Alex Castro
Mente e atitude, Prisões
11 de Novembro de 2014
Caminhamos pela vida consumidas por um verdadeiro afã classificatório: julgamos, definimos e então descartamos as pessoas que passam por nós como se estivéssemos rotulando potes de maionese em uma esteira industrial.
Esse é gordo, logo, é desleixado (sic); essa está vestida assim ou assado, logo, é periguete (sic sic!), etc.
Por que é tão difícil realmente enxergarmos, de forma aberta e generosa, as pessoas que estão à nossa volta?
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Esse é o terceiro exercício de empatia. Antes de continuar a ler, ou de fazer o exercício, por favor, leia o primeiro texto dessa série, onde eu contextualizo os exercícios.
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Um exercício para enxergar profundamente
Em um ambiente público onde você vá estar por no mínimo uns cinco minutos (ônibus, metrô, fila do banco, sala de espera, etc), escolha uma pessoa e veja tudo sobre ela.
Seus cabelos, seus dentes, suas unhas, suas pintas, seus óculos, o bico dos seus sapatos, a gola de suas camisas. Quantas vezes na vida realmente, profundamente, individualmente enxergamos as pessoas a nossa volta?
Mantenha-se na mesma pessoa. Ao contrário do segundo exercício de empatia, aqui não estamos mais tentando nos dar conta de todas as pessoas mas escolhendo ver uma única pessoa com mais atenção e mais empatia.
Resista com todo afinco à ânsia de julgar. O bico do sapato dele está gasto? Não, não é porque ele é relaxado ou desleixado ou pobre ou mulambento, etc etc. Abrace a enormidade do fato de que você simplesmente não sabe, e provavelmente jamais saberá, porque o bico do sapato dele está gasto.
Por que será então? Será que não tem dinheiro para comprar um novo sapato? Será que não se importa com essas coisas? Será que nem percebeu? Por onde será que anda para estar com os sapatos assim? Será que anda muito? Será que anda muito por ter um trabalho onde precisa caminhar? Ou por estar desempregado, procurando por uma nova colocação? Será que está chutando pedrinhas na rua? Será que é casado, solteiro, mora com a mãe?
Todo nosso corpo se comunica, silenciosamente transmitindo nossa biografia para o mundo.
Com um bico de sapato gasto, com um calo no polegar, com um óculos torto, já podemos construir diversas vidas possíveis.
Mas só se conseguirmos não julgar. Só se conseguirmos transcender nossos rótulos mesquinhos e sair de nós mesmas.
Para assim observar com atenção e generosidade uma outra pessoa. Que tem uma vida tão incrível, tão profunda, tão única quanto a nossa.
O exercício deve ser feito com pessoas estranhas, sobre quem não sabemos nada. O que conseguimos ver nas pessoas que não conhecemos?
Não arrisque sua segurança. Em nossa sociedade sexista, as mulheres às vezes não podem observar homens impunemente, sem atrair uma interação talvez agressiva e indesejada. Por favor, sejam discretas e façam o exercício onde se sentirem confortáveis e seguras.
(E, aos homens, que esse seja mais um exemplo dos privilégios masculinos que desfrutamos sem nos dar conta.)
Sem sair do exercício, busque o seu limite e, então, vá além. Se já é uma pessoa naturalmente observadora, seja mais.
Ninguém exercita nada ao fazer o que já fazia e se manter em sua zona do conforto.
Entrar em contato profundo e silencioso com a humanidade de uma outra pessoa que você não conhece é dificílimo. Talvez impossível.
Se o exercício lhe pareceu fácil, você provavelmente não está fazendo direito.
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Um exercício para aprender o não-conhecimento
Pelos últimos dois anos, tenho realizado por todo Brasil um encontro meio indefinível chamado de "As Prisões". Basicamente, passamos um dia inteiro compartilhando histórias de vida, exercitando nossa empatia, saindo de nós mesmas, ouvindo com atenção plena.
Desde outubro de 2014, estou começando o encontro da seguinte maneira: logo de manhã cedo, antes mesmo daquele papo furado preliminar obrigatório, fazemos uma variação desse exercício de empatia "ver na sua totalidade":
Sentadas em um círculo, olhamos para a pessoa a nossa frente e falamos o que estamos vendo, descrevemos a pessoa em detalhes, deixamos a imaginação voar. Quem é ela? O que quer? Do que gosta?
Esse exercício ensina duas lições, totalmente opostas e absolutamente complementares.
A primeira é a mesma do exercício acima, feito com pessoas desconhecidas: perceber quanta informação sobre nós mesmas estamos constantemente transmitindo ao mundo e também quanta informação sobre as pessoas a nossa volta estamos constantemente ignorando e ativamente não-enxergando.
A segunda lição, entretanto, depende da estrutura única do encontro "As Prisões" e seria difícil de repetir em outro ambiente.
Ao longo do dia, a medida em que vamos conhecendo mais e mais todas aquelas pessoas, a medida em que vamos ouvindo suas histórias e mergulhando em suas vidas, percebemos também os limites do nosso olhar.
Percebemos que mesmo o nosso olhar menos julgador era cheio de julgamento.
Percebemos que aquelas pessoas são infinitamente mais complexas e contraditórias do que tudo que pudemos perceber em nossa olhada mais profunda.
Em outras palavras, aprendemos tanto o enorme potencial quanto o gigantesco limite do nosso olhar.
E, assim, damos mais um passo rumo a um conhecimento de difícil absorção e de difícil compreensão, uma ficha que contra toda evidência se recusa a cair, um fato contra o qual resistimos e nos debatemos loucamente:
Que não sabemos nada. Que não temos como saber nada.
Sem ativamente exercer o não-conhecimento e a não-opinião é impossível praticar uma verdadeira empatia.
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