Gabriela Loureiro
Ainda há muito a entender sobre a violência das “cantadas” e por isso queremos produzir um documentário que encontre respostas e discuta soluções para tal comportamento. Você pode ajudar a transformar esse projeto em realidade. Saiba como nos apoiar financeiramente no Catarse.
Eu tinha 13 anos, estava voltando para casa na minha cidade natal, no interior do Rio Grande do Sul, com minha baby look surrada da Janis Joplin e uma saia xadrez, quando um cara me abordou para dizer que eu era gostosa. Fiz uma cara de desprezo e segui meu caminho, eram 16h de uma tarde quente de setembro. Só que ele resolveu também seguir o meu caminho, me perseguindo e me xingando de vagabunda. Aumentei o volume do saudoso discman e caminhei mais rápido, faltavam 3 quadras para casa. Então ele colocou o pênis para fora e ficou se masturbando até eu chegar em casa, já correndo em direção ao portão. E ficou ali embaixo, me esperando. Não tinha ninguém em casa e eu fiquei à mercê da minha autopunição movida a vergonha. É claro que, como milhares de meninas sem contato com o feminismo, eu concluí que a culpa era minha – quem mandou usar saia? “Talvez eu não passe de uma vagabunda mesmo”, pensei. Tinha 13 anos e já carregava todo o sexismo do mundo.
Uma década depois, estava completamente acostumada com o assédio de rua. Eu nem ouvia mais, esqueci que existia – ao menos fingia bem. O discman virou mp3 player, que virou mp4, que virou smartphone e agora iPod. Sempre num volume suficientemente alto para não ouvir o que homens aleatórios sussurram no meu ouvido ou gritam na minha cara observando cada centímetro do meu corpo diariamente. Até que a pesquisa Chega de Fiu Fiu apareceu no meu feed e foi como um estalo de realidade. Sim, cantada de rua configura assédio e eu não estava sozinha. Ufa, que alívio. Um ano depois, me tornei colaboradora do Think Olga e participei da produção de um documentário sobre cantada de rua que a Amanda Kamanchek e Fernanda Frazão estão dirigindo com colaboração da Juliana de Faria e a Brodagem Filmes.
Minha colaboração para o documentário foi basicamente caminhar na rua usando um par de óculos com uma microcâmera escondida, a fim de gravar os assédios e, em seguida, entrevistar esses homens para saber, afinal, o é que eles pensam que estão fazendo. No começo, fui tomada por insegurança… Como assim trocar uma ideia com esses caras? Ou eu os ignorava completamente ou os xingava, como já havia feito várias vezes em que perdi a paciência. Conversar era bem mais difícil. Toda vez que um desconhecido se dirige a mim com segundas intenções minha adrenalina sobe, eu suo frio e, dependendo da abordagem, meu coração acelera. Sabe, o pacote completo do mamífero ameaçado. Mas reagir diferente era um desafio e eu queria ajudar. Então lá estou eu descendo a rua Cardeal Arcoverde, na Zona Oeste de São Paulo, com meus super óculos quando um cara me chama de gostosa. Pergunto: “você falou comigo?”. Ele nega, disse que não fez nada. Meu tom era agressivo, logo percebi. Não queria ser evitada, precisava de imagens. Então um rapaz passa estalando os beiços em sinal de satisfação. Quando ele já está um pouco atrás de mim, eu questiono “oi? Você disse alguma coisa?”. Ele só faz um não com as mãos e segue a vida. Funciona assim: eu assedio você e nós dois fingimos que nada aconteceu para seguirmos nossas vidas, você se sentindo miserável e eu, empoderado.
Passa um terceiro cara e solta um “meu deus do céu” me olhando de cima a baixo. (Vejam bem, não vou descrever minha roupa ou meu tipo físico porque isso não justifica nada, ok?). Eu ensaio uma reação de ser de luz e pergunto “que foi?”. “Você é muito bonita”. “Você acha que as mulheres gostam de ouvir isso na rua?”. “Acho, ué”. “E se eu te falar que eu fiquei ofendida com o seu comentário?”. “N-não fique não, eu só estou te elogiando”, disse, meio chocado, mas tentando tirar proveito da situação. “Você acha que as mulheres desconhecidas gostam de ouvir sua opinião sobre a aparência delas?”. Ele percebe que eu estou levando a entrevista a sério e vai dando passos para trás, com um sorriso amarelo, igual criança quando tenta colocar a culpa no irmão pelo vaso quebrado. “Não sei não, tenho que ir”. E vai. (Vai com Deus.)
Ao ser assediada por um cara dentro de um carro vermelho parado no semáforo, me aproximo um pouco e pergunto “você sempre aborda mulheres na rua assim?” (disparo com certa fúria porém com um semblante simpático). “Só quando são bonitas como você”. “Você acha que as mulheres gostam disso?”. “Claro que sim”, disse, confiante, enquanto acelerava o carro e ia embora. Não, não era o Johnny Bravo, era um homem branco comum buscando distrações enquanto está preso no trânsito. Quero deixar bem claro que a realidade apresentada aqui é de uma mulher branca de classe média. No “açougue” de mulheres que caminham pela rua na ótica patriarcal, a carne negra é a mais barata, como já dizia Elza Soares. Sem contar a vivência de travestis e transexuais, que ainda são vítimas de intolerância sexual.
Mas a impressão que eu tive com minha pequena experiência foi que ou esses homens não tinham a menor ideia de que a maioria das mulheres odeia cantada de rua ou que eles eram arrogantes demais para cogitar que talvez, sei lá, as mulheres sentem medo de serem estupradas. De qualquer forma, era uma postura vertical ali. “Que fofa, tentando entender por que os homens assediam as mulheres na rua”. Bom, quer saber? Eu me senti muito empoderada ao questionar esses homens. Ainda mais sabendo que estava gravando tudo, claro. Eu tomei o poder de volta e contrariei a lógica do assédio de rua. É claro que nenhum cara espere que você diga “oh, então me leve para sua casa e vamos fazer um sexo selvagem” quando ele manda um “te chupava todinha”. Não há relatos de uma situação análoga a essa em nenhuma civilização. Assédio de rua não passa de homens exercendo poder sobre as mulheres, seja sobre sua presença nas ruas ou diretamente sobre seus corpos. É como se todo mundo tivesse poder sobre o corpo das mulheres, exceto elas mesmas. Fazer aborto porque não quer ser mãe? É contra a lei. Transar com quantos caras tiver vontade? Atentado aos bons costumes. Usar saia curta? Não se dá o respeito. Mas ser desrespeitada continuamente na rua todos os dias “não dá pra evitar”, “faz parte da natureza masculina”. Não há nada de natural em limitar o direito feminino à cidade. Não há nada natural em limitar qualquer direito das mulheres – nem em elas mesmas aceitarem isso.
E quer saber mais uma coisa? Nós, apoiadoras do Chega de Fiu Fiu, não estamos sozinhas. Talvez você tenha visto um vídeo que circulou nas redes sociais nas últimas semanas mostrando, através de uma GoPro, uma mulher sendo assediada repetidas vezes nas ruas de Nova York. Esse vídeo foi feito em parceria com a ONG Hollaback, organização fundada nos Estados Unidos em 2005 para combater o assédio de rua através da tecnologia e hoje está presente em 26 países. A ONG utiliza sobretudo um aplicativo de celular em que (na maioria das vezes) mulheres compartilham suas histórias de assédio. Uma pesquisa realizada pela Hollaback indicou que dividir histórias reduzem o trauma. E a ideia é falar e falar sobre o assunto até que a sociedade tenha consciência de que “cantada de rua” é assédio. “A tecnologia nos deu uma oportunidade sem precedentes de iluminar as esquinas escuras desse antigo problema social. Nunca antes estivemos tão capazes de documentar o assédio de rua em tempo real com nossos smartphones. E nunca antes as histórias importaram tanto. Com aplicativos, blogs e redes sociais, as histórias são amplificadas para milhares em minutos, nos permitindo construir movimentos mais rápido do que antes”, disse a OLGA Emily May, ativista e fundadora do Hollaback.
May conta que, ao começar o Hollaback em 2005, ela não tinha ideia de que se tornaria o movimento global que é hoje, ela apenas fazia parte de um grupo de mulheres que já estavam cansadas do assédio e queriam uma resposta. “Como em todo grande problema social que já foi resolvido em qualquer sociedade, os pioneiros do assunto sempre enfrentam ceticismo. É duro perseverar diante disso. Meu conselho é reunir as pioneiras e lembrar umas às outras que vocês não são loucas. O mundo que é”, afirma May. Hoje já existe mais abertura para falar sobre o assunto, ainda que o assédio de rua não seja tão levado a sério quanto outros tipos de violência ou seja motivo de piada, como neste programa da CNN. “O feminismo tem ficado mais popular ultimamente e isso é ótimo. A ideia de que as mulheres devem ter direitos iguais e acesso igual ao espaço público nunca deve sair de moda, e com menos e menos pessoas se sentindo constrangidas por exigir igualdade, o mundo fica mais seguro”, disse.
Para May, tanto faz se é em NY ou SP, o assédio de rua vem da cultura do sexismo, uma cultura muito maior do que qualquer sociedade ou país. É endêmico no mundo todo. Inclusive no Chile, onde outra organização vem combatendo o assédio de rua desde novembro do ano passado, o Observatorio Contra el Acoso Callejero Chile (OCAC-Chile). A organização fez uma pesquisa com mulheres de 12 a 64 anos estilo Chega de Fiu Fiu e concluiu que 95% das entrevistadas já sofreram algum tipo de assédio sexual em vias públicas, que 25% tinham idade entre 13 e 18 anos e sofrem assédio duas vezes por dia e que 71% sofreu uma experiência traumática. “Obviamente que cada país tem suas especificidades, mas no Chile, assim como no Brasil, vemos o legado do patriarcado, a objetificação das mulheres e naturalização das desigualdades de gênero, ou seja, uma percepção estabelecida no tempo de que o masculino tem mais ‘poder’ frente ao feminino”, disse a OLGA Alice Junqueira, integrante da ONG. “Acontece que o masculino, assim como todos os gêneros, é construído e, por isso mesmo, podemos e devemos agir para que não haja modelos impostos que dizem como uma pessoa deve ser e que uma maneira de ser é melhor e tem mais ‘poder’ sobre a outra”.
O OCAC surgiu em novembro de 2013 como iniciativa de quatro recém graduadas em sociologia que queriam tirar o assédio social de rua do Chile da esfera pessoal. Este ano, as meninas do grupo receberam o fundo da ONU Mulheres e da União Europeia para o Fortalecimento de Organizações da Sociedade Civil que promovem a Igualdade de Gênero no Chile. Agora, a organização está realizando uma investigação sobre as percepções dos chilenos sobre assédio de rua para saber se aprovam uma legislação a respeito, além de preparar uma campanha de comunicação em meios de transporte, vias públicas e redes sociais sobre o tema e um projeto legislativo que eduque as crianças sobre o assunto para erradicar o problema. “É exagero visibilizar um problema que afeta a maioria das mulheres, crescentemente homossexuais, trans* e inclusive homens.? É tirania pedir políticas públicas para proteger as vítimas e para que as mulheres possam andar pelas ruas tranquilas? São essas demandas e a maneira como agimos comparáveis ao horror do nazismo? Convidamos aos que usam essas expressões para refletirem conosco e estão dispostos a repetir e compartilhar informações que mostram que a resposta para todas essas perguntas é não”, diz Alice.
Não é mesmo. Quando eu perguntei a Emily May quais são os primeiros passos para acabar com o assédio de rua, ela citou dois. Focar no agressor e compartilhar a sua história. No documentário, focamos justamente nos agressores, que muitas vezes não têm ideia ou são indiferentes ao medo a que submetem mulheres no espaço público. Eu já compartilhei minha história ali em cima. Você pode compartilhar a sua no mapa do Chega de Fiu Fiu. Precisamos falar sobre assédio de rua, seja com pais que ensinam os filhos a “assobiar para as meninas”, ou seus amigos, colegas, parentes, vamos esgotar esse assunto até que alguma coisa aconteça. Quem sabe conseguimos falar até com nossos agressores de igual para igual? Não vejo outra saída desse beco escuro.
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