A sociedade brasileira não pensa o envelhecimento e também despreza os idosos por incompreensão das necessidades mais básicas dessa crescente população no país
Por Clarinha Glock
O Fundo de Populações das Nações Unidas prevê que, em 2050, pela primeira vez haverá mais idosos que crianças menores de 15 anos no mundo. No Brasil, as pessoas idosas somam hoje 26,3 milhões, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o equivalente a 13% da população. A previsão do IBGE é que esse percentual chegue a 34% em 2060. Quem envelhece em Porto Alegre, entretanto, mal conhece o Estatuto do Idoso e sofre pela falta de preparo das cidades e instituições para atender suas demandas. Os Conselhos de Idosos, criados para representá-las na luta por políticas públicas, disputam atenção e recursos dos governos, e enfrentam obstáculos.
Era dia de jogo de Copa do Mundo em Porto Alegre, em junho deste ano, e a população em peso queria mais era ir para a frente de uma televisão assistir a partida de futebol. Natália Helen Ruas, de 22 anos, aguardava a carona de carro do marido que iria pegá-la em uma parada de ônibus na zona Norte quando percebeu uma senhora que parecia perdida. “Devia ter entre 60 e 70 anos de idade”, conta. A mulher se aproximou de mansinho, e Natália perguntou se estava esperando alguém. “A sobrinha”, respondeu ela, “mas não sabia onde morava, nem seu próprio nome”, condoeu-se Natália. Acostumada a lidar com os moradores de um lar de velhos onde trabalha como auxiliar de copa e cozinha, a jovem encaminhou a senhora para um segurança que estava no local e, por telefone, chamaram a Brigada Militar. Os policiais disseram que se estivesse machucada, levariam para o Hospital Cristo Redentor, mas como não era o caso, não teriam para onde levá-la. Com o marido inquieto, à sua espera, e sem saber a quem recorrer, Natália deixou a senhora com o segurança na parada, e voltou para a casa, revoltada e preocupada.
Dionízio Kuchinski, coordenador estadual da Política do Idoso do Rio Grande do Sul ligado à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, estranha a dificuldade enfrentada por Natália. “Há duas delegacias do idoso no estado, uma em Santa Maria e a outra em Porto Alegre”, informa. Se a pessoa tiver um lapso de memória, a polícia tem como encaminhá-la e a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) pode ajudar na busca dos parentes. O fato é que, quando Natália precisou desse apoio, não obteve uma resposta imediata e efetiva.
“A Fasc tem dificuldades em conseguir instituições de longa permanência para pessoas idosas em Porto Alegre, e tem pago para levá-las para cidades, como Viamão e Alegrete”, observa o médico geriatra Ângelo José Gonçalves Bós, vice-presidente do Conselho Municipal do Idoso de Porto Alegre. O médico salienta que a verba federal destinada à Fasc para a manutenção dos idosos foi herdada da Legião Brasileira de Assistência, da década de 1980, com valor extremamente baixo. “Para o atendimento a crianças abandonadas em lares e abrigos, o valor mensal é de R$ 1,6 mil, enquanto que para os idosos, por leito, é de apenas R$ 70”, alerta. “Queremos melhorar este valor”, diz Bós. As mais de 20 entidades cadastradas no Conselho Municipal, incluindo o Instituto de Geriatria e Gerontologia da PUCRS, no qual ele atua como professor-adjunto, também trabalham para incrementar o Fundo Municipal do Idoso, criado em 2012 e que atua captando e repassando recursos para instituições de longa permanência cadastradas.
“A PUCRS vai encaminhar ao Fundo um projeto de Avaliação e Acompanhamento Domiciliar Gratuito para pessoas acima de 90 anos, considerando que entre 2000 e 2010 houve um aumento de 82% de homens e mulheres com idades entre 90 e 99 anos em Porto Alegre, segundo o Censo do IBGE”, informa o vice-presidente. Segundo ele, o Conselho Municipal do Idoso pretende ainda iniciar em 2016 uma pesquisa para saber quem são estas pessoas.
DIRETRIZES – Os Conselhos Municipal e Estadual de Idosos têm o objetivo de promover estudos, pesquisas, seminários; expedir diretrizes de orientação e colaborar com os governos na formulação e promoção de políticas públicas destinadas a garantir os direitos das pessoas idosas. O Conselho Estadual do Rio Grande do Sul foi criado em 1988 por decreto, e só em 2013 virou lei. Está em fase de reestruturação. Vem trabalhando também para implementar seu Fundo Estadual criado em julho de 2013. A assistente social Jussara Rauth, vice-presidente do Conselho Estadual, acusa o governo de morosidade, e diz que necessita apenas uma conta bancária e um CNPJ. Kuchinski, da Coordenadoria, retruca que falta um parecer do Conselho Estadual e que não há reunião há cinco meses.
Há divergências sobre a forma de atuação dos dois Conselhos. Bós acredita que falta organização ao Conselho Estadual. Jussara critica o Conselho Municipal por não obedecer a paridade pessoas/instituições e por concentrar recursos para poucas entidades. No meio deles, está a pessoa idosa.
Estatuto do Idoso é um avanço, porém desconhecido
O Estatuto do Idoso, instituído pela Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003, visa “regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 anos. Dispõe sobre papel da família, da comunidade, da sociedade e do poder público de assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”. A íntegra está disponível aqui.
Antes dele, sobre direitos e envelhecimento, havia a Constituição de 1988 e a Política Nacional do Idoso (Lei nº 8.842 de 1994). “O Estatuto do Idoso avançou ao prever sanções e punições para quem viola os direitos, responsabilizando tanto a família quanto as instituições e o próprio governo”, observa Jussara Rauth, do Conselho Estadual do Idoso. “Se hoje eles têm acesso a medicamentos para doenças crônico-degenerativas, se o portador de Alzheimer consegue alimentação, é graças ao Estatuto, que diz que o governo tem que conceder, e, se não conceder, o idoso pode buscar esse direito com o Ministério Público”, explica.
Outro avanço importante foi regular as instituições de longa permanência. Em novembro, o coordenador estadual do Idoso, Dionízio Kuchinski, participou, com o Ministério Público de Cachoeira do Sul, Secretaria Nacional de Direitos Humanos e outras entidades do estado e daquele município, de uma ação para fiscalizar instituições de abrigo para pessoas idosas em que se misturavam jovens com problemas mentais. Será feito um censo terapêutico para reorganizar e adequar o atendimento nessas instituições.
Para muitas pessoas idosas, o Estatuto é um senhor desconhecido. “Vejo falar do Estatuto do Idoso, mas não precisava existir, só por ser idoso já deviam respeitar, e tem certos lugares que nem a fila do idoso respeitam”, comentou o aposentado Ary Rodrigues Macedo, 82 anos, apoiado na parede, com a bengala ao lado, numa parada para descansar antes de seguir a caminhada. Poucos minutos antes, a professora aposentada Izoldi Hammarstron Zardin, 54 anos, e sua tia Emma Eberle Elsner, de 86 anos, sofreram para descer de um ônibus na Praça Dom Feliciano, centro de Porto Alegre. Vieram de Ijuí fazer os óculos novos de Emma. A própria Izoldi tem artrose e acha difícil subir e descer os degraus dos ônibus. “Em Ijuí, quem tem mais de 80 anos tem prioridade. Aqui, para marcar uma consulta pelo SUS leva três a quatro meses”, desabafa.
Izoldi é acompanhante da tia, e diz que conhece “alguma coisa” do Estatuto do Idoso. “O Estatuto protege o idoso de más ações”, acredita. Jussara Rauth considera que o Estatuto já precisa ser revisto em função da mudança da expectativa de vida, porque quem chega aos 80 anos requer um tipo de atendimento mais complexo. “Todos nós, cidadãos, agentes públicos, gestores devemos estar capacitados para um novo jeito de fazer política pública”, diz. Lembra que poucas universidades oferecem disciplina de Geriatria e Gerontologia.
“E se não trabalharmos com crianças e jovens conteúdos sobre o que é envelhecer, as mudanças que acarreta, os cuidados, vamos continuar reproduzindo condições precárias de envelhecimento”, alerta.
Do trânsito à cultura, o ritmo é outro, e é preciso adaptar
Aos 88 anos, Ruth Mesquita olha para os dois lados e cruza a faixa de segurança da avenida. Graças à ajuda dos exercícios de Pilates e da fisioterapia, Ruth se mantém ativa. Tem motivos para ficar alerta ao cruzar as ruas. Segundo a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), de janeiro até o final de setembro de 2014, das 43 vítimas fatais por atropelamentos na capital, 19 tinham acima de 60 anos. Ruth é prevenida. Anda com a alça da bolsa atravessada no corpo, para evitar assaltos, e fica atenta às calçadas para não tropeçar. É privilegiada. Gosta de ir ao cinema. Uma das salas que frequenta é a do grupo GNC Cinemas, no shopping Moinhos de Vento, zona nobre da cidade. Comemora a chegada do corrimão para chegar às poltronas, mas reclama que as salas podiam ficar mais claras antes de iniciar e depois de acabar o filme: “Na meia luz é muito escuro”.
Ruth prova que o crescimento da população idosa se dá em todas as áreas, inclusive na cultura. O diretor de Operações do grupo GNC, Ricardo Difini Leite, reconhece que as salas de cinema no shopping Moinhos de Vento, em Porto Alegre, têm uma das maiores frequências no Brasil de público com 60 anos ou mais. São cerca de 35% do total de expectadores mensal de 20 mil pessoas. “O crescimento médio é de 1% a 1,5% ao ano”, observa. Segundo Leite, o cinema já foi reformado para atender este público: as luzes ficam ligadas durante os trailers dos filmes, antes de começar as sessões; o espaço entre as poltronas aumentou, e diminuiu a altura dos degraus que levam às poltronas.
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