Em algumas jurisdições americanas, as penas para mulheres que consomem drogas ou bebidas alcoólicas durante a gravidez são muito mais pesadas do que a pena aplicada a mulheres que fazem aborto. É mais vantagem fazer um aborto, mesmo se ilegal no estado, porque a pena será a de um delito leve ou contravenção. O consumo de drogas durante a gravidez, por sua vez, é tratado como crime em alguns estados, com penas de prisão.
Esse é o relato de um estudo acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade do Alabama. De acordo com esse estudo, essa é, provavelmente, a questão mais controvertida da Justiça americana. Embora o consumo de drogas por mulher grávida possa causar danos irreparáveis aos bebês — e até mesmo ser considerado um “crime hediondo” em alguns estados — há problemas jurídicos, também irreparáveis, na condenação das mulheres.
Um deles é que esse tipo de criminalização nega à mulher grávida o direito de igualdade perante a lei. Isto é, se um casal consumir drogas, o homem será julgado e possivelmente condenado pelo uso de drogas, apenas. A mulher grávida será condenada pelo uso de drogas e também pelo “crime” que estaria cometendo contra o feto. Assim, ao responsabilizar criminalmente a mulher pelo uso de drogas, ela é tratada diferentemente do homem perante a lei.
Problema constitucional
Esse assunto ganhou uma grande dimensão na semana passada, quando algumas entidades moveram uma ação de direitos civis contra as autoridades de Wisconsin, depois que a americana Tamara “Tammy” Loertscher, 30, foi condenada à prisão por usar a droga metanfetamina durante a gravidez. A Promotoria a acusou de “abuso infantil” — isto é, do feto de 3,5 meses. O juiz aceitou a qualificação do crime e justificou a condenação com o argumento de que ela se recusou a fazer tratamento contra o uso de drogas.
Tammy ficou presa por 18 dias, alguns dos quais em uma solitária, e só foi solta depois de concordar com o tratamento, assinar um documento que a colocava sob a supervisão do estado e pagar fiança. Ela foi denunciada por uma clínica, na qual fez exames pré-natais. Em uma consulta, ela disse ao médico que tinha um problema sério de tireoide e também de depressão. E, como não tinha seguro-saúde, se automedicava com metanfetamina.
O médico pediu um exame de urina, que revelou a presença de metabólitos em seu organismo. O exame foi usado como prova contra ela no tribunal. Denunciar pacientes grávidas que consomem drogas é um procedimento comum em muitas instituições de saúde nos EUA. Isso cria um problema constitucional, diz o estudo. Fazer exames de urina e de sangue, para confirmar o uso de drogas ou bebidas alcoólicas, viola o dispositivo da Constituição que proíbe “buscas e apreensões” sem consentimento da paciente e sem um mandato judicial.
Segundo o estudo, pelo menos 200 mulheres já foram processadas, em 30 dos 50 estados americanos, pela ingestão de drogas ou bebidas durante a gravidez. Ao contrário de Tammy, que passou apenas 18 dias na prisão, algumas pegaram penas bem mais altas. O estudo relata prisões de três, oito e até 20 anos — as penas mais altas geralmente se referem a casos em que o resultado final foi a morte do bebê ou o nascimento com alto grau de intoxicação no organismo.
Leis relacionadas
Poucos estados têm leis que criminalizam o consumo de drogas e bebidas alcoólicas durante a gravidez. O primeiro estado a aprovar uma lei específica foi a Dakota do Sul, em 1998. Essa lei estadual deu aos parentes da gestante o direito de interná-la por dois dias. E ao juiz, o direito de internar a gestante por até nove meses. Wisconsin foi o segundo estado a criar uma lei, à qual foi atribuído o nome de “mãe cocaína” (“cocaine mom”).
No entanto, os promotores não precisam de leis específicas para processar gestantes, diz o estudo. Eles usam “leis relacionadas”. Os casos mais estranhos foram os de promotores que processaram mulheres grávidas por “tráfico de drogas”, de certa forma. As mulheres foram acusadas, além de uso, de “distribuição” de drogas a seus fetos.
Essas condenações foram anuladas. O tribunal superior da Flórida decidiu que a lei que define a distribuição de drogas (ou o tráfico) não se aplica à distribuição via cordão umbilical. Aliás, a maior parte das sentenças de prisão acabam anuladas por tribunais superiores. Apenas no Alabama e em Carolina do Sul, os tribunais superiores têm mantido tais condenações.
Alguns promotores usam, com sucesso, a acusação de “abuso infantil” — como foi o caso de Tammy. Porém, os tribunais americanos divergem sobre essa qualificação. Muitos tribunais, incluindo tribunais superiores, entendem que o feto ainda não é uma “criança viável” — isto é, em condições de sobreviver fora do útero — e, portanto, não pode ser alvo de abuso infantil, como a lei define esse crime.
Na Califórnia, uma mulher foi processada por “colocar a criança em perigo” (crime de perigo ou periclitação), depois que seus gêmeos nasceram com substâncias da heroína em seus organismos. Essa lei foi criada como o objetivo de punir pessoas que fabricavam metanfetamina em ambientes onde havia crianças — não para punir gestantes que usam substâncias ilegais. A mulher foi condenada, mas um tribunal de recursos decidiu que essa lei não se aplica a fetos.
Mas, no Alabama, duas mulheres foram condenadas à prisão por “perigo químico”. Os juízes decidiram que a palavra “criança” inclui fetos. Hope Ankrom, que deu a luz uma criança com cocaína no organismo, pegou três anos de prisão. Amanda Kimbrough, cujo filho nasceu com metanfetamina no organismo, foi condenada a dez anos.
No Tennessee, a gestante Demetria Jones foi condenada por “lesão corporal qualificada” do feto, depois que cocaína foi encontrada em seu organismo. O procurador-geral do estado sugeriu que a acusação poderia ser mais grave, porque ela teria usado “uma arma mortífera”. No final, ela foi condenada a participar de um “programa de trabalho”.
Deoborah Zimmerman foi acusada de lesão corporal grave e tentativa de homicídio da criança que estava para nascer. Na hora do parto, em vez de ir para um hospital, ela foi para um bar e se embriagou. Ela foi levada para o hospital à força, onde ela teria dito a uma enfermeira que o plano era beber até que ela e a criança morressem.
A criança nasceu com uma taxa de açúcar no sangue e 0,199% e, segundo os médicos, com indicações de “síndrome do alcoolismo fetal”. O tribunal absolveu a mulher, com base na teoria de que a lei estadual que define o bebê “nascido vivo” não se aplica a fetos, no que se refere à legislação do homicídio. “A lei requer que um bebê esteja vivo para que uma acusação de homicídio se justifique. Não pode haver homicídio ou tentativa de homicídio, antes de o bebê nascer vivo”, diz a decisão.
Na Carolina do Sul, porém, Regina McKnight foi condenada por abuso infantil e homicídio de seu próprio feto. A criança nasceu morta e uma autópsia subsequente determinou que a causa de morte foi o consumo de cocaína. Ela foi condenada a 20 anos de prisão e a sentença foi mantida pelo tribunal superior do estado.
Política pública
O argumento de que apenas uma mulher pode cometer crime contra o feto por usar drogas durante a gravidez sustenta a ilegalidade desse tipo de condenação, por criar uma desigualdade entre homens e mulheres perante a lei, e não é discutido. Mas há um outro ponto que é discutível, segundo o estudo. A quem ache que há um problema no “devido processo”, porque a mulher não sabe que o “abuso infantil” pode incluir o feto. Outros argumentam que a mulher sabe muito bem que drogas podem causar danos ao feto e, portanto, é um comportamento criminoso.
Do ponto de vista de política pública também não há consenso. Os promotores e todos os que defendem uma punição severa para a gestante que consome drogas, argumentam, em primeiro lugar, que está mais do que comprovado cientificamente que isso causa danos irreparáveis às crianças — se não a morte. Segundo os promotores, muitos réus de ações criminais têm uma história de consumo de drogas que começou no útero.
Por isso, alguém tem de pagar por isso — no caso, a mãe, eles dizem. A condenação teria ainda dois objetivos: 1) obrigar a gestante a fazer um tratamento que a leve a abandonar as drogas; 2) mostrar para outras mulheres da comunidade que consumir drogas durante a gravidez não é uma boa ideia, porque pode resultar em punições severas, como uma longa sentença de prisão.
Os oponentes à condenação vêm o problema de forma exatamente contrária. Em primeiro lugar, eles dizem, a prisão não cura ninguém do uso ilegal de substâncias químicas — e, muitas vezes, drogas podem ser obtidas na prisão. O que pode curar é o tratamento. Em segundo lugar, as mulheres que usam drogas se recusam a fazer exames pré-natais porque sabem que correrão o risco de ser denunciadas pela clínica e processadas.
Essa é a posição de algumas organizações médicas de peso nos EUA. A Associação Médica Americana, a Academia Americana de Pediatria e a Associação Americana de Psiquiatria já divulgaram declarações, recentemente, se opondo à criminalização do uso de drogas por gestantes e a processos judiciais contra elas. Onde isso acontece, elas dizem, as mulheres deixam de fazer exames pré-natais, com medo de serem presas, e as clínicas temem ser processadas, caso não as denuncie à polícia.
Há mais prejuízos para as gestantes condenadas. Por exemplo, elas podem perder o emprego, o que é comum, e não conseguir outro trabalho porque há uma condenação criminal em seus antecedentes. Além disso, também por causa da condenação, podem deixar de receber benefícios concedidos pelo governo. Assim, restam às mulheres as opções do aborto, de não fazer exames pré-natais e de fazer o parto em casa.
A discussão sobre o mérito desses argumentos é mais uma questão de política pública do que jurídica, diz o estudo. E cada lado, tem argumentos bem fortes. Nos tribunais estaduais, cada juiz decide mais de acordo com seu entendimento próprio do que baseado em leis ou jurisprudências. Assim, tomam decisões exatamente opostas.
Caberia à Suprema Corte dos EUA tomar uma decisão para unificar os procedimentos no país. Porém, até agora, a corte decidiu lavar as mãos. Decidiu não decidir os casos que chegaram à corte até agora. Mas é provável que a Suprema Corte venha a enfrentar o assunto no próximo ano. Se o fizer, a decisão mais provável será a de que as leis existentes são inconstitucionais, porque lhe cabe decidir a constitucionalidade da questão, não políticas públicas.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
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