponto e, outra, a qual me filio, considerou que o art. 20 permanece em vigor em toda a sua integralidade, não tendo sido atingido, portanto, pela alteração legislativa.
A principal justificativa para entender que o art. 20 não sofreu qualquer alteração baseia-se no fato de ser, a Lei Maria da Penha, norma especial, e, por conta disso, é ela que deve prevalecer sobre a regra geral (do CPP). É nesse sentido o posicionamento de Rui Porto[1] e de Andrey Borges de Mendonça[2]
Admitimos que o tema é delicado, pois atinge valor muito caro para o processo penal, que é o sistema acusatório. Todos os argumentos trazidos por aqueles que elogiaram a alteração legislativa (que excluiu a possibilidade de o magistrado decretar a prisão preventiva na fase policial) são corretíssimos, não fosse uma questão que faz com que toda a discussão mude de roupagem: é que a violência doméstica e familiar contra a mulher praticada no contexto da Lei Maria da Penha encontra-se dentro do eixo de efetivação dos direitos humanos; ela é uma medida especial de caráter temporário (ou de ação afirmativa como prefere a maioria) que visa acelerar o processo de diminuição da violência doméstica e familiar contra a mulher. Tal característica faz com que sejam admitidas em seu bojo que determinadas matérias sejam abordadas de forma diferenciada.
E mais, exatamente por se tratar de crime que envolve proximidade entre agressor e vítima, bem como uma maior vulnerabilidade dessa última, as medidas protetivas de urgência, na maioria das vezes, precisam ser decretadas imediatamente após o evento criminoso. Como bem lembram Domingos Costa e Eugênio Pacelli, “não há um campo em que a experiência humana pode oferecer um grau minimamente seguro quanto ao risco de reiteração de comportamentos, ou, no que aqui interessa, com prognósticos de danos futuros, esse é seguramente, o âmbito das relações domésticas.”[3]
Em relação ao saudável e necessário distanciamento do juiz em relação aos fatos (tomando uma posição equidistante), quando se está na seara das medidas protetivas de urgência, a Lei Maria da Penha exige exatamente o seu contrário, ou seja, ela concita o magistrado a tomar uma posição. Ela exige um comprometimento do juiz com a causa da violência doméstica e familiar e pede uma atuação marcada pela eficiência, e pela capacitação plena do magistrado para que compreenda as questões de gênero e possa decidir, não a favor da mulher em situação de violência, mas de acordo com tal compreensão.
O juiz precisa ter uma sensibilidade muito aguçada para analisar profundamente se não está acontecendo coação ou outra situação que aniquile a vontade livre da mulher. Se o juiz está informado que a maioria das mulheres silenciam durante anos a agressão por medo do agressor (1º lugar) e por dependência financeira (2º lugar) ele acaba tendo mais instrumentos para analisar se a desistência está sendo voluntária ou causada por algum agente externo à vontade da mulher em situação de violência de gênero.
Porque a Lei Maria da Penha concede tal protagonismo? O protagonismo dado ao magistrado decorre da preocupação central da Lei: prevenção e assistência à mulher, filhos, familiares e testemunhas envolvidos na situação de risco objetivo e iminente, demonstrado empiricamente pelos índices de violência e pelas pesquisas.
Apesar de estarmos plenamente de acordo com a nova ideologia trazida pela Lei 12.403/2011, que é a de aniquilar com o resquício do sistema inquisitorial que existia no sistema processual penal brasileiro, a fim de que se possa restaurar o princípio do contraditório, evitando a contaminação do juiz (ao permanecer equidistante das partes), quando se trata de violência doméstica e familiar contra a mulher a questão muda de plano. Como dito anteriormente, a Lei Maria da Penha é daquelas que tratam de afirmar direitos. De acordo com o art. 4º da Convenção para eliminação de todas as formas de discriminação sobre a mulher – CEDAW:
¾ medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação
¾ de nenhuma maneira implicará, como consequência, a manutenção de normas desiguais
¾ essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento forem alcançados
A necessidade se instituir uma ação afirmativa decorre das estatísticas. Apesar de a violência vitimar mais homens do que mulheres, quando se trata de violência doméstica as vítimas são majoritariamente do sexo feminino. As estatísticas demonstram o elevadíssimo índice de homicídios, dentre outros atos violentos, praticados por homens cuja vítima mulher mantinha ou manteve com ele uma relação íntima de afeto. E o que é que mais severo: dados do Observatório da Violência Doméstica da Secretaria de Segurança Pública do RS, mostram que as vitimas de homicídio tiveram suas vidas encerradas do primeiro até o trigésimo dia do registro de ocorrência.[4]
Assim, não obstante ofender o sistema acusatório (já que o juiz acaba por perder a necessária posição equidistante), no momento da ponderação de interesses, há que preponderar a norma de proteção integral à mulher em situação de risco (LMP, art. 4º).
A Lei Maria da Penha é de ação afirmativa e, por assim ser, é da sua essência sacrificar princípios, direitos ou garantias (no caso, a garantia do sistema acusatório). Assim, não obstante a importante alteração trazida pela Lei 12.403/11, que reforçou o sistema acusatório ao não mais permitir que o magistrado, na fase policial, possa decretar prisão provisória de ofício (mantendo-se, assim, equidistante das partes e garantindo o equilíbrio processual), tal regra precisa ser excepcionada nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
[1] PORTO, Pedro Rui Fontoura. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2012, p. 79.
[2] MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão preventiva na Lei 12.403/2011. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 452.
[3] Prisão preventiva e liberdade provisória: a reforma da Lei 12.403/2011. São Paulo: Atlas, 2013. Apud MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão preventiva na Lei 12.403/2011. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 452.
[4] GERHARD, Nádia. Patrulha da Lei Maria da Penha. Porto Alegre: AGE: EDIPUCRS, 2014, p. 87.
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