Por que o período de crescimento de jovens saudáveis, bem-educados e estudiosos provoca tanta turbulência na vida e nos nervos de quem os cria
FLÁVIA YURI OSHIMA
18/12/2014
Há oito anos, o casal de pesquisadores Mario e Alice passou por um dos períodos mais delicados de suas vidas – na definição deles mesmos. Por dois anos, conviveram com três adolescentes dentro de casa. Marco, o mais velho, tinha 17 anos, e Marcelo, o do meio, 14, quando a caçula, Gabriela, mostrou os primeiros sintomas de sua entrada na adolescência, aos 12. “Já tínhamos o faro treinado. Foi fácil perceber que a Gabi estava diferente, pelo jeito de ela olhar e falar com a gente”, diz Mario. “Pensei na hora: acabou. O único filho que ainda gostava do nosso ninho partiu para outro grupo. Agora, somos nós aqui, e eles lá”, diz Alice. Lá, onde? “Onde tudo o que a gente faz ou fala está errado, inadequado e ultrapassado. Lá, naquela fase em que até nossa aptidão como seres humanos é contestada”, diz Mario. A afirmação provoca risos nos dois filhos, ao ouvir o depoimento dos pais. Marco agora tem 25 anos, e Marcelo, 22. Para garantir que pais e filhos pudessem falar abertamente de suas experiências, sem censura ou constrangimento, os nomes de pais e adolescentes que aparecem nesta reportagem foram trocados. Ainda assim, Gabriela, hoje com 20 anos, não quis participar. “É importante para ela proteger sua individualidade. É uma fase”, diz Alice.
Ao ouvir Mario e Alice discorrer sobre seus filhos, me preparo para o relato das roubadas em que os jovens bonitos sentados à minha frente se meteram para gerar tanto transtorno na vida de seus pais. “Ah, foram terríveis. Chegaram a ser insuportáveis. Houve momentos em que senti medo da reação deles…”, diz Alice. Diante do desfile de adjetivos e ausência de fatos concretos, pergunto objetivamente: eram maus alunos? “Não, isso não. Nenhum dos três deu trabalho na escola”, diz Mario. Bebiam muito? “Olha, houve aquela vez em que o Marcelo chegou meio carregado e passou o final de semana na cama. Mas acho que foi isso”, afirma Alice. E quanto a drogas? “Acho que experimentaram. Nunca nos contaram. Falamos abertamente sobre os riscos. Não me preocupei muito com isso”, diz Mario. “Me preocupava. Mas nenhum problema chegou até nós”, diz Alice. Foram agressivos, do tipo que batiam em colegas? “Não, claro que não”, dizem. Foram agressivos com vocês? Por que tinham medo da reação deles? “Foram ríspidos”, diz Alice – e imediatamente os filhos protestam.
“Mamãe, você repetia o mesmo conselho 20 vezes! Parecia que tínhamos 5 anos”, diz Marco. Insisto com os pais. Que fatos fizeram aquele período ser tão terrível? “Nos tornamos invisíveis”, diz Mario. “Pior que isso. Tudo o que dizíamos parecia sem importância. Às vezes, quando estava mais sensível, deixava de falar alguma coisa com medo de tirarem sarro e eu acabar chorando ou brigando com eles”, diz Alice. Marcelo tem outro ponto de vista: “Não éramos mais crianças, mas eles nos tratavam como se fôssemos”.
Marco, Marcelo e Gabriela deram a seus pais o tipo de preocupação que jovens que começam a namorar, sair à noite e ter interesses próprios dão. Fizeram os pais buscá-los no meio da madrugada. Apareciam com amigos para dormir em casa sem avisar, como se privacidade fosse algo que cinquentões não precisam mais ter. Aprontavam pequenas trapaças estudantis, como esconder que estavam mal em trigonometria até que fosse quase tarde demais para encontrar um professor particular. Fora isso, os três foram o que se pode chamar de bons filhos. São inteligentes e capazes de estabelecer laços de amizade e relações de afeto saudáveis com quem convivem, e também com seus pais. Foram bem na escola e entraram em boas faculdades. Dois deles estão na PUC – a Pontifícia Universidade Católica, de São Paulo. O mais velho estudou na Universidade Federal do ABC, na cidade de Santo André, onde Alice trabalhava.
Quando se pergunta a eles sobre a própria adolescência, não contam nada de extraordinário. “Eu não tinha dinheiro para nada, mas era até divertido”, diz Marco. “Eu ainda não tenho”, afirma Marcelo, e ri. Nada no depoimento deles lembra o drama emocional vivido pelos pais no mesmo período. É como se eles e seus pais tivessem vivido em planetas diferentes, não na mesma casa de classe média da Zona Sul de São Paulo.
A experiência da família de Mario e Alice não é rara. Um novo livro lançado no início do ano nos Estados Unidos, All joy & No fun (ele será lançado no Brasil em abril de 2015, pelo selo Bicicleta Amarela, da Rocco, com o título provisório Muita alegria, pouca diversão), defende uma tese simples e provocativa: a adolescência gera mais sofrimento nos pais que nos jovens que passam por ela. Escrito pela jornalista americana Jennifer Senior, o livro se baseia em estudos e em sua experiência de 20 anos escrevendo sobre família para a revista New York. “Noto há muito tempo dois fenômenos. O primeiro é o tipo de reclamação que ouço de pais de adolescentes”, diz Jennifer. “O segundo é o fato de os filhos desses pais serem pessoas absolutamente normais, e do bem.”
O psicólogo americano Laurence Steinberg, autor de alguns dos trabalhos mais famosos sobre adolescência, é categórico em seu livro Crossing paths (Caminhos cruzados, sem tradução em português). “Acompanhei centenas de adolescentes ao longo de décadas. Não me parece que os garotos passem por esse período com sofrimento. Ao contrário, para a maioria deles é um voo bastante prazeroso”, afirma. Isso não quer dizer que eles não passem por momentos de crise pessoal ou estresse. Normalmente, esses episódios estão ligados a descobertas e a novos desafios, altamente estimulantes. O saldo final é positivo.
Os pais é que são deixados para trás, ao tentar absorver as mudanças de seus filhos. Neles, os efeitos negativos dessa fase parecem inegáveis. Um estudo conduzido por Steinberg, publicado no mesmo livro, acompanhou 200 famílias por dois anos, a partir do momento em que o filho mais velho entrou na puberdade. Quarenta por cento dos casais sofreram uma queda na saúde mental, com sentimentos de rejeição e baixo valor pessoal. Para esses, houve declínio da vida sexual e aumento de sintomas físicos de estresse. O estudo estabeleceu como grupo de controle casais da mesma faixa etária sem filhos, para que as mudanças dos períodos pré-andropausa e pré-menopausa pudessem ser isoladas.
Aadolescência é um fenômeno recente. Até a Revolução Industrial, não existia esse conceito. Havia as crianças, e havia jovens prontos para trabalhar aos 13 ou 14 anos, ao lado de pais cuja expectativa de vida era de 40. No século XIX, as condições de saúde e segurança melhoraram. As empresas passaram a cuidar melhor de seus trabalhadores (porque detinham o conhecimento técnico), e a vida profissional se prolongou. Os jovens não precisavam mais pegar o lugar de seus pais tão rapidamente. Desde então, não são crianças que precisam ficar protegidas em casa, nem adultos que podem criar sua independência trabalhando. Eram adolescentes, um termo que começou a se popularizar na década de 1940, graças ao trabalho do psiquiatra alemão Erik Erikson.
“Retardar a entrada do jovem no mercado de trabalho causou uma contradição fundamental nesses jovens”, diz a psicoterapeuta social Ana Bock. “Biologicamente, ele está pronto para se sustentar. Socialmente, ainda não está autorizado.” A autonomia que não pode mais ser exercida no mercado de trabalho se transforma num projeto pessoal. Ele precisa, necessariamente, desgrudar da figura de autoridade dos pais para realizar-se. “A maioria de nós vivenciou a adolescência como uma fase de duplo impedimento: não estamos mais autorizados a ser crianças e ainda não temos a possibilidade de ser adultos”, escreveu o escritor inglês Julian Barnes, sobre sua passagem por esse período. Esses são os dilemas vividos pelos jovens que não precisam trabalhar. Os que trabalham (no Brasil, cerca de 92 milhões de pessoas entre 10 e 19 anos, segundo os dados do IBGE de 2013) vivem outra situação. “O trabalho faz com que o jovem rapidamente entre no mundo das regras, das metas e dos horários”, diz Miguel Perosa, psicoterapeuta especializado em família e adolescentes da PUC de São Paulo. “É o ambiente de passagem para a vida adulta.” Os garotos de 14 ou 15 anos que começam a trabalhar não demonstram os mesmos tipos de conflitos de quem ainda está sob a tutela dos pais. Entre os filhos que ajudam a família financeiramente, é comum que se estabeleça uma relação de cumplicidade e parceria. Há menos conflito nessa relação que na outra.
O livro de Jennifer Senior se concentra nas famílias de adolescentes de classe média, que não precisam se sustentar até a faculdade. Nesse tipo de ambiente, o desenvolvimento psicológico dos jovens tem impacto nas relações familiares. “A puberdade é o pontapé inicial para a adolescência em 90% dos casos, mas não é a adolescência ainda”, diz Perosa. “Só nos tornamos adolescentes quando descobrimos a subjetividade.” Quando o adolescente se descobre um indivíduo único, e não apenas uma extensão da família, seu movimento natural é afirmar e fortalecer essa individualidade. “Eles sentem necessidade de se aproximar de amigos e de conteúdos que reafirmem quem querem ser”, diz Perosa. “O afastamento e algum nível de confronto são importantes para o desenvolvimento do jovem nessa fase.”
Esse afastamento saudável é um dos primeiros geradores de angústia nos pais. Um estudo feito em Chicago com 220 crianças da classe média, em dois períodos diferentes – entre os 10 e os 13 anos e, depois, entre os 14 e os 17 anos –, concluiu que o percentual de horas do dia que elas passaram com suas famílias caiu de 35% para 14%. “Lidar com essa separação exige muito dos pais. Implica ceder poder e deixar que os filhos tomem decisões sem interferir”, diz Denise Diniz, psicóloga e coordenadora do centro de gerenciamento de estresse da Universidade Federal de São Paulo.
A diminuição do tempo com os filhos é agravada pela forma como os pais encaram sua função na vida deles. Desde o momento em que eles dão seu primeiro choro, a organização da vida familiar gira em torno de seu bem-estar. Pais que trabalham destinam todo o tempo livre para cumprir o papel de cuidador. Mães deixam de trabalhar para se dedicar aos filhos. O carro que comprarão, a programação de férias e até a forma como distribuirão os móveis pela casa são decisões baseadas, primeiro, na necessidade das crianças (ou no que os pais imaginam ser essa necessidade). Depois de passar tantos anos submersos na tarefa de criar seus filhos, não é de estranhar a sensação de vazio, ou invisibilidade, relatada por muitos pais.
Filhos de qualquer idade têm o potencial de pôr em evidência problemas dos pais que eles mesmos não conheciam. No caso dos adolescentes, essa capacidade é maior. À medida que os jovens se tornam mais parecidos com adultos – na aparência, no discurso e nas atitudes –, surge a possibilidade de projeções e identificações. Na prática, significa que podem surgir – tanto da parte de pais quanto de filhos – sentimentos de competitividade, inveja e desgosto, por mais estranho que possa ser vivê-los ou reconhecê-los. A similaridade de sexos faz diferença nesse momento: a relação entre pais e filhos e mãe e filhas tem mais possibilidade de conflito. É como se as mães, ao vir as moças que se tornaram suas filhas, se dessem conta do que mudou nelas mesmas. “Minhas filhas tiveram o mesmo comportamento ao entrar na adolescência. Se afastaram de mim e do pai. Passaram a me achar velha e a me criticar por isso. Tinha 40 anos e comecei a me sentir velha”, diz Thania, engenheira e mãe de duas filhas, Clarice, de 22 anos, e Joana, de 18. O mesmo ocorre com os pais. O filho que aparece com uma namorada pode mostrar ao pai as possibilidades que ele não tem mais. “Não é que o pai esteja interessado na namorada do filho”, diz Perosa. “A questão é perceber que a vez dele passou, a juventude dele acabou. Para muitos, é um choque.”
As situações capazes de produzir reflexões (às vezes, dolorosas) são cotidianas. Os adolescentes costumam criticar as escolhas que seus pais fizeram ao longo da vida. “É o momento em que crises e conflitos não resolvidos afloram”, diz Denise Diniz. “Nesses casos, o estresse não é gerado pelo adolescente, mas pelos pontos cegos que ele ilumina na vida dos pais.” Crises no casamento são comuns. Muitos casais se separam. De acordo com o IBGE, entre 2000 e 2010 o número de divórcios de casais com filhos de mais de 18 anos aumentou. A evolução foi de 13,3% para 22,3%, enquanto o número de divórcios de casais com filhos pequenos caiu de 52,1% para 31,6%, no mesmo período.
Os adolescentes – é importante que se diga – não são anjos. Eles frequentemente se portam de forma errática e provocativa. Tornam-se mais distantes e – sim – podem ser malcriados e mais agressivos do que costumavam ser. “O adolescente errou muito pouco, por isso se sente onipotente. É difícil lidar com gente onipotente”, diz Ana Bock.
São comuns descompassos entre o desejo de autonomia dos adolescentes e sua capacidade real de lidar sozinho com as situações. Inúmeros estudos nos últimos 20 anos mostraram que a parte do cérebro responsável por controlar nossos impulsos ainda está em fase de mudança no adolescente. Ela não é tão madura quanto num adulto. Para completar, a produção do hormônio responsável por nossa sensação de prazer, a dopamina, é explosiva nessa fase. “Situações de risco produzem muito mais prazer em adolescentes que em adultos”, diz Jennifer Senior. Boa parte das preocupações dos pais é justificada. Ainda assim, mantê-los embaixo das asas não é uma opção. O desafio dos adultos é descobrir até que ponto eles podem seguir sozinhos e quando precisam de ajuda.
A psicóloga Luiza, de Belo Horizonte, sempre se deu bem com seus dois filhos, Julio, de 20 anos, e Aline, de 16. As crises vieram quando Julio atingiu a maioridade. “Ele achava que não precisava mais nos dar qualquer satisfação”, diz. Foram vários embates, até os pais e ele chegarem a um acordo: ele poderia fazer o que quisesse, mas tinha de dizer onde estava. Quando Clarice, a filha mais velha da engenheira Thania, começou a fazer dieta de forma persistente, por conta própria, a mãe resolveu intervir. “Ela não me ouvia. Eu não podia oferecer nada para comer que ela se rebelava. Entendia como uma crítica.” Clarice desenvolveu bulimia. Thania recorreu à ajuda de uma psicoterapeuta.
Ter filhos adolescentes não significa uma condenação ao estresse permanente. Os pais entrevistados para esta reportagem percorreram caminhos diferentes para chegar ao mesmo ponto: todos se dão muito bem com seus filhos. Mario e Alice, o casal do início, foram pragmáticos. Sentiram as mudanças, não gostaram de muitas delas, mas entenderam que aquele era um período em que a convivência seria diferente. Os filhos não ficariam mais no ninho, como disseram. Luiza, que não entrou em conflitos com os filhos até o mais velho chegar à maioridade, optou por negociar quando enfrentou um impasse e impôs sua autoridade. “Deixamos que eles tomem suas decisões até o limite do seguro”, diz ela. “Percebo que, quando estão em dúvida sobre algo que pode não ser legal, e interfiro dando a palavra final, eles ficam aliviados”, diz ela. Thania pediu ajuda profissional quando questões mais sérias apareceram, como a bulimia da filha. “Recorri às terapeutas das meninas sempre que não sabia como agir”, diz.
A adolescência dos filhos é um período que pode mexer com os pais. Na prática, pequenos ajustes de postura bastam para que a relação volte a fluir. “Entender o que ocorre com os jovens, saber de suas novas necessidades diminui muito a ansiedade dos pais”, diz Perosa. “A sensação de ‘ele se afastou porque me odeia’ passa.” Terapeutas e pais experientes são unânimes em dizer que o crescimento dos filhos representa uma oportunidade de estabelecer uma relação de parceria, com diálogo e negociação. “Muitos pais sofrem por enxergar o filho como uma propriedade”, diz Ana Bock. “Pais que tentam se manter estáticos e donos da razão são os que mais sofrem.”
Estabelecer uma parceria com os filhos não significa virar melhor amigo. Os jovens já têm seus amigos. Os pais podem compartilhar e se interessar, mas sem forçar, sob o risco de sufocar os filhos e de ser banidos da convivência. Não há nada que um adolescente furioso faça tão bem quanto se isolar e erguer um muro em relação aos pais.
Respeitar as necessidades dos filhos não significa que os pais tenham de fingir que não são afetados pela atitude deles. Perosa conta uma história interessante a esse respeito. Ele não conseguia dormir enquanto seus filhos adolescentes não chegavam em casa. Às 4 da manhã, eles encontravam o pai lendo na sala. “Diziam que eu não deveria passar por aquilo por causa deles. Explicava que eu estava acordado por minha causa, não por causa deles”, diz Perosa. “Eu é que não dava conta da minha preocupação. Claro que eles tinham o direito de ir a festas.” Situações como essa não são emocionalmente simples. Podem ser mais bem resolvidas se os pais tiverem clareza sobre seus próprios sentimentos.
Ao se abrir para o movimento que o crescimento dos filhos provoca, toda a família tem chance de aprender. Os adolescentes estão em busca de um novo lugar no mundo, e isso força os pais a se recolocar. “O estresse ocorre quando temos de nos adaptar a uma nova situação”, diz Denise Diniz. “É inevitável que a adolescência cause algum estresse no interior das famílias.”
FLÁVIA YURI OSHIMA
18/12/2014
Há oito anos, o casal de pesquisadores Mario e Alice passou por um dos períodos mais delicados de suas vidas – na definição deles mesmos. Por dois anos, conviveram com três adolescentes dentro de casa. Marco, o mais velho, tinha 17 anos, e Marcelo, o do meio, 14, quando a caçula, Gabriela, mostrou os primeiros sintomas de sua entrada na adolescência, aos 12. “Já tínhamos o faro treinado. Foi fácil perceber que a Gabi estava diferente, pelo jeito de ela olhar e falar com a gente”, diz Mario. “Pensei na hora: acabou. O único filho que ainda gostava do nosso ninho partiu para outro grupo. Agora, somos nós aqui, e eles lá”, diz Alice. Lá, onde? “Onde tudo o que a gente faz ou fala está errado, inadequado e ultrapassado. Lá, naquela fase em que até nossa aptidão como seres humanos é contestada”, diz Mario. A afirmação provoca risos nos dois filhos, ao ouvir o depoimento dos pais. Marco agora tem 25 anos, e Marcelo, 22. Para garantir que pais e filhos pudessem falar abertamente de suas experiências, sem censura ou constrangimento, os nomes de pais e adolescentes que aparecem nesta reportagem foram trocados. Ainda assim, Gabriela, hoje com 20 anos, não quis participar. “É importante para ela proteger sua individualidade. É uma fase”, diz Alice.
Ao ouvir Mario e Alice discorrer sobre seus filhos, me preparo para o relato das roubadas em que os jovens bonitos sentados à minha frente se meteram para gerar tanto transtorno na vida de seus pais. “Ah, foram terríveis. Chegaram a ser insuportáveis. Houve momentos em que senti medo da reação deles…”, diz Alice. Diante do desfile de adjetivos e ausência de fatos concretos, pergunto objetivamente: eram maus alunos? “Não, isso não. Nenhum dos três deu trabalho na escola”, diz Mario. Bebiam muito? “Olha, houve aquela vez em que o Marcelo chegou meio carregado e passou o final de semana na cama. Mas acho que foi isso”, afirma Alice. E quanto a drogas? “Acho que experimentaram. Nunca nos contaram. Falamos abertamente sobre os riscos. Não me preocupei muito com isso”, diz Mario. “Me preocupava. Mas nenhum problema chegou até nós”, diz Alice. Foram agressivos, do tipo que batiam em colegas? “Não, claro que não”, dizem. Foram agressivos com vocês? Por que tinham medo da reação deles? “Foram ríspidos”, diz Alice – e imediatamente os filhos protestam.
“Mamãe, você repetia o mesmo conselho 20 vezes! Parecia que tínhamos 5 anos”, diz Marco. Insisto com os pais. Que fatos fizeram aquele período ser tão terrível? “Nos tornamos invisíveis”, diz Mario. “Pior que isso. Tudo o que dizíamos parecia sem importância. Às vezes, quando estava mais sensível, deixava de falar alguma coisa com medo de tirarem sarro e eu acabar chorando ou brigando com eles”, diz Alice. Marcelo tem outro ponto de vista: “Não éramos mais crianças, mas eles nos tratavam como se fôssemos”.
Marco, Marcelo e Gabriela deram a seus pais o tipo de preocupação que jovens que começam a namorar, sair à noite e ter interesses próprios dão. Fizeram os pais buscá-los no meio da madrugada. Apareciam com amigos para dormir em casa sem avisar, como se privacidade fosse algo que cinquentões não precisam mais ter. Aprontavam pequenas trapaças estudantis, como esconder que estavam mal em trigonometria até que fosse quase tarde demais para encontrar um professor particular. Fora isso, os três foram o que se pode chamar de bons filhos. São inteligentes e capazes de estabelecer laços de amizade e relações de afeto saudáveis com quem convivem, e também com seus pais. Foram bem na escola e entraram em boas faculdades. Dois deles estão na PUC – a Pontifícia Universidade Católica, de São Paulo. O mais velho estudou na Universidade Federal do ABC, na cidade de Santo André, onde Alice trabalhava.
Quando se pergunta a eles sobre a própria adolescência, não contam nada de extraordinário. “Eu não tinha dinheiro para nada, mas era até divertido”, diz Marco. “Eu ainda não tenho”, afirma Marcelo, e ri. Nada no depoimento deles lembra o drama emocional vivido pelos pais no mesmo período. É como se eles e seus pais tivessem vivido em planetas diferentes, não na mesma casa de classe média da Zona Sul de São Paulo.
A experiência da família de Mario e Alice não é rara. Um novo livro lançado no início do ano nos Estados Unidos, All joy & No fun (ele será lançado no Brasil em abril de 2015, pelo selo Bicicleta Amarela, da Rocco, com o título provisório Muita alegria, pouca diversão), defende uma tese simples e provocativa: a adolescência gera mais sofrimento nos pais que nos jovens que passam por ela. Escrito pela jornalista americana Jennifer Senior, o livro se baseia em estudos e em sua experiência de 20 anos escrevendo sobre família para a revista New York. “Noto há muito tempo dois fenômenos. O primeiro é o tipo de reclamação que ouço de pais de adolescentes”, diz Jennifer. “O segundo é o fato de os filhos desses pais serem pessoas absolutamente normais, e do bem.”
O psicólogo americano Laurence Steinberg, autor de alguns dos trabalhos mais famosos sobre adolescência, é categórico em seu livro Crossing paths (Caminhos cruzados, sem tradução em português). “Acompanhei centenas de adolescentes ao longo de décadas. Não me parece que os garotos passem por esse período com sofrimento. Ao contrário, para a maioria deles é um voo bastante prazeroso”, afirma. Isso não quer dizer que eles não passem por momentos de crise pessoal ou estresse. Normalmente, esses episódios estão ligados a descobertas e a novos desafios, altamente estimulantes. O saldo final é positivo.
Os pais é que são deixados para trás, ao tentar absorver as mudanças de seus filhos. Neles, os efeitos negativos dessa fase parecem inegáveis. Um estudo conduzido por Steinberg, publicado no mesmo livro, acompanhou 200 famílias por dois anos, a partir do momento em que o filho mais velho entrou na puberdade. Quarenta por cento dos casais sofreram uma queda na saúde mental, com sentimentos de rejeição e baixo valor pessoal. Para esses, houve declínio da vida sexual e aumento de sintomas físicos de estresse. O estudo estabeleceu como grupo de controle casais da mesma faixa etária sem filhos, para que as mudanças dos períodos pré-andropausa e pré-menopausa pudessem ser isoladas.
Aadolescência é um fenômeno recente. Até a Revolução Industrial, não existia esse conceito. Havia as crianças, e havia jovens prontos para trabalhar aos 13 ou 14 anos, ao lado de pais cuja expectativa de vida era de 40. No século XIX, as condições de saúde e segurança melhoraram. As empresas passaram a cuidar melhor de seus trabalhadores (porque detinham o conhecimento técnico), e a vida profissional se prolongou. Os jovens não precisavam mais pegar o lugar de seus pais tão rapidamente. Desde então, não são crianças que precisam ficar protegidas em casa, nem adultos que podem criar sua independência trabalhando. Eram adolescentes, um termo que começou a se popularizar na década de 1940, graças ao trabalho do psiquiatra alemão Erik Erikson.
“Retardar a entrada do jovem no mercado de trabalho causou uma contradição fundamental nesses jovens”, diz a psicoterapeuta social Ana Bock. “Biologicamente, ele está pronto para se sustentar. Socialmente, ainda não está autorizado.” A autonomia que não pode mais ser exercida no mercado de trabalho se transforma num projeto pessoal. Ele precisa, necessariamente, desgrudar da figura de autoridade dos pais para realizar-se. “A maioria de nós vivenciou a adolescência como uma fase de duplo impedimento: não estamos mais autorizados a ser crianças e ainda não temos a possibilidade de ser adultos”, escreveu o escritor inglês Julian Barnes, sobre sua passagem por esse período. Esses são os dilemas vividos pelos jovens que não precisam trabalhar. Os que trabalham (no Brasil, cerca de 92 milhões de pessoas entre 10 e 19 anos, segundo os dados do IBGE de 2013) vivem outra situação. “O trabalho faz com que o jovem rapidamente entre no mundo das regras, das metas e dos horários”, diz Miguel Perosa, psicoterapeuta especializado em família e adolescentes da PUC de São Paulo. “É o ambiente de passagem para a vida adulta.” Os garotos de 14 ou 15 anos que começam a trabalhar não demonstram os mesmos tipos de conflitos de quem ainda está sob a tutela dos pais. Entre os filhos que ajudam a família financeiramente, é comum que se estabeleça uma relação de cumplicidade e parceria. Há menos conflito nessa relação que na outra.
O livro de Jennifer Senior se concentra nas famílias de adolescentes de classe média, que não precisam se sustentar até a faculdade. Nesse tipo de ambiente, o desenvolvimento psicológico dos jovens tem impacto nas relações familiares. “A puberdade é o pontapé inicial para a adolescência em 90% dos casos, mas não é a adolescência ainda”, diz Perosa. “Só nos tornamos adolescentes quando descobrimos a subjetividade.” Quando o adolescente se descobre um indivíduo único, e não apenas uma extensão da família, seu movimento natural é afirmar e fortalecer essa individualidade. “Eles sentem necessidade de se aproximar de amigos e de conteúdos que reafirmem quem querem ser”, diz Perosa. “O afastamento e algum nível de confronto são importantes para o desenvolvimento do jovem nessa fase.”
Esse afastamento saudável é um dos primeiros geradores de angústia nos pais. Um estudo feito em Chicago com 220 crianças da classe média, em dois períodos diferentes – entre os 10 e os 13 anos e, depois, entre os 14 e os 17 anos –, concluiu que o percentual de horas do dia que elas passaram com suas famílias caiu de 35% para 14%. “Lidar com essa separação exige muito dos pais. Implica ceder poder e deixar que os filhos tomem decisões sem interferir”, diz Denise Diniz, psicóloga e coordenadora do centro de gerenciamento de estresse da Universidade Federal de São Paulo.
A diminuição do tempo com os filhos é agravada pela forma como os pais encaram sua função na vida deles. Desde o momento em que eles dão seu primeiro choro, a organização da vida familiar gira em torno de seu bem-estar. Pais que trabalham destinam todo o tempo livre para cumprir o papel de cuidador. Mães deixam de trabalhar para se dedicar aos filhos. O carro que comprarão, a programação de férias e até a forma como distribuirão os móveis pela casa são decisões baseadas, primeiro, na necessidade das crianças (ou no que os pais imaginam ser essa necessidade). Depois de passar tantos anos submersos na tarefa de criar seus filhos, não é de estranhar a sensação de vazio, ou invisibilidade, relatada por muitos pais.
Filhos de qualquer idade têm o potencial de pôr em evidência problemas dos pais que eles mesmos não conheciam. No caso dos adolescentes, essa capacidade é maior. À medida que os jovens se tornam mais parecidos com adultos – na aparência, no discurso e nas atitudes –, surge a possibilidade de projeções e identificações. Na prática, significa que podem surgir – tanto da parte de pais quanto de filhos – sentimentos de competitividade, inveja e desgosto, por mais estranho que possa ser vivê-los ou reconhecê-los. A similaridade de sexos faz diferença nesse momento: a relação entre pais e filhos e mãe e filhas tem mais possibilidade de conflito. É como se as mães, ao vir as moças que se tornaram suas filhas, se dessem conta do que mudou nelas mesmas. “Minhas filhas tiveram o mesmo comportamento ao entrar na adolescência. Se afastaram de mim e do pai. Passaram a me achar velha e a me criticar por isso. Tinha 40 anos e comecei a me sentir velha”, diz Thania, engenheira e mãe de duas filhas, Clarice, de 22 anos, e Joana, de 18. O mesmo ocorre com os pais. O filho que aparece com uma namorada pode mostrar ao pai as possibilidades que ele não tem mais. “Não é que o pai esteja interessado na namorada do filho”, diz Perosa. “A questão é perceber que a vez dele passou, a juventude dele acabou. Para muitos, é um choque.”
As situações capazes de produzir reflexões (às vezes, dolorosas) são cotidianas. Os adolescentes costumam criticar as escolhas que seus pais fizeram ao longo da vida. “É o momento em que crises e conflitos não resolvidos afloram”, diz Denise Diniz. “Nesses casos, o estresse não é gerado pelo adolescente, mas pelos pontos cegos que ele ilumina na vida dos pais.” Crises no casamento são comuns. Muitos casais se separam. De acordo com o IBGE, entre 2000 e 2010 o número de divórcios de casais com filhos de mais de 18 anos aumentou. A evolução foi de 13,3% para 22,3%, enquanto o número de divórcios de casais com filhos pequenos caiu de 52,1% para 31,6%, no mesmo período.
Os adolescentes – é importante que se diga – não são anjos. Eles frequentemente se portam de forma errática e provocativa. Tornam-se mais distantes e – sim – podem ser malcriados e mais agressivos do que costumavam ser. “O adolescente errou muito pouco, por isso se sente onipotente. É difícil lidar com gente onipotente”, diz Ana Bock.
São comuns descompassos entre o desejo de autonomia dos adolescentes e sua capacidade real de lidar sozinho com as situações. Inúmeros estudos nos últimos 20 anos mostraram que a parte do cérebro responsável por controlar nossos impulsos ainda está em fase de mudança no adolescente. Ela não é tão madura quanto num adulto. Para completar, a produção do hormônio responsável por nossa sensação de prazer, a dopamina, é explosiva nessa fase. “Situações de risco produzem muito mais prazer em adolescentes que em adultos”, diz Jennifer Senior. Boa parte das preocupações dos pais é justificada. Ainda assim, mantê-los embaixo das asas não é uma opção. O desafio dos adultos é descobrir até que ponto eles podem seguir sozinhos e quando precisam de ajuda.
A psicóloga Luiza, de Belo Horizonte, sempre se deu bem com seus dois filhos, Julio, de 20 anos, e Aline, de 16. As crises vieram quando Julio atingiu a maioridade. “Ele achava que não precisava mais nos dar qualquer satisfação”, diz. Foram vários embates, até os pais e ele chegarem a um acordo: ele poderia fazer o que quisesse, mas tinha de dizer onde estava. Quando Clarice, a filha mais velha da engenheira Thania, começou a fazer dieta de forma persistente, por conta própria, a mãe resolveu intervir. “Ela não me ouvia. Eu não podia oferecer nada para comer que ela se rebelava. Entendia como uma crítica.” Clarice desenvolveu bulimia. Thania recorreu à ajuda de uma psicoterapeuta.
Ter filhos adolescentes não significa uma condenação ao estresse permanente. Os pais entrevistados para esta reportagem percorreram caminhos diferentes para chegar ao mesmo ponto: todos se dão muito bem com seus filhos. Mario e Alice, o casal do início, foram pragmáticos. Sentiram as mudanças, não gostaram de muitas delas, mas entenderam que aquele era um período em que a convivência seria diferente. Os filhos não ficariam mais no ninho, como disseram. Luiza, que não entrou em conflitos com os filhos até o mais velho chegar à maioridade, optou por negociar quando enfrentou um impasse e impôs sua autoridade. “Deixamos que eles tomem suas decisões até o limite do seguro”, diz ela. “Percebo que, quando estão em dúvida sobre algo que pode não ser legal, e interfiro dando a palavra final, eles ficam aliviados”, diz ela. Thania pediu ajuda profissional quando questões mais sérias apareceram, como a bulimia da filha. “Recorri às terapeutas das meninas sempre que não sabia como agir”, diz.
A adolescência dos filhos é um período que pode mexer com os pais. Na prática, pequenos ajustes de postura bastam para que a relação volte a fluir. “Entender o que ocorre com os jovens, saber de suas novas necessidades diminui muito a ansiedade dos pais”, diz Perosa. “A sensação de ‘ele se afastou porque me odeia’ passa.” Terapeutas e pais experientes são unânimes em dizer que o crescimento dos filhos representa uma oportunidade de estabelecer uma relação de parceria, com diálogo e negociação. “Muitos pais sofrem por enxergar o filho como uma propriedade”, diz Ana Bock. “Pais que tentam se manter estáticos e donos da razão são os que mais sofrem.”
Estabelecer uma parceria com os filhos não significa virar melhor amigo. Os jovens já têm seus amigos. Os pais podem compartilhar e se interessar, mas sem forçar, sob o risco de sufocar os filhos e de ser banidos da convivência. Não há nada que um adolescente furioso faça tão bem quanto se isolar e erguer um muro em relação aos pais.
Respeitar as necessidades dos filhos não significa que os pais tenham de fingir que não são afetados pela atitude deles. Perosa conta uma história interessante a esse respeito. Ele não conseguia dormir enquanto seus filhos adolescentes não chegavam em casa. Às 4 da manhã, eles encontravam o pai lendo na sala. “Diziam que eu não deveria passar por aquilo por causa deles. Explicava que eu estava acordado por minha causa, não por causa deles”, diz Perosa. “Eu é que não dava conta da minha preocupação. Claro que eles tinham o direito de ir a festas.” Situações como essa não são emocionalmente simples. Podem ser mais bem resolvidas se os pais tiverem clareza sobre seus próprios sentimentos.
Ao se abrir para o movimento que o crescimento dos filhos provoca, toda a família tem chance de aprender. Os adolescentes estão em busca de um novo lugar no mundo, e isso força os pais a se recolocar. “O estresse ocorre quando temos de nos adaptar a uma nova situação”, diz Denise Diniz. “É inevitável que a adolescência cause algum estresse no interior das famílias.”
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