Há razões de ordem jurídica e social que explicam a intensidade do ativismo judicial no Brasil. Além de suas competências jurisdicionais típicas, o Supremo Tribunal Federal está atuando, cada vez mais, em questões outras, como nas políticas públicas governamentais e nos dissídios morais da sociedade.[1]
Esse fenômeno, contudo, não é exclusividade brasileira. Ao contrário, a assunção de responsabilidade, por Cortes de Justiça diversas, para enfrentar conflitos sociais latentes, a partir de critérios técnicos, reproduz-se em diversas democracias do ocidente e até no cenário supranacional.
No contexto de Estado Constitucional Cooperativo, em que os limites da jurisdição ultrapassam barreiras territoriais nacionais, a interferência de decisões de Cortes Internacionais em decisões políticas locais pode pôr em xeque a soberania.
É verdade que o diálogo entre Justiças nacional e supranacional é, atualmente, necessário e inafastável, não cabendo a invocação da soberania como blindagem contra a incidência de direitos humanos em sistemas pátrios. Entretanto, enfatize-se que, por vezes, a decisão doméstica é legítima e consciente, razão pela qual se torna impróprio o seu rechaço por Corte Internacional.
Ora, se duas posições são igualmente válidas em termos de proteção de direitos humanos, não parece correto que uma Corte Internacional faça prevalecer seu entendimento, em detrimento do direito interno.
Não obstante, a conclusão de recentes julgados da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) acerca da gestação por substituição é em sentido contrário, tendo condenado a França por violação a direitos humanos.[2]
Registre-se que a reprodução humana assistida é assunto complexo, que envolve questões éticas e morais. Ao mesmo tempo em que se objetiva impedir a comercialização do corpo humano e a coisificação do homem, é preciso proteger a família e resguardar a dignidade e o interesse dos bebês gerados por procriação artificial.
Considerando a inexistência de norma de direito internacional privado que discipline o tema, cada Estado legisla de acordo com as convicções locais predominantes. Nesse âmbito, a França optou por proibir expressamente a gestação por terceiro, determinando a nulidade de pleno direito de toda convenção que disponha sobre a procriação ou a gestação por conta de terceira pessoa.[3] Ademais, consideram-se crimes as condutas de se interpor entre casal com desejo de ter filho e mulher que aceite concebê-lo; e de promover substituição voluntária, simulação ou dissimulação que atentem contra o estado civil da criança.[4]
O Estado francês justifica seu posicionamento na necessidade de combate à odiosa exploração da vulnerabilidade da mulher por organizações criminosas que violam direitos fundamentais e na luta pela proteção de valores morais e éticos da dignidade da pessoa, evitando-se que o ser humano seja objeto de contrato. Em consequência, está fora de cogitação recorrer à gestação por substituição na França, sob pena de desconsideração civil dos atos transacionais e de persecução criminal.
Ocorre que a decisão política de outros países sobre esse ponto – notadamente da Ucrânia, da Índia e de regiões dos Estados Unidos – é contrária ao direito interno francês, na medida em que a gestação por terceiro é legalizada nesses Estados.
Diante da diversidade entre os sistemas pátrios, cidadãos franceses investem em projetos no estrangeiro, a fim de realizarem o sonho de ter filho. Referida prática deu ensejo a verdadeiro turismo reprodutivo,[5] que muitos problemas gera para a comunidade internacional.
Para a ordem jurídica francesa, por exemplo, reconhecer a filiação entre pais não biológicos e bebês provenientes de gestação por terceira pessoa ocorrida em país onde essa técnica é admissível significaria contornar a legislação nacional, além de criar situação anti-isonômica entre pais com recursos financeiros limitados e os que podem se deslocar ao exterior para se valer de tal expediente.
Foi por esse motivo que a França se recusou a transcrever, em seus registros oficiais, a certidão de nascimento das gêmeas Mennesson e da criança Labassee, nos casos que vieram a ser apreciados pela Corte Europeia de Direitos Humanos. Em ambas as situações, casais franceses partiram aos Estados Unidos – Califórnia e Minnesota, respectivamente – para se beneficiarem de gestação por terceiro, tendo obtido decisões judiciais que reconheceram a filiação entre eles e os bebês.
Por não conseguirem transcrever os documentos de nascimento nos registros oficiais franceses, as famílias passaram a enfrentar diversas vicissitudes no quotidiano, sobretudo diante da ausência de reconhecimento de nacionalidade francesa para as crianças – e da consequente recusa de emissão de passaportes –, o que dificultava o deslocamento familiar e a permanência das crianças na França, que viviam condicionadas a autorizações temporárias de estada no território francês.
Inicialmente, a questão foi judicializada na França, onde os órgãos jurisdicionais, especialmente a Corte de Cassação,[6] deram razão ao Estado e ratificaram o acerto da conduta de não transcrever documentos estrangeiros cujo fundamento de validade é contrato de gestação por substituição, o qual é considerado absolutamente nulo pelo sistema jurídico pátrio. Sustentou-se que as crianças não estavam privadas da filiação judicialmente reconhecida nos Estados Unidos, mas que a transcrição das decisões estrangeiras abalaria princípios fundamentais do direito francês e seria contrária à ordem pública.
Não satisfeitos com esse entendimento, os pais recorreram à CEDH, argumentando, principalmente, que houve ultraje ao artigo 8° da Convenção de Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (Convenção Europeia de Direitos Humanos), que dispõe sobre o direito de respeito à vida privada e familiar e veda ingerências de autoridades públicas ao seu exercício.[7]
A Corte apreciou a demanda em junho de 2014, oportunidade em que fragmentou a análise em duas etapas: I) violação do direito de respeito à vida privada dos pais; e II) atentado ao direito à vida privada das crianças. Em síntese, decidiu-se que não houve ofensa à proteção da vida familiar dos pais, mas, considerando-se que o interesse superior das crianças e a necessidade de definição de suas identidades sobrepõem-se no juízo de ponderação, é preciso reconhecer-se a infração aos direitos desses cidadãos.
Assim, o Tribunal de Estrasburgo condenou a França por violação às normas da Convenção, reconhecendo que a recusa da transcrição dos documentos das crianças nos registros oficiais franceses configura violação a direitos humanos. Outrossim, estipulou-se compensação financeira a título de danos morais em favor dos prejudicados. Referido decisum tornou-se definitivamente obrigatório em 26 de setembro de 2014,[8] e a França já adota medidas para tentar compatibilizar essa decisão com o seu sistema jurídico interno.
Em pronunciamento oficial, o Primeiro Ministro francês, Manuel Valls, afirmou que a proibição da gestação por substituição resta intacta no direito pátrio e afastou a possibilidade de reconhecimento automático da filiação que tenha por base essa conduta. Assim, cada caso deve ser individualmente analisado, antes de se promover a transcrição de registros. Valls comprometeu-se, ainda, a empreender iniciativa internacional para combater a comercialização do corpo humano, com o escopo de tentar, por exemplo, acordar com os países que legalizaram a gravidez por terceiro que não promovam a técnica em benefício de cidadãos originários de países onde a medida é vedada.[9]
Estima-se que cerca de 2.000 crianças foram afetadas pelo aresto da Corte Europeia. A França precisa se adaptar a essa realidade e promover a transcrição dos seus documentos nos registros públicos.
A decisão europeia conturbou a sociedade francesa. No dia 5 de outubro, o movimento Manif pour Tous coordenou uma passeata em defesa da família tradicional, criticando, especificamente, a gestação por substituição, que induziria à exploração de mulheres e à comercialização de bebês. Esse evento foi articulado após o veredicto da Corte Europeia e reuniu, segundo seus organizadores, mais de quinhentas mil pessoas na cidade de Paris.[10]Esse episódio ilustra o quão sensível é o tema.
Esclareça-se que, pessoalmente, não se questiona o fundo da decisão da Corte de Estrasburgo, pois é louvável a justificação de proteger o direito das crianças, que não têm culpa por terem nascido por meio de gestação por substituição e merecem ter suas identidades resguardadas. No entanto, acredita-se que a interferência de Corte supranacional em sistema jurídico doméstico é imprópria sempre que a decisão política adotada pelo direito interno é legítima e também privilegia os direitos humanos, ainda que por outros meios.
Em debates éticos e morais, nos quais mais de uma solução é possível, não convém que o conflito seja arbitrado por critérios técnicos em Cortes de Justiça – muito menos se se tratar de órgão supranacional. É por isso que se reputam as mencionadas decisões da CEDH de ativistas.
O turismo reprodutivo certamente carece de regulamentação, mas os julgamentos analisados não passam de medidas paliativas que acarretam sérias consequências negativas, como a desconsideração de posições legitimamente adotadas por Estados soberanos e a ruptura da isonomia entre pais pobres, de um lado, e ricos que podem viajar ao exterior, de outro.
Penso que a suplantação do problema deve perpassar pelo desenvolvimento de normas de direito internacional privado, ramo do direito capaz de harmonizar a soberania dos Estados com a resposta a imbróglios transnacionais. Tratados e convenções mutuamente acordados tendem a ter mais legitimidade do que decisões ativistas de Cortes de Justiça.
[1] CARVALHO FILHO, José S. Razões de ordem jurídica e social propiciam o ativismo judicial no Brasil. In: Conjur. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2014-jun-14/razoes-ordem-juridica-social-propiciam-ativismo-judicial-pais >. Acesso em: 5 dez. 2014.
[2] Affaire Mennesson c. France (Requête n. 65192/2011) e Affaire Labassee c. France (Requête n. 65941/2011), disponíveis em: < http://hudoc.echr.coe.int/sites/fra/pages/search.aspx >. Acesso em: 5 dez. 2014.
[3] Artigo 16-7 do Código Civil francês: “Toute convention portant sur la procréation ou la gestation pour le compte d'autrui est nulle”.
[4] Artigos 227-12 e 227-13 do Código Penal francês.
[5] MASSARO, Ana Carolina Pedrosa. Baby business: a indústria internacional da barriga de aluguel sob a mira da Convenção de Haia. In: RIDB, Ano 3 (2014), n. 8.
[6] Arrêts 369, 370 e 371, de 6 de abril de 2011. Disponíveis em: < http://www.courdecassation.fr/juris-prudence_2/premiere_chambre_civile_568/ >. Acesso em: 5 dez. 2014.
[7] Convenção Europeia de Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_F-RA.pdf >. Acesso em: 5 dez. 2014.
[8] Três meses após a decisão, conforme determina o artigo 44, § 3°, da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
[9] Entrevista de Manuel Valls para La Croix. Disponível em: < http://www.la-croix.com/Actualite/France/Manuel-Valls-La-France-entend-promouvoir-une-initiative-internationale-sur-la-GPA-2014-10-02-1215549 >. Acesso em: 5 dez. 2014.
[10] Cf. notícia veiculada no Jornal Le Monde. Disponível em < http://www.lemonde.fr/societe/article/2014/10/05/la-manif-pour-tous-a-nouveau-dans-la-rue_4500742_3224.html >. Acesso em: 5 dez. 2014.
José dos Santos Carvalho Filho é doutorando em Direito Público pela Sciences-PO/Aix-Marseille Université (França) e analista judiciário do Supremo Tribunal Federal.
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